Por Antonio Veronese –
Para você leitor, que insiste em perseguir comigo os meandros desta historieta, a prosopografia de dona Maria Déa exige especial atenção. Não só por ser pessoa querida e admirada de todos, mas especialmente pelo papel fundamental que ela terá na grande transformação da vida de Bentinho.
Com cultura muito acima da média de suas consortes, aprendeu sozinha o francês e o italiano, fruto de sua grande paixão pelo canto lírico. Pianista de limitados recursos, há que se reconhecer, não decepcionava, no entanto, quando, à custa de alguma insistência, sentava-se ao piano para tocar.
Mulher de “alguns anos mais que quarenta”, como gostava de definir-se, guardava ainda muito da beleza da juventude, quando colecionara admiradores na, então, pequena Cascais portuguesa. Longos cabelos negros contrastando com o branco da pele, um rosto fino, desenhado à mão, maxilar “modiglianesco”, lábios marcantes e grandes olhos de um castanho claríssimo, quase garços… olhos de cabra-tonta como já ensinara o maior de todos os Rosas.
Casou-se cedo com o então estudante de direito Álvaro de Almeida Gamões, mudando-se para Lisboa, para tristeza dos inúmeros pretendentes de sua terra natal.
Na capital portuguesa o casal passou por dificuldades, uma vez que todas as iniciativas de Álvaro para ganhar a vida, sucessivamente, resultavam em fracassos. Ainda assim, Maria Déa, vivamente apaixonada pelo marido, tivera forças e determinação para atravessar esses anos difíceis. Ela dela o estímulo constante a amparar do jovem marido dividido entre o esforço por ganhar a vida e os compromissos da vida acadêmica.
No entanto, a pertinácia das dificuldades acabou por obrigá-lo a abandonar o curso de direito. “Queria dedicar-se, por alguns anos, somente aos negócios”, dizia! e, quando a situação melhorasse, voltaria aos estudos.
Esses planos, no entanto, frustraram-se com a vinda precoce dos filhos e com os constantes insucessos de suas iniciativas comerciais. Ainda que diligente e empreendedor, Álvaro Gamões só conseguia colecionar dívidas.
Foi então que, na tentativa de ocultar-se da recorrente desventura, decidiu mudar-se para o Brasil, de onde chegavam relatos que acalentavam suas esperanças. O espírito aventureiro da esposa Maria Déa não impôs dificuldades ao projeto e assim, ao cabo de dois anos de casados, já com dois filhos pequenos e um terceiro a caminho, enfrentaram juntos a grande aventura marítima em direção ao desconhecido e misterioso continente.
O BRASIL
Aqui chegando, alugaram uma casinha geminada lá pelos cantos da Gamboa carioca. Espavorida com a primeira impressão que teve da cidade, Maria Déa quis voltar imediatamente a Portugal. Pela primeira vez em sua vida, descobriu homens de cor e belas mulatas com saias rodadas andando pelas ruas da vizinhança, e benzia-se com o sinal da cruz, aterrorizada, ao ouvir o som de atabaques e cantos exóticos nas altas horas da noite.
Foram anos difíceis para a menina portuguesa que, em Cascais, sempre fora o centro da atenção de toda a família.
O novo país assemelhava-se-lhe às chácaras do inferno: a sinfonia inarmônica dos mosquitos nas noites de insônia; a lúgubre privada de fossa e o pavor constante de que um de seus pequenos caísse nas profundezas do fosso escuro; o cheiro forte de urina a eivar os becos da cidade; a casa compartilhada com insetos de toda a sorte e as fezes de morcego que despencavam dos telhados sem forro diretamente sobre a cama das crianças; as visitas noturnas de gigantescas ratazanas esfomeadas, maiores do que as lebres de Cascais; as baratas voadoras a cruzar em esquadrilhas os céus da casa e extravagantes infantarias de formigas de cores e tamanhos até então totalmente desconhecidos; a cozinha, apesar de todo o asseio, tomada por moscas e varejeiras e os armários por fungos e desagradável ranço devidos à humidade; roupas, livros e documentos vitimados pela voracidade assustadora de traças e cupins e a água salobra vomitada pelas torneiras, que ela fervia e refervia antes de dá-las aos filhos…
Para alimentar a família, além do dinheiro curto, tinha que enfrentar a penúria da baiúca d’um português, um pé-sujo da vizinhança onde tudo faltava: carne, hortaliças, peixe, frutas….
Por chacota, dizia ao marido:
-Vou ao mercado, ver o que não tem hoje!
E o clima, santo Deus, o clima!! Uma quentura nunca dantes experimentada! O “verão” em pleno inverno! Dias a fio com temperaturas intoleráveis para oriundos das terras de Gamões… Mais do que com o calor, sofria Maria Déa com as alergias e com o corpo invadido por brotoejas. Em carta enviada aos pais em Portugal, dava-lhes conta que havia que se banhar quatro vezes ao dia e tomar litros de água para resistir à flama do estio.
Temia pela saúde das crianças e sofria pelo desconforto destes. Purgava uma culpa sem fim por tê-las retirado de Portugal, transformando para sempre seus destinos. Foram dois anos assim, nos quais, amiúde, trancava-se no quarto, sozinha nas horas silentes da tarde, e chorava desenganada de tudo.
Essas dificuldades iniciais foram superadas, como anteriormente citado, por inestimável e milagrosa ajuda do então jovem Antonio Bento, à época residindo na mesma vizinhança no Rio de Janeiro. O futuro pai de Bentinho, atendendo ao apelo desesperado do português, que de tanto fanicar sem sucesso fazia pena à vizinhança, emprestou-lhe dinheiro suficiente para a compra de um barzinho imundo, um “buraco” junto ao Largo da Carioca. O português agarrou-se com unhas e dentes à oportunidade, como se fosse sua última chance. Imediatamente transformou o pardieiro em uma chupada lojinha especializada, acreditem se quiserem, em roupas íntimas femininas…
Fadado ao fracasso outra vez, não é? Pois, acreditem se quiserem, contrariando a todas as previsões, foi um sucesso imediato! A malandragem da redondeza
passou a ter como surpreender, com ardileza, esposas e moçoilas casadoiras do bairro, ansiosas pelos discretos modismos de França. … A coisa foi tão bem que, no período de quinze meses, Alvaro abriu duas filiais, a maior delas uma grande loja na Avenida Central à qual deu o nome de A CASA DAS SENHORAS!!
E o dinheiro começou a entrar como nunca!
-Terra abençoada, dizia Alvaro à esposa. Nunca tivemos tanto dinheiro, mulher!
Ao cabo de três anos mais, cerca de cinco no Brasil, construíram a grande casa da Rua das Laranjeiras. E Maria Déa, que resistira com bravura aos tempos de vacas magras, refloresceu rapidamente em novos tempos venturosos. Mulher de finos modos, educada no rigorismo português, elegante e desembaraçada, tornou-se de pronto querida na cidade. Na nova e bela casa, os jantares, inicialmente restritos às pessoas do círculo comercial do marido, foram, pouco a pouco, transformados em concorridas recepções de que participavam a nata da sociedade carioca.
Vinte e cinco longos anos se passaram e o Brasil, apesar do ceticismo inicial, dera abrigo a todas as esperanças do casal e Maria Déa, ainda jovial e encantadoramente feminina, conservara muito da beleza que fizera sonhar os rapazolas da distante Cascais.
O compulsório do tempo não lhe roubara totalmente nem a sensualidade, nem a contagiante alegria.
RECEBENDO BENTINHO
Depois de muito falar e de tudo explicar, Bentinho foi levado casa adentro pela mão de Maria Déa.
-Venha, disse-lhe carinhosamente, levando-o ao segundo andar; vou mostrar-te o teu novo quarto.
Uma vez lá, ofereceu-lhe toalhas brancas perfumadas do sândalo de uma grande arca ricamente entalhada com motivos orientais. Deu-lhe ainda espuma de banho francesa e um improvisado pijama do comendador, muitos números acima do seu.
-Tome um bom banho e descanse um pouco. Depois vamos comprar roupas adequadas a um moço tão bonito, disse, fechando atrás de si as pesadas portas de madeira.
Bentinho, a sós no amplo quarto com paredes impecavelmente forradas de tecido floral e largas tábuas de madeira no assoalho, custava crer que tudo fosse real. Era um cômodo grande como ele jamais havia visto, com uma cama de viúva no centro, ventilado e invadido pela claridade do dia. Havia no ar um agradável cheiro da cera que lustrava o chão.
Também “cheirava” a limpeza o amplo banheiro, na porta vizinha do corredor, com sua louçaria branca e belíssimos azulejos decorados de azul. Admirou longamente as torneiras douradas da pia, o chuveiro e a grande banheira repousada sobre quatro patas de leão em metal…
Debruçando sobre a janela, podia-se ver toda a lateral da casa, um canto bem zelado do jardim com enormes tufas de rosas vermelhas e brancas, irruvinhas e primaveras deitando seus mantos rubros sobre o gramado impecável, uma palmeira com seu cacho florido disputado por dois belicosos beija-flores. Retornou seu olhar para o interior do quarto e abriu a enorme janela sobre o jardim fronteiriço com seu belo chafariz e o sussurro constante de suas águas. Dando de costas à janela, observou mais uma vez, desconcertado, cada detalhe do seu novo quarto: a arca de madeira, a pesada cama com suas mesas laterais em tampos de mármore; o grande guarda roupas com o espelho oval…aproximou-se, curioso, da grande arca…tateou com mãos de cego os seus baixo relevos…Depois levantou sua pesada tampa, tragando longamente, o forte aroma de sândalo que escapava do seu interior.
Por fim, mirou-se no amplo espelho à sua frente. Talvez fosse tudo um sonho, um sonho do qual ele não mais queria despertar.
Lembrou-se, então, da expressão carrancuda de Lilina, perdida nas lonjuras da longa estrada poeirenta. Sem que se pudesse conter, desatou a rir, um riso desabafado, olhos mareados num desafogo das entranhas.
Poucas vezes em sua vida se sentiu tão completamente feliz.
(CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA)
ANTONIO VERONESE – Pintor brasileiro autodidata com uma obra considerável, realizou centenas de exposições individuais, tem obras expostas em numerosos museus, coleções públicas e privadas nos Estados Unidos, Suíça, França, Japão, Chile e Brasil. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre, representante e correspondente internacional em Paris, França; Radicado na França desde 2004, antes de deixar o Brasil deu aulas de arte para menores infratores nos Institutos João Luiz Alves, Padre Severino e Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e no Caje de Brasília. Utilizou a pintura como forma de reabilitação psico-pedagógica dos adolescentes entre 12 e 18 anos com a bandeira” estética é remédio!”. Alguns dos trabalhos produzidos pelos jovens foram expostos em Genebra (Suíça), no Salão Negro do Congresso Nacional, em Brasília, e na Universidade de San Francisco, nos Estados Unidos. Em 1998, representando o Brasil no Encontro de Esposas de Chefes de Estado, cobrou da então primeira-dama, Ruth Cardoso, medidas para tirar das ruas crianças abandonadas, tendo recebido o apoio de Hilary Clinton. Pela denúncia da violência contra menores no Rio de Janeiro, que faz através de sua pintura e de engajamento constante deste 1986, Veronese foi convidado à Comissão de Direitos Humanos da ONU – em Genebra, para proferir palestra, lá causou grande indignação ao apresentar fotografias de 160 crianças, marcadas por cicatrizes massivas decorrentes da violência urbana, doméstica e policial.
Antonio Veronese, Italian-Brazilian painter, lives in France since 2004. He is the author of «Save the Children», symbol of th e 50th anniversary of the United Nations, and «Just Kids» symbol of UNICEF. As well of «La Marche», exhibited in the Parliament of Brazil since 1995, and «Famine», exhibited since 1994 at the Food Agriculture Organization for United Nations (FAO) in Rome.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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