Por Lincoln Penna –
Quem controla o passado, controla o futuro.
(George Orwell, 1984)
Houve tempo em que se sonhava com o futuro, geralmente entendido como algo promissor, a nos libertar da pesada carga de mazelas e frustrações. Era um olhar de esperança calcada nos modelos aparentemente avançados de nossos colonizadores e colonialistas, e não em nossas próprias capacidades. Quando muito, inspirados esses sonhos à luz dos recursos naturais abundantes em condições de nos permitir transformá-los em ativos sem nos apercebermos do alto custo do usufruto desse patrimônio natural. Carecíamos de consciência mínima, da autoestima, decorrentes da condição de subalternidade alimentada por quem dela se beneficiava.
É no presente que se tem consciência do passado e se projeta o futuro. É nele que é exercida a faculdade de pensarmos como a ele chegaremos e do que fazer deste presente tendo em vista o que desejamos projetar para as nossas vidas. Mas, o passado com o qual nos ocupamos é um legado que se encontra produzido, não por nós, mas pelos que o registraram de uma forma a interessar que ele seja conhecido tal como nos chega ao nosso conhecimento. Ele está fundamentado numa retrospectiva histórica que nos é dada como fato a ser reproduzido pelas instâncias encarregadas de preservar a nossa história comum como povo.
A ignorância induzida costuma ser o aliado dos poderosos, cuja revisão ou reconstituição do passado não lhes interessa uma vez que pode mexer com os seus interesses provenientes de condições herdadas do passado que subjugou e suprimiu uma coletividade fraternal. Esta é a razão pela qual, este passado reconstruído deve permanecer como se encontra hoje nas narrativas históricas de uma tradição reapresentada para o conhecimento das gerações que se sucedem. Faz parte, portanto, de um discurso oficial que encontra guarida na maioria dos manuais de ensino a reproduzir as supostas verdades históricas.
Se rebuscarmos as nossas origens vamos descobrir que nos constituímos como comunidade humana de forma coletivista, ou se quiserem, de natureza socialista, uma vez que não havia diferenças sociais, propriedade privada ou nichos representativos de qualquer poder de mando senão a própria coletividade. O denominado comunismo primitivo era assim designado para definir uma vida comum, plena de parceria voltada para as necessidades de todos os seus membros, seja na defesa contra eventuais perigos a rondar a sobrevivência da comunidade, ou para prover sua própria subsistência.
Assim, o socialismo enquanto representação daquelas comunidades originárias do ser humano não foi uma invenção de filósofos inventivos. Existiu como um fato histórico em nossa própria pré-história, que segundo Karl Marx ainda não se extinguiu, uma vez que só acontecerá quando retomarmos a nossa própria natureza, isto é, a de nos reunirmos fraternalmente sem distinções que nos separem de nossos coirmãos. Entendo, pois, que a socialização que coexiste naquele nosso DNA histórico possui na sua formação um caráter comunista, embalado pela prática da solidariedade conjunta, ou seja, pela lógica do socialismo, só possível numa sociedade de iguais.
Durante a prevalência das hordas humanas que viviam de forma nômade e mesmo após se fixarem sedentariamente em determinados espaços fartos de recursos da natureza para que pudessem saciar suas privações, ainda persistia o caráter socializante do trabalho comum a beneficiar a todos. Num dado momento, as disputas empreendidas por outros grupos em busca das mesmas fontes de reabastecimento geraram os primeiros conflitos pela posse da terra e desses recursos que passam a ser disputados. É a origem remota da propriedade privada e o início das classes sociais mesmo de forma incipiente.
Em cada grupo orgânico original, no entanto, prevaleceu o caráter socializante da distribuição das necessidades, cujo fim só aconteceria com a reprodução dessa prática de ocupação de áreas férteis em disputa a estimular a cobiça. Logo, o surgimento da propriedade privada se dá conjuntamente com a aparição das primeiras formas de classe social, os detentores dos escassos meios de produção e aqueles a eles submetidos.
Com isso, cresce a desigualdade primária movida pelo controle dos meios de produção da vida e de sua reprodução. Emerge, assim, um poder de mando dos que detém esses territórios e desaparece pouco a pouco a solidariedade então comum naquele ser social que fora forjado na luta pela existência comum. O prenúncio da usura passa a ter lugar onde seria impensável a sua presença. E ela será alçada à condição de uma lógica a presidir a sociedade de classes que começava a ter seus primeiros contornos. Essa conjugação entre a progressiva desaparição do comunismo originário e a interpretação que sugere que a sua supressão representou um fator de desenvolvimento da espécie humana resulta na correspondência de um centro de poder a dar sentido a essas conclusões de sorte a justificar as desigualdades sociais que passam a presidir as relações sociais.
Se a formatação de uma comunidade de iguais na qual prevalece o mais profundo significado do comunismo, aquilo que é absolutamente comum a todos numa comunhão consensual, o ideário socialista como sentido a ser emprestado a essa relação comunitária não se apagará por completo, muito embora seja secundarizado com o tempo em virtude da preeminência da lógica que concede ao interesse particular um lugar cada vez mais valorizado. Em outras palavras, o comunismo original desaparece pouco a pouco com o advento das sociedades de classes, porém o sentido da cooperação de cunho socialista permanece ainda que obscurecido pela nova ordem que se impôs com a desigualdade original presidida pelos que passam a deter os meios de produção.
