Por Wander Lourenço –
“Cara pálida, sabe com quem você está falando?”
Partindo-se do afamado provérbio “Filho de peixe, peixinho é”, em nosso país criou-se praticamente uma espécie de instituição social, denominada “o Filho de…” Deste modo, dito isto posso afirmar que já faz alguns anos (ou séculos?) que se descobriu que, no Brasil, se institucionalizou, para muito além da formação humana, intelectual e/ou acadêmica, mais do que um ofício a ser exercido por indicação (QI), estabeleceu-se uma posição social que, muito possivelmente, a meu ver, não seja tão facilmente encontrável em outros sítios habitados por nós terráqueos ou mesmo em vizinhança interplanetária, sobretudo porque, para muitos concidadãos, ao contrário do Filho de…, os Ets são originários de nossa fértil imaginação.
A partir deste pressuposto, pode-se dizer que “O Filho de…” se define como um sujeito (sem distinção de gênero, credo ou raça, por favor), que nunca fez e nem para nada serviu nesta vida; e que enquadra na frase clássica: “Nunca bateu um prego numa barra de sabão…” Não obstante, de outra feita etc., creio eu que tal categoria, que pode também ser chamado de agregado consanguíneo, tenha se tornado ainda mais importante do que aquele indivíduo que se apresenta com a seguinte expressão: “–– Sabe com quem você está falando?”. Isto porque estou me referindo ao Filho de…, que nada mais é do que um Zé Ninguém, sem vocação ou talento para coisa alguma; mas que, apoiando-se em seu(sua) progenitor(a), arvora-se a pleitear um tipo de respaldo arqueológico que a sua capacidade psíquica jamais alcançaria em hipótese alguma, caso não houvesse a menção genealógica que se baseia em (m)paternidade legitimada pela certidão de nascimento lavrada em cartório da ancestralidade.
Neste sentido, o Filho de… se habilita a ser desde presidente da República ao Senado ou Supremo Tribunal de Justiça, sem contar com o quinhão hereditário que o possibilitará um alto cargo do Banco Central, ministério ou secretaria, uma vez que a sua consanguinidade lhe impulsiona a altos patamares não tão somente de ascensão social; mas de nomeação ou posse daquilo que lhe é devido, em razão de sua descendência direta com algum louvável figurão desta pátria mãe gentil. Para se ter uma ideia mais explícita da potencialidade do Filho de…, quiçá seja necessário nós recorrermos ao romance Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, mais precisamente no episódio situado em seu capítulo III, que se intitula “Genealogia”, cujo narrador-personagem explicita ao Leitor a biografia de “um certo Damião Cubas”, fundador de sua família na primeira metade do século XVIII.
A respeito desta alusão machadiana, cabe acrescer que o memorialista nos revela que o patriarca dos Brás Cubas, que era natural do Rio de Janeiro e exerceu o ofício de tanoeiro, “plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas”, até que faleceu e deixou “grosso cabedal a um filho, o licenciado Luís Cubas.” Como o tanoeiro vem a ser uma espécie de artesão que fabrica barris e tonéis, a origem familiar se inicia com o bacharel formado em Coimbra, de modo que este apagamento genealógico demonstra uma tradição consolidada, ao mesmo tempo em que dialoga com os modos e costumes de uma sociedade conservadora e hipócrita, que homizia o que não interessa e expõe o que se forja pela pacholice pátria… “Mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? – indaga-nos o autor defunto Brás Cubas, sobre o hábito contumaz de se gabar ou tornar-se pedante, quando o assunto é autenticação do direito adquirido através da reivindicação moral e cívica de cunho familiar.
O tal pedantismo que caracteriza o Filho de…, mui cheio de si, em virtude de sua herança genética, artística e/ou pecuniária que, naturalmente, recebeu sem esforço ou dedicação, se identifica à primeira vista sem pince-nez ou lente de contato. Desta feita, de uma só mirada se observa o dito-cujo dado à bazófias, fatuidades e empáfias, que se justificam pelo simples fato de que a sua presença ou imagem se prevalece do feito de outrem; e não de sua maestria em indistintas áreas de atuação profissional. Ora, se eu sou Filho de… o que me importa o valor humano que deveria ser direcionado à minha pessoa, já que a figura que me gerou em conluio com o seu(sua) parceiro(a), atirando-me ao mundo sem que eu o(a) solicitasse, tornar-se-á o tutor responsável pela incompetência alheia, que o meu sobrenome há de me abalizar ad aternum, antropologicamente.
Por fim, em se tratando do país do faz de conta, da falcatrua e do sobrenome, nada mais natural o comportamento atávico e congênito do Filho de…, que não fede nem cheira, não ata nem desata, não explode nem sai de cima, porque não vale um tostão ou vintém. Entretanto, o Filho de… se julga acima do bem e do mal, sobretudo por ser fruto legítimo do sêmen celebrizado, que o impele ao triunfo anômalo e vazio oxigenado por sua progênie ilustre, incorruptível e ilibada, cujo protótipo fora supracitado em Teoria do Medalhão, Machado de Assis e também na obra de autoria do mestre Carlos Drummond de Andrade, irônica e profeticamente intitulada Serás ministro:
“–– Esse vai ser ministro –– sentenciou o pai, logo que o garoto nasceu”.
WANDER LOURENÇO é professor, cineasta, poeta, letrista e escritor. Publicou dezenas de livros, escreveu e dirigiu os documentários sobre vida e obra de Carlos Nejar, Nélida Piñon e Antônio Torres.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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