Por Lincoln Penna –
É preciso sacudir pelas entranhas os cegos que não querem ver e os surdos que não querem ouvir. Entre outras razões, porque não queremos que o Brasil se transforme num país de mudos. (Astrojildo Pereira, ex-anarcossindicalista e comunista).
Qualquer análise que se queira fazer sobre o que se passa na sociedade brasileira implica no conhecimento mínimo que seja de nossa cultura política. É com base nela que é possível compreender os acertos e desacertos cometidos pelos atores políticos, sejam eles individuais ou coletivos. Não basta estar munido de concepções que nos orientem se estivermos alheios à história que responde pelo que somos.
Entendo por cultura política vários fazeres que foram sendo sedimentados ao longo do tempo, dos quais as práticas e métodos mais corriqueiros fazem parte desse conjunto. Ele se reproduz guardando os seus fundamentos originais e se reapresentam com frequência em nosso dia a dia. Mesmo com as mudanças de ordem material decorrentes de uma certa desenvoltura no que diz respeito ao crescimento da economia a incorporar novos e modernos procedimentos, essa tradição cultural – assim podemos também se referir – permanece como sendo o nosso DNA na esfera das coisas que dizem respeito à política.
É possível que se indague onde está a ideologia nesse conceito de cultura política, uma vez que há quem associe de uma forma ou de outra a presença dessa componente inegavelmente fundamental no jogo das contradições afetas à política. Se considerarmos a aplicação rigorosa do conceito de ideologia, com base no entendimento de Karl Marx, ela se encontra sempre e necessariamente ancorada junto ao exercício do poder por parte das classes dominantes, de modo a restar às classes subalternas as tarefas de combatê-la e, consequentemente, a elas se oporem com vistas a dar consequência na esfera das lutas de classes.
Marx define a ideologia como uma falsa consciência da realidade, ou seja, trata-se de um mecanismo empregado pelas classes dominantes para ocultarem a realidade e, com isso, sobreporem-se às demais classes. Daí, resultam as lutas de classes, dado que a progressiva superação da condição de alienação imposta por esse mecanismo de ocultação leva necessariamente à pronta consciência de classe como fator de rejeição da exploração levada a cabo pela burguesia, que em sua época exercia como classe dominante o papel de detentora do poder político, e assim acontece até hoje.
Logo, se há uma relação mais íntima entre cultura política e ideologia ela está no fato de que ao longo do tempo as representações que configuram uma cultura política se encontram impregnadas de valores e conteúdos ideológicos, vale dizer, de componentes inerentes às classes que detém o poder. Mas, nesse processo de aculturamento ou de socialização de tais valores os demais segmentos sociais incorporam esses conteúdos e, portanto, ao assim fazerem acabam por integrar à sociedade civil como um todo o espectro da ideologia própria dos que exercem esse poder de disseminação de práticas e hábitos que vão configurar uma cultura política e dela tirar proveito para manutenção de seu poder.
Mas, por que estou a remontar à questão na esfera de uma discussão filosófica centrada na concepção marxista para evocar algumas questões que me parecem importantes socializar para os leitores mais interessados? Bem, em primeiro lugar em razão de achar conveniente propor um debate na esfera dos que integram as correntes de esquerda no Brasil e diante de tantos desafios que temos pela frente; e, em segundo lugar, para apontar situações que escapam às exigências de nosso tempo e se abrigam em cenários que não ajudam muito a quem sempre sustentou alternativas às estruturas políticas vigentes até hoje.
No primeiro caso, chamar a atenção sobre a inadiável autocrítica relativa a práticas e métodos nem sempre condizentes com a realidade dos fatos. Em nossa história houve várias situações nas quais as esquerdas – e coloco no plural, embora em muitos dos erros cometidos não há como não identificar as autorias, mesmo assim esses casos foram de certa forma minimizados pela solidariedade das demais representações de esquerda – foram diretamente responsáveis. Tirando o fator desprendimento, sinônimo as vezes de ousadia, o que restou foi objetivamente uma derrota, cujas consequências foram amargas, física e politicamente.
Passar um rodo nesses casos como se eles não interferissem hoje em dia é um equívoco, até porque reforça não uma autoestima, que seria benéfica, mas sim uma espécie de soberba, como se tais erros fizessem parte do empenho indispensável para se alcançar a revolução tão cogitada e empenhada por verdadeiros revolucionários. Soberba que se encontra a braços com a inconsequência a representar na prática um sectarismo primo-irmão do dogmatismo levado às últimas consequências.
Não é o lugar para inventariar os muitos casos aqui meramente evocados sem os qualificar dado os limites de um breve ensaio. Quem acompanha interessadamente a trajetória dos movimentos de esquerda no Brasil, ou dos que fizeram ou ainda fazem parte das organizações de esquerda, saberá identificar senão os erros cometidos pelo menos os diversos momentos em que essas correntes voltadas para as mudanças mais radicais do cenário político brasileiros se apresentaram como alternativas.