São vários os tipos de sociedades que a partir da dissolução das comunidades primitivas vão ser constituídas. Logo, são modos diversos de produção e reprodução que irão alavancar de vez as desigualdades sociais até a instauração de vez do domínio do capital ao originar o capitalismo como o modo de produção que assumirá seu poder sobre praticamente todo o globo terrestre. De início, através de conquistas territoriais que resultaram na formação de grandes impérios coloniais como sabemos, e logo após com o domínio indireto pela via da ação imperialista a subjugar nações em todas as partes do mundo sugando seus recursos naturais e materiais.
Por outro lado, o controle do saber sobre o que se passou em nossas origens produziu a crença segundo a qual foi o desenvolvimento da técnica associada ao capitalismo industrial o responsável direto pelos avanços de nossa civilização então entendida basicamente como conquistas materiais ao dar a ideia de progresso a ser idealizado por força de uma leitura fundamentalmente impressionista e de natureza ideológica.
Mais do que o controle dos processos produtivos, esse modo de produção produziu uma ideologia de forte impacto, de tal modo que associou definitivamente as atividades econômicas ao seu modo de produção, como se a economia moderna estivesse umbilicalmente a ele associada. Arma importante que subverte realidades e as coloca sob a custódia de uma visão de mundo afeita aos seus desígnios.
Em decorrência disso, impôs uma narrativa histórica que o justifica como símbolo do desenvolvimento civilizatório relativo ao avanço da ciência e, por conseguinte de todas as conquistas que permitiram melhorias para o ser humano. Esta descrição da modernidade como associada ao desempenho do modo de produção capitalista naturalizou todos os feitos da humanidade de modo a atribuir ao capitalismo o mérito de se ter alcançado esse patamar de avanços, no qual o ser humano seria tão somente um instrumento a ser parte integrante desse processo.
Nesse processo de desumanização do ser humano vale tudo. E mais recentemente e diante dos holofotes das redes sociais surgiu o expediente da indústria da desinformação, as já conhecidas fake news, capazes de distorcer tanto quanto possível as verdades enquanto filtro original das realidades subvertidas ao capricho dos ideólogos de um modo de produzir não apenas a produção material com vistas aos lucros demasiados robustos, mas também a desinformação. Esta passou a ser um instrumento visando iludir, confundir e travestir as realidades com o objetivo de alienar os povos que são objetos dessa arma a dispensar outras, dado o alcance atingido pelo seu uso.
Frente a essas ameaças só resta à humanidade ciente do perigo que tal processo alcance resistir por meio de um mutirão organizado à escalada do desmonte de valores humanitários. Estes sim cada vez mais pisoteados pela fúria incontrolável do apetite devastador da usura nos nossos tempos de crise aguda de um modo de produção que manifesta o seu apetite incontrolável em busca da acumulação desenfreada. E ela não se limita à acumular riquezas e produzir miséria, mas em criar falsas crenças que remetem à ideia de que só a competição é capaz de obter o progresso humano, como se esta noção de progresso se resumisse em ganho e não em felicidade compartilhada. Outra tara que tem nos conduzido a negar a nossa existência de modo a somar-se a tantas outras delas decorrentes a infernizar os anseios mais comezinhos de compaixão necessariamente irmanada.
E para isto acontecer é preciso dar vida à ciência do saber, isto é, constituir um anteparo para barrar essas investidas continuadas de uma lógica que prioriza o ganho material e não o ser humano. Logo, urge que se ponha em prática o conhecimento da realidade. E este se dará mediante a mobilização da consciência histórica no encalço de nossa trajetória no mundo conectando-se assim com as nossas origens remotas, aquelas que nos fizeram seres humanos constitutivos de uma comunidade de destino comum. Evocar o comunismo não é senão contemplar o que somos potencialmente, sem os males que nos foram impostos com a sua erradicação.
Ao contrário do fascismo que exalta os impérios de um passado opressor, os que se abrigam na perspectiva socialista desejam conscientemente a volta de um outro passado mais remoto ainda e mais justo. Aquele que nos deu origem como seres humanos congregados em torno da subsistência e na prática do bem comum. É no comunismo que encontramos a maior demonstração de que a unicidade orgânica de seres sociais coligados e irmanados torna possível a felicidade de todos. Numa sociedade massivamente industrializada ou posta a serviço de uma produção de mercadorias voltadas para um consumismo desordenado e insaciável, a busca da felicidade parece ter se desviado para gêneros perecíveis e inteiramente descartáveis de modo a empobrecer a ideia de felicidade só pode ser compreendida mediante a prática do amor ao próximo e a relação harmoniosa com a natureza.
Não precisamos renunciar as conquistas materiais alcançadas ao longo do tempo histórico, fruto basicamente do trabalho do ser humano, jamais exclusivamente atribuídos ao engenho das sociedades de classes, cujas práticas para alcançar essas conquistas foram profundamente danosas para homens e mulheres. Mudar essa realidade é possível e necessário por uma questão de fazer valer algo que aprendemos com o nosso viver, a justiça social, patrimônio de nossa consciência coletiva que herdamos lá atrás e que permanece presente para todo o sempre.
Voltemo-nos para aprimorar e dar lugar à inclusão social, de maneira a reverter a lógica perversa que privilegia alguns em detrimento das grandes massas humanas deserdadas e colocadas em condições aquém de suas necessidades básicas de vida. Se foi possível tantas e tamanhas realizações materiais, científicas e tecnológicas, basta que as dividamos com os nossos semelhantes.
Isto é um mandamento socialista que devemos observar.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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