Por Siro Darlan –

Série Presídios (4).

Em 2015, no julgamento da ADF nº 347, o STF considerou a situação prisional no País um “estado de coisas inconstitucional”, com “violação massiva de direitos fundamentais” da população prisional, por omissão do Poder Público. Tudo muda, inclusive as leis. Estas mudam e devem mudar para evitar que outros construam uma ordem jurídica negativa de si própria, uma ordem jurídica anomiana, uma ordem jurídica de predadores e de caçados. A mesma instituição que proíbe que juízes visitem os presídios, afirma que é necessário investir em ações educativas e laborais, intra e extra muros. A garantia dos direitos ao estudo e ao trabalho no cárcere, para além de ativar o direito à remição de pena e à constituição de pecúlio, possibilita à pessoa presa imaginar (sonhar e ter esperança com) um futuro diferente para si. A rotina da pessoa presa transforma-se em algo próximo ao suportável quando a expectativa de um futuro melhor se faz presente.

As novas fronteiras colocadas no mundo pós-pandêmico são e vão sentir a turbulência dos desafios que a tecnologia, a biogenia e a diversidade cultural e religiosa colocam ao Direito como ciência, como arte e como instrumento de abolir a violência, incluindo a violência judiciária – e gerador de equilíbrios entre a liberdade como direito subjetivo, mas acima de tudo como princípio do ser humano como um fim em si mesmo. É sabido que a dignidade da pessoa humana é a primeira, contínua barreira axiológico-constitucional, mas consideramos que devemos colocar o sistema a serviço do ser humano e não o ser humano e sua dignidade ao serviço do sistema.

A prisão, sempre e em todo lugar, viola os direitos fundamentais e compromete gravemente a dignidade humana dois condenados. Não existe exemplo histórico de uma prisão capaz de limitar o sofrimento do condenado somente ao que concerne à privação da liberdade pessoal. A pretensão punitiva de fazê-lo através da privação da liberdade pessoal necessariamente implica o comprometimento sistemático de outros direitos fundamentais: da vida à incolumidade física; da efetividade á saúde; do trabalho à instrução; etc. A prisão, para ficar bem claro, cada vez mais se mostra como uma pena pré-moderna, como sofrimento mais do corpo do que da alma.

A hipocrisia do sistema é uma realidade cruel. Ao mesmo tempo que um membro de uma instituição responsável pelo atual caos do sistema penitenciário afirma: “A transformação da realidade das unidades prisionais depende também da participação da sociedade civil na execução penal, a qual tem sido fomentado pelo CNJ a partir da Política Judiciária para o Fortalecimento dos Conselhos da Comunidade, instituída pela Resolução nº 488/2023. Este importante órgão, previsto na LEP, tem atribuições legais que o habilitam à condição de aliado de primeira grandeza para a melhoria das condições de aprisionamento e dos serviços penais”. Esse mesmo agente proíbe a entrada de magistrados no sistema, como se tivesse alo a esconder da sociedade.

Não é possível que não conheça a péssima qualidade da alimentação, assim posta intencionalmente para montar “Cantinas” de propriedade de agentes públicos, advogados e segundo me informaram vários internos, até de um desembargador que explora a situação humilhante e faminta dos condenados para cobrar taxas exorbitantes pelo material vendido nessas “Cantinas”. Informou um preso que uma coca cola gelada chega a custar $30,00, um misto quente $80,00; o empréstimo de uma furadeira vale $4000 reais. Se o preso não tiver dinheiro na cela já há um sistema de empréstimo de um aparelho celular que funciona para que o interno peça dinheiro a parentes além das grades. Para combater isso não precisa de orçamento, nem aumento de despesas. Basta um monitoramento e fiscalização eficientes.

Diante dessas práticas perversas, os informantes ressalvam que há muito guardas penitenciários honestos e que trabalham com retidão e respeito, mas a vida indigna que levam atrás das grades é incompatível com o desejo e a finalidade de ressocialização. A função negativa dessas atividades de alguns agentes do estado pretende criar todas as condições adequadas a evitar que um comportamento lese ou coloque em perigo de lesão um bem jurídico através de uma lógica de mudança do próprio sistema como um todo de modo a ser capaz de ao longo dos tempos responder aos desafios sem se deteriorar e sem se desintegrar.

Contudo há uma semente de esperança dentro do Sistema Penitenciário, que são as Escolas ali instaladas. Algum desavisado pode pensar que os professores que ali lecionam são os menos gabaritados e por isso teriam sido “castigados” com essa missão. Ledo engano, eis que tenho conhecido mestres lecionando nos presídios que são verdadeiros agentes libertadores. Através do conhecimento levam os presos a refletirem e muitos tem se alfabetizados e até formaturas já assisti detrás das grades. Os professores e professoras costumam ser mais que simples funcionários da educação cumprindo horário, são seres muito especiais que assumem essa curadoria da sabedoria e se fazem amar e são respeitados por seus alunos. Uma dessas professoras disse que: “O que nos motiva é saber que estamos levando a possibilidade de um futuro melhor. A vida não se resume a isso aqui”.

Graças a isso o DEPEN – Departamento de Politicas Penitenciárias informa que em 2022 houve mais de 70 mil presos candidatos do ENEM – Exame nacional do Ensino Médio. O judiciário tem concedido remição de cem dias da pena para os aprovados para que possam frequentar presencialmente as faculdades. Um desses aprovados deu a seguinte declaração:

“Eu nasci em um lugar onde a pobreza impera. Era para ter começado a trabalhar para comprar minhas coisas, mas acabei escolhendo o lado errado da vida. Depois de ser condenado, meu foco passou a ser terminar meus estudos. Quero esquecer meu passado e dar orgulho para a minha mãe. Graças ao incentivo das professoras, eu não desisti.”

Leia também:

1- A roubada dos presídios federais – por Siro Darlan e Raphael Montenegro

2- Para que servem os presídios? – por Siro Darlan

3- Como transformar seres humanos em seres sem dignidade humana – por Siro Darlan 

SIRO DARLAN – Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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