Lincoln Penna –

Há muitos democratas brasileiros que clamam por democracia, seja pela sua manutenção como regra básica de convivência nas relações sociais ou pela sua efetiva concretização em um país ainda carente de seus fundamentos.

Pleito, sem dúvida, mais do que oportuno, pois é necessária a democratização de fato de nossa sociedade, marcada por uma permanente fragilidade. Todavia, é preciso que se atente para o fato de que para o funcionamento das práticas democráticas torna-se imprescindível a existência de um regime efetivamente republicano. E isto não acontece em razão da República no Brasil ter-se instalado de cima para baixo, logo sem a participação consciente do povo.

A República é um regime que para a sua existência necessita estar ancorada em práticas democráticas. Não seria demais dizer que república e democracia são indissolúveis, pois só integradas cada qual pode realmente existir em sua plenitude. E isso acontece não apenas do ponto de vista teórico. É na conjugação funcional de ambas que elas se realizam por completo. Não basta evocar seus nomes para que existam em comunhão com aqueles a quem elas devem representar.

Com isso, o que importa é que em não havendo um regime republicano que ponha para funcionar a coisa pública, ou seja, o interesse do povo irmanado em um conjunto de cidadãos, qualquer alusão à democracia é falsa. Da mesma maneira que a ausência do republicanismo como cidadania coletiva torna inócua a sua existência, uma vez que ganha apenas um carimbo. Nada mais.

E ao assim me manifestar no leito de minhas reflexões quero deixar claro que não considero outro regime político capaz de fazer valer os valores da democracia. A monarquia, por exemplo, por mais que em muitas das sociedades monárquicas contemporâneas sejam observados traços condizentes com as práticas democráticas, o simples fato de eleger um núcleo dinástico e considerar os demais indivíduos como súditos é suficiente para tolher a ideia radical de democracia, ainda que esses estados zelem pelos direitos de todos. Peca, portanto, na origem ao desfigurar a igualdade de todos quando confere a condição de majestade para alguns. Afinal, como se sabe, a república surgiu como contraponto às monarquias em suas origens.

Acresce a isso que em um sistema capitalista a possibilidade de se conciliar a coisa pública, razão primária do regime republicano, com a coisa privada descaracteriza a sua lógica. Daí, que a perspectiva de se alcançar uma democracia passa por refundar a República e remover a lógica da usura, do lucro e da acumulação à custa da força de trabalho assalariada, ou é inviável qualquer proposta de adequação desse regime sob a égide do capital comportar as práticas democráticas. Elas até podem funcionar para um pequeno grupo de apaniguados do sistema em vigor, mas estará sempre a carecer de legitimidade democrática.

Em razão do exposto, creio que se encontra na ordem do dia, embora tardiamente, a imperiosa demanda pela construção de uma alternativa que tenha condição de associar plenamente os princípios republicanos para que seja viável a adoção das práticas democráticas sem restrições ou, evidentemente, sem que se mantenha todo e qualquer privilégio.

Logo, a perspectiva de uma sociedade não capitalista a reinventar o socialismo como ideário e