Por João Batista Damasceno

Proclamada a independência do Brasil, em 1822, foi convocada uma Assembleia Nacional Constituinte.

O projeto de Constituição de 1823 estabelecia limitações ao poder do Imperador. D. Pedro I mobilizou tropas do Exército, cercou a Assembleia e a dissolveu. Em 25 de março de 1824, outorgou uma constituição na qual dispunha sobre os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador. A “Pessoa do Imperador” recebeu a qualidade de inviolável e sagrada, não sujeito a responsabilidade alguma. Reservou-se, o Imperador, o exercício dos poderes Executivo e Poder Moderador, pelo qual podia intervir nos demais poderes.

Proclamada a República em 1889, por um golpe militar, foi elaborada a Constituição de 1891. Quando Rui Barbosa apresentou o projeto de Constituição em elaboração ao Marechal Deodoro da Fonseca, este perguntou onde estavam seus poderes para dissolver o Parlamento. Foi com muita dificuldade que Rui Barbosa tentou fazer-se entender dizendo que o regime mudara e que num regime de separação de poderes um poder não pode interferir no funcionamento do outro. Mesmo o Judiciário não concebia seus poderes para declarar uma lei inconstitucional quando contrariava a Constituição. Isto porque durante o Império a sanção da lei pelo Imperador removia a contradição que pudesse existir. Assim, no Império, uma lei contrária à Constituição, depois da sanção do Imperador, se sobrepunha a esta. No regime constitucional republicano, a Constituição se sobrepõe à lei e, se esta for incompatível com aquela, prevalece a Constituição e a lei deve ser declarada inconstitucional.

Quanto ao Poder Moderador, este deixou de existir no sistema de separação de poderes, harmônicos e independentes. A harmonia decorre do exercício limitado às suas atribuições exclusivas. São independentes, pois cada qual não precisa da autorização do outro para seu funcionamento.

“Proclamação da República”, 1893, óleo sobre tela de Benedito Calixto (1853-1927). Acervo da Pinacoteca Municipal de São Paulo-SP

Proclamada a República e instituído um regime constitucional de divisão de poderes, os conflitos políticos e jurídicos se resolvem pelo exercício das respectivas competências pelos poderes do Estado e pelo Sistema de Freios e Contrapesos. Este se caracteriza pelo equilíbrio entre os três poderes do Estado buscando a harmonia determinada constitucionalmente.

Tendo retornado aos quartéis após a ditadura empresarial-militar instituída em 1964, os militares continuaram a atuar nos bastidores e, durante a Assembleia Nacional Constituinte, tiveram grande atuação visando a resguardar poder político. O que emergiu com o golpe que destituiu a Presidenta Dilma foi a ativação do desejo de poder que se mantinha latente na caserna. Desde o golpe que proclamou a República nenhuma crise política deixou de ter a presença militar, notadamente do Exército. Por vezes, as Forças Armadas eram o ator principal das crises, tal como a crise que levou ao suicídio do Presidente Getúlio Vargas ou a tentativa de impedir a posse do Presidente Juscelino Kubitscheck. Mas as Forças Armadas não têm qualquer papel constitucional a ser exercido na esfera política. Seu papel institucional é outro.

Como sempre acontece, em momentos de crise, aparecem os conselheiros prometendo tirar leite de pedra. Assim não faltam os que afirmam existir papel político a ser desempenhado pelas Forças Armadas, numa interpretação enviesada do art. 142 da Constituição. Neste momento, um dos bacharéis em Direito badalados por golpistas afirma que “as Forças Armadas são um poder de estabilização da nação”. Chega-se a falar de “regime constitucional das crises”, que teria amparo no título V da Constituição e que trata do Estado de Defesa, Estado de Sítio, Forças Armadas e Segurança Pública. O art. 142 da Constituição, inserido em tal capítulo, quando trata da possibilidade de emprego das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem, não autoriza intervenção nos outros poderes do Estado. As Forças Armadas não exercem poder moderador. E isto decorre da redação originária da Constituição.

A redação original do art. 42 da Constituição dispunha que os militares das Forças Armadas são servidores públicos militares. Servidor público é agente da Administração. Não é exercente de poder do Estado. Não hão de ter poder político numa sociedade civil, salvo quando usando a força usurpam o poder, executando as próprias razões e rompendo com o primado da civilidade. Mesmo que a Emenda à Constituição nº 18 de 1998 tenha dado redação diversa ao art. 42, não foram as Forças Armadas convertidas em Poder Moderador. Isto porque a Constituição, ao dispor sobre emendas à Constituição, foi expressa ao dizer que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a separação dos Poderes”.

Pode-se alterar a Constituição por outros fundamentos, inclusive pela força dos golpes de Estado, como ocorreu com a Emenda Constitucional nº 01 de 1969, após a edição do AI-5. Mas o nome a se atribuir à modificação é golpe, usurpação de poder ou outro fundado na força. A Constituição de 1988 não foi alterada para atribuir poder moderador às Forças Armadas. E não poderia sê-lo por expressa proibição nela contida.

JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Colunista do Jornal O Dia; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Jornalista com registro profissional no MTPS n.º 0037453/RJ, Sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, Conselheiro efetivo da ABI.

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