Mas, é o momento, creio eu, de abrir os nossos “arquivos” de natureza política e enfrentar o contencioso que ele guarda e que precisa vir ao conhecimento das novas gerações mais interessadas. Considero que tal decisão causa um certo constrangimento e possivelmente até algumas reações contrárias, como se os nossos algozes das muitas repressões ficassem por assim dizer poupados de suas taras praticadas nos porões das ditaduras que o país conheceu durante o século XX.
O Brasil, assim como boa parte do mundo periférico de uma ordem internacional centrada no poder político e ideológico do capital, enfrenta velhos e novos desafios. Sem lograr êxito no que se refere aos velhos desafios incorpora os novos e mais urgentes com a diferença de que se no primeiro era possível se desvencilhar de seus problemas sem depender de ninguém, agora e diante dos novos desafios é preciso contar com parcerias sem o que dificilmente conseguirá alcançar os objetivos que atendam aos interesses do povo.
Já não bastam os entraves existentes. É preciso que enfrentemos os nossos fantasmas. Deles darei início apenas a um deles para retomar na sequência dessas elucubrações os demais fantasmas que nos perseguem nos próximos ensaios. E esse primeiro trata do que chamei acima de soberba, isto é, a consciência ingênua de que somos, isto é, as esquerdas, detentoras de verdades e, portanto, capazes de propor sempre com correção os caminhos que nos conduzam à redenção tanto de um passado que resiste a ser superado quanto de um mundo que necessita de profundas transformações.
Se esse desideratum é perfeitamente condizente com o espírito movido pelo impulso revolucionário, o que importa considerar não é esse impulso, mas como torná-lo eficaz e com isso se chegar aos propósitos esperados. A questão, pois, que se coloca é o da adoção de procedimentos teóricos, práticos e fundamentalmente escorados nos valores que dizem respeito à cultura política que está em questão, porquanto é em seu seio que se instalará os fatores de mudança. E para isso é preciso levá-la em conta até porque as experiências revolucionárias do século XX obedeceram às respectivas culturas políticas de cada sociedade mutante. Rússia, China e Cuba, exemplares clássicos desses eventos, souberam por parte de suas lideranças conjugar os objetivos perseguidos com as mais significativas expressões de seus povos.
Fazer uma operação política de cunho revolucionário passa obrigatoriamente pelo conhecimento de nossa história, que nem sempre é considerado de forma pelo menos sistemática. Aliás, cabe ainda observar que existem duas atitudes que têm sido muito comuns. Uma delas é a de se deter exclusivamente no horizonte de um ponto futuro, isto é, da revolução e de seus procedimentos imediatos; a outra atitude é a de se voltar exclusivamente para encontrar os obstáculos à revolução brasileira, sem descortinar o tal ponto futuro e tampouco compreender os traços fundamentais de nossa cultura política. No primeiro caso, essa atitude esteve muito presente nos anos imediatamente anteriores ao Golpe de 64, ao passo que a atitude que se prende exclusivamente aos óbices que entravam as mudanças no Brasil tem sido frequente nas redes sociais e nos textos de nossos pensadores mais eruditos sob a forma de denúncias importantes, porém sem desdobramentos no que diz respeito ao que fazer.
O convite com base nessas mal traçadas linhas é que nos empenhemos com vistas a descortinar essas duas e imediatas tarefas: a de repensar uma atitude mais humilde no que se trata do combate à soberba de caráter doutrinário e sectário porque refratário ao diálogo, que só nos afastam de eventuais interlocutores progressistas; e, que pratiquemos o exercício do contraditório a estimular o debate para que entendamos a realidade brasileira em meio à sua diversidade e às profundas desigualdades sociais.
Só assim daremos – é o que penso – razão para abrirmos de vez um espaço de interação saudável e rico, uma vez que em sua grande maioria as esquerdas trabalham com uma magnífica chave explicativa que é o marxismo.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
PATROCÍNIO
Tribuna recomenda!
MAZOLA
Related posts
Editorias
- Cidades
- Colunistas
- Correspondentes
- Cultura
- Destaques
- DIREITOS HUMANOS
- Economia
- Editorial
- ESPECIAL
- Esportes
- Franquias
- Gastronomia
- Geral
- Internacional
- Justiça
- LGBTQIA+
- Memória
- Opinião
- Política
- Prêmio
- Regulamentação de Jogos
- Sindical
- Tribuna da Nutrição
- TRIBUNA DA REVOLUÇÃO AGRÁRIA
- TRIBUNA DA SAÚDE
- TRIBUNA DAS COMUNIDADES
- TRIBUNA DO MEIO AMBIENTE
- TRIBUNA DO POVO
- TRIBUNA DOS ANIMAIS
- TRIBUNA DOS ESPORTES
- TRIBUNA DOS JUÍZES DEMOCRATAS
- Tribuna na TV
- Turismo