Por Lincoln Penna –
(…) juntos nós poderemos proteger a natureza, que é o lugar onde nossa gente aprendeu a viver, a criar os filhos e a desenvolver suas capacidades, dentro de um pensamento harmonioso com a natureza, com o meio ambiente e com os seres que habitam aqui (a Terra).
(Chico Mendes)
Essa epígrafe é uma homenagem que presto a quem se dedicou à luta pelos povos da floresta e pela democracia inclusiva e humanitariamente expandida. Viveu intensamente numa época em que a questão ambiental era restrita aos estudiosos e às comunidades que padeciam e sofrem continuamente as ações criminosas dos que desmatavam e desmatam a floresta amazônica. Chico Mendes foi um humanista acima de tudo porque combatia os que agrediram a relação harmoniosa entre o ser humano e a natureza.
A propósito, o termo humanismo significa desde sua origem a valorização do ser humano. Surgido entre os séculos XIV e XV na península itálica e logo se espraiou inicialmente por toda a região latina e ganhou outras áreas da Europa e do mundo. Todavia, seu emprego e seu culto hoje precisam ser reavaliados tendo em vista dois fatores: (1) o seu absoluto desprezo em termos contemporâneos e mais precisamente coetâneos, neste caso os tempos atuais; e (2) a necessidade de integrar a esse conceito todas as espécies vivas, desde a natureza como os demais seres animais, que conformam a existência no planeta Terra.
Faço essa incursão sobre essa temática não apenas em função do que vem ocorrendo mais presentemente em relação a forma pela qual chegou o comportamento humano diante de conflitos como o que se passa em Gaza, terrivelmente agredida em nome de uma defesa desproporcional aos atentados terroristas da organização do Hamas. Esse princípio de autodefesa tem superado em muito ao verdadeiro genocídio perpetrado pelo atual governo israelense sob a justificativa de erradicar de vez os autores do referido e indefensável ataque aos civis indefesos dos kibutzim próximos a Faixa de gaza, cuja repercussão tem causado um debate que não considera a questão humanitária, logo os valores do humanismo, dentre os quais a preservação da vida, mas jamais a retaliação, pois esta reação e tão condenável quantos os atos tresloucados justificados por uma causa justíssima, qual seja o reconhecimento do estado da Palestina.
Creio que é o momento de fazermos uma reflexão sobre o significado do humanismo. Não basta evocá-lo em situações como essa que se passa com as populações palestinas acuadas e desprovidas de recursos mínimos de sobrevivência, ultrapassados tais providências pelo ódio praticado por ambas as partes, mas tendo no estado de Israel um poderoso instrumento de destruição em massa. Diante disso, urge que a paz seja imediatamente assegurada, pois caso contrário essa fúria carregada de intolerância poderá se alastrar perigosamente e com implicações imprevisíveis.
Como elemento visando essa reflexão penso que temos de ampliar o conceito de humanismo. Primeiro porque ele se encontra centrado exclusivamente no ser humano, numa época em que fazia de algum modo sentido. Porém, hoje em dia a consciência ecológica, ambiental e voltada para a preservação da Terra tornou a questão não uma mera conjectura, mas algo que merece ser aprofundada pelos que devotam interesse pelo futuro das próximas gerações, senão de nossa geração ainda viva. E para isso, uma primeira atitude é de repensar aquele significado descrito acima.
Se essa autoestima dos humanos a ela corresponde um compromisso pela sua existência, não há como não cogitar que sozinho esse ser nada pode fazer, mesmo que mude substancialmente o seu modo de vida, o que já seria uma atitude proativa, todavia ainda incapaz de alcançar uma coexistência com os demais seres sem que haja uma compreensão de seu papel como parte integrante do chamado meio ambiente.
Os subprodutos da ação histórica do ser humano, responsável por muitas realizações de ordem material e cultural, traz também uma forte capacidade de atropelar sistematicamente os espaços e ambientes de todas as espécies animais, fora os usos para proveito próprio desses seres, em sua maioria submetidos às aspirações movidas pela abundância e marcadas pelo desrespeito às demais vidas.
Não se pode mais tolerar essas práticas que se tornaram habituais e por isso mesmo naturalizadas como se fossem absolutamente normais. Não é preciso exemplificar os inúmeros casos de atrocidades que esse suposto princípio humanitário produziu junto a outros seres vivos. Desnecessário se torna em virtude de sua franca exposição diária, a alcançar também, é claro, os nossos assemelhados, que deveriam ser tratados como irmãos independentemente de seus comportamentos por vezes erráticos.
Assim, mais do que refletir em face de uma situação pontual, por mais que ela prospere e se torne crônica, é necessário agir com base numa consciência planetária. Só o crescimento dessa consciência e seu amadurecimento baseado na informação enquanto esclarecimento e tendo o suporte de uma educação cidadã e planetária podem nos ajudar a preparar as novas gerações e infundir nas atuais o novo humanismo, aquele que incorpore essa consciência de maneira que ela se torne uma ideologia dos povos unificados em torno dessa missão histórica, mais do que uma simples causa.
Por fim, é interessante que o vocábulo humanismo vem do latim “humanitas”, ou seja, educação apropriada a uma pessoa de cultura, e faz alusão a “humus”, ou seja terra, contrastando com os seres divinos, aqueles que se situam nas alturas. Cultura esta que mais tarde seria ampliada para integrar diversos procedimentos, entre os quais, o de saber conjugar os valores que nos permitem conduzir as nossas vidas.
Não será o momento mais do que urgente que comecemos a pensar em como nos conduzir para que reunamos as condições para a recriação de uma nova civilização, que abrigue todos os que compartilham o planeta Terra? Eis uma provocação para que a cidadania cumpra com o se dever de zelar pelo bem-estar dos povos, sem discriminação, intolerância ou desrespeito aos diferentes e divergentes.
A única e real civilização não pode ficar sendo uma propriedade do ser humano. Ela só faz sentido se compreender todos os demais seres vivos. Afinal, o sentido original do humanismo pregava esse princípio ativo em sua concepção, Só que agora ele tem de ser alargado de forma que impere uma justiça social e necessariamente ambiental.
Sem essa nossa capacidade de renovação seremos todos tragados pela autodestruição da qual faremos parte como responsáveis principais dessa tragédia.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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