Por Ricardo Cravo Albin –
Uma das tradições mais encantadoras do velho Rio de décadas atrás transformou-se, de uns tempos pra cá, em pesadelo.
Refiro-me aos balões, cuja existência já foi saudada por crônicas dos melhores cronistas, por versos dos melhores poetas, por músicas dos melhores compositores populares. Quem poderia imaginar que os inofensivos balõezinhos, cara e coração dos folguedos juninos e julinos do Rio tão amável e ameno dos anos 30, 40 e 50, pudessem espalhar desolação, incêndios e desastres para o meio ambiente em menos de três decênios? Eu, por exemplo, pude sentir na alma todas as delícias de soltar os pequenos balões no Rio, às vésperas de São João, São Pedro e Santo Antônio.
Éramos todos meninos nos anos 50, e nossos pais jamais nos amofinaram em relação ao deleite que experimentávamos. Soltar balão era muito normal, até porque os artefatos de nossa infância nos pareciam inofensivos. E ninguém ousava dar-se conta de que aquelas luzezinhas ao ascender aos céus quais miniaturas de anjos, poderiam fazer algum estrago. Até faziam, mas a ecologia e o meio ambiente eram coisas tão remotas quanto a lua, nos idos de 40, 50 e até 60.
O fato é que, ao longo do tempo, fomos perdendo outras tradições, igualmente tão caras: a fogueira, o milho assado, o quentão e, especialmente, as músicas deliciosas que eram postas ao alcance de nossos ouvidos a cada temporada junina. Pois os compositores populares se esmeravam em produzir todo um ciclo musical, o repertório dos folguedos de junho e julho, onde puseram alguns ovos de ouro poedeiras de joias do cancioneiro como Lamartine Babo, Herivelto Martins e Luiz Gonzaga, para citar apenas quatro dos grandes. Perdemos tantas e tão valiosas tradições, mas só uma não pereceu, exatamente a primeira – e possivelmente a única – que deveria desaparecer de nossos hábitos, os balões. Até parece que a triste exceção serve como uma luva para alimentar o desalento que tomou conta da cidadania nesses últimos anos. Mas que diabos, perguntarão alguns com muita razão, por que as coisas boas desaparecem e as más permanecem no Brasil, reproduzindo-se – o que é o pior – como as sete cabeças de hidra da lenda?
Voltando aos balões, quero desde logo observar que os balõezinhos que soltávamos em nossas ruas da infância tinham duração menor que a de uma flor. Era subir e logo adiante cair. De tão pequenos, nem na nossa fertilíssima imaginação eles poderiam se juntar às estrelas e eternizarem-se, se bem que fosse esse nosso sonho secreto. Mesmo porque suas toscas luzezinhas eram tão frágeis e inofensivas quanto uma vela.
Hoje não. Despidos da antiga réstia de poesia, os balões viraram artefatos poderosos, que talvez ainda pretendam atingir as estrelas, sim, mas com toda veemência, arrogância e temeridade de uma tecnologia diabólica, a serviço de clubes de celerados que se intitulam baloeiros.
Poucos anos atrás, passei muitos festejos de São João em Maricá e em Itaipu, onde pude ver os tais clubes de baloeiros em ação. O que vi me horrorizou, mesmo antes da grita geral e do alerta de agora. Os balões são montados como uma operação de guerra, onde todos os expectadores assistem especialmente ao confronto das dimensões gigantescas de cada um. Pois são enormes artefatos, com formas as mais diversas e esdrúxulas, onde competem buchas grandiosas, alimentadas por botijões de gás e que uma vez acesas mais parecem fogueiras de médio porte. Dezenas de pessoas ajudam cada artefato a ser montado, operação que leva algum tempo, às vezes até horas. Uma vez pronta, lá se vai pelos ares aquela fogueira ambulante, toda cercada por metros e metros de papel altamente combustível.
O que vi absolutamente não me comoveu. Antes me intimidou e me encheu de inquietações e sombrios pensamentos. Para onde iriam aquelas tochas voadoras? Que matas, que prédios e casas poderiam os artefatos alcançar? Quantas florestas poderiam ser destruídas por aquela insanidade de tão poucos? E o que é pior, e os aeroportos e os aviões?
Os jornais agora dão conta de que os céus do Rio já voltaram a ser área de risco para a aviação. Já este ano, até maio, foram 23 registros na área do aeroporto. E não só os aeroportos estão em alerta. A Light, concessionária de energia elétrica, registrou nos cinco primeiros meses do ano sete quedas de balões em sua rede. Ou mesmo próximas a ela que causaram mais de cinco mil interrupções de clientes. O coordenador da empresa, Ronaldo Almeida, ressalta como esse crime pode prejudicar toda a população. Somente nos cinco primeiros meses de 2023, a Light registrou sete quedas de balões em sua rede ou próximos a ela, causando um total de 5.466 interrupções de clientes. No total, foram 3.928.693 horas sem energia elétrica. O número já supera todas as ocorrências registradas em 2022, quando seis balões atingiram a rede. O ranking de 2023 é liderado pelo município do Rio de Janeiro, com quatro ocorrências, seguido de Queimados com duas e São João de Meriti com uma.
Verdade seja dita, algumas campanhas populares se fizeram desde a década de 90 contra “soltar balões”, mas o efeito se tornaria nulo por dois motivos: o primeiríssimo pela falta de punição exemplar para os baloeiros, e o segundo pela falta de continuidade das campanhas, irregulares em sua periodicidade. Ou seja, o nosso velho problema brasileiro: cada autoridade nova que entra não continua o que seu antecessor vinha realizando, especialmente as coisas uteis e urgentes. Além, é claro, da eterna impunidade para os infratores.
Agora, a surpresa mais irritante: você sabia que existe uma lei que passou a vigorar desde 1998 (Lei 9.605) que determina até três anos de prisão e multa para quem fabrica, armazena, vende ou solta balão?
Baloeiros buscam legislação que permita o lançamento dos balões sem fogo; a Aeronáutica pretende regular a prática a partir do próximo ano. Associações de praticantes do baloeirismo afirmaram em audiência pública na Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados, que a falta de regulamentação da atividade tem sido o principal entrave para a realização de eventos. Ao contrário dos conhecidos balões de São João, que utilizam materiais inflamáveis e podem provocar incêndios, o baloeirismo envolve a fabricação e a soltura de balões artesanais de papel, que não são tripulados e não utilizam fogo.
Finalmente, gostaria de arriscar uma opinião guardada no fundo do meu peito. É para dizer que não acredito que os baloeiros se sintam cidadãos malignos, muito menos responsáveis por tanta desolação, destruição e prejuízos. Só que eles precisam ser devidamente informados (e punidos) pelos riscos que sua diversão pode causar. Ou seja, penso que os baloeiros procedem exatamente da mesma forma que aqueles que cultivam a abominável cultura da bandalha no Rio, os que emporcalham a cidade jogando lixo nas ruas, estacionam carros em lugares proibidos, não respeitam as leis do silêncio, etc. e tal.
Os baloeiros acreditam, contudo, num momento de beleza. Um único que seja, o do balão aos ares em busca do infinito.
Como diria um velho amigo, mineiro muito desconfiado, comentando ironicamente políticos sedutores: de nada adianta um minuto do deslumbramento da visão de uma onda gigantesca se ela pode afogar você no minuto seguinte.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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