Por Lincoln Penna –
No dia 18 de março de 1871, há 152 anos instalou-se a Comuna de Paris, que representou a primeira manifestação explícita de um poder popular.
De lá para cá várias tentativas e manifestações com vistas à implantação de governos verdadeiramente voltados para os interesses do povo foram realizadas. Se em todas essas ocasiões não se obteve êxito completo, isso não esmoreceu a vontade de dar continuidade à luta.
Há quem assegure que a denominação do vocábulo comuna foi banida pelos que orientam a opinião pública justamente para tentar dissociar esses eventos e criminalizar os seus participantes. Se tal fato efetivamente corresponde a verdade, trata-se de um expediente que só reforça a ideia segundo a qual os movimentos comunais são temidos pelas classes dominantes ciosas que são de seus privilégios. Afinal, a ideologia, instrumento do poder dominante age objetivando neutralizar os impulsos do povo.
Vive-se no mundo atual formas de manifestações díspares, que não conseguem mais mascarar a intensidade das desigualdades sociais, assim como as diferentes modalidades de poder que se constituíram no corpo de um regime que absorveu os seus aspectos mais cruéis e violentos. É o caráter de um estágio avançado dos que detém o poder e lançam mão de todas as armas para preservá-lo, incluindo as formas extralegais aparente e formalmente condenadas, porém integradas no seio dos estados que combinam o funcionamento das instituições políticas com as de natureza extralegais.
Nesse cenário distópico as justas reivindicações costumam ser tratadas como se fossem contrárias ao ordenamento social. Refiro-me mais objetivamente ao que está a acontecer na França de Macron, o presidente que banca uma reforma previdenciária que afeta de imediato inúmeros franceses, sem que ele procurasse alcançar o consenso mínimo necessário para sua concretização. Resolveu apelar para um dispositivo constitucional, o artigo 49, aplicável em casos de situações excepcionais.
Com isso, emergiu em todo o território francês um forte movimento comunal, cujo sentido vai além da simples contestação relativa ao aumento da idade para fins de aposentadoria, de 62 anos para 64 anos. Trata-se, na verdade, de um movimento que identifica a voracidade da lógica capitalista, de modo a mobilizar multidões independentemente de orientação política e partidária no âmbito das organizações democráticas, além das diferenças geracionais, dado que torna evidente o sentido antissocial dessa decisão política.
No extremo oposto está a situação dos atentados na Rio Grande do Norte. Não é obviamente uma manifestação comunal. Ao contrário, tem a ver com uma ação perpetrada por grupos que se desenvolveram nas bordas do sistema capitalista, em suas mais nocivas formas de capitalização, aquelas originárias da circulação desenfreada da espoliação marginal. Estas ocorrem em grande parte provenientes da exploração das drogas e do comércio paralelo ilegal de armas.
No caso das manifestações contrárias à reforma pretendida pelos ideólogos do capital, sempre tendo como justificativa os déficits orçamentários, elas são vistas como injustificáveis. Jamais os operadores do mercado e dos balanços dos orçamentos nacionais abrem discussão a respeito da acumulação de fortunas privadas que correm a solto dos mecanismos de tributação. O zelo pela manutenção dessas políticas de contenção é repassado para o grande público como decisões necessárias para o equilíbrio das contas públicas, ao passo que as desigualdades sociais são deixadas de lado.
Para ambos os casos, isto é, para combater as insurgências dos cidadãos que se manifestam contra uma previdência mal gerida porque derivada do âmago próprio do próprio sistema, que consiste na relação de trabalho desigual; e, de outro lado, para conter repressivamente as ações violentas do crime organizado, a raiz é a mesma. Esta se encontra no insustentável modo capitalista de produção e reprodução a infernizar o povo, seja pelas medidas a ampliar o emprego de sua força de trabalho, ou pelo incentivo à marginalidade calcada no uso da sua lógica de acumulação às custas do vício, cujo combate é absurdamente muito aquém do que é preciso realizar.
Vício esse que está impregnado num mundo cada vez mais circunscrito às práticas de se levar vantagem em tudo sem considerar os seus semelhantes. Fere de morte, portanto, a cidadania, berço natural dos valores civilizatórios, democráticos e humanitários, e faz avançar todo tipo de negação da ética, já que esta freia potencialmente os ímpetos gananciosos da referida lógica do capital.
Se a Comuna de Paris foi um marco no sentido de manifestação de que é possível outro mundo, já que foi a primeira grande demonstração dos tempos contemporâneos para a superação do capitalismo por uma alternativa socialista, muitas outras comunas estão sendo germinadas. As suas erupções podem acontecer a qualquer tempo, todavia será necessário impedir que as ações falsamente antissistemas das ocorrências do Rio Grande do Norte sejam devidamente denunciadas. Não existe crime do bem. A criminalidade é uma distorção e deve ser erradicada numa sociedade em que paire a justiça social.
As denúncias servem ao mesmo tempo para diferenciar os acontecimentos que hoje transcorrem na França do que está ocorrendo há dias no Nordeste do país. Lá, trava-se uma luta contra um tipo de política conveniente aos operadores dessa lógica do sistema em vigor; no Nordeste, o que existe é a estratégias de fuga dos negócios dos narcotraficantes, hoje em dia enredados com correntes políticas extremadas que usam essa malha capilarizada no território brasileiro para infernizar a reconstrução nacional.
Fica o registro dessa data que marcou um sonho que não morreu, acalentado por gerações e gerações, e que se mantém vivo na expectativa de que o velho ditado se concretize um dia, qual seja, um sonho sonhado junto tende a virar realidade. O importante é saber que nada se reproduz originalmente.
Cabe às novas e futuras comunas entenderem que se o sonho é o mesmo as suas manifestações devem corresponder às circunstâncias de cada momento histórico.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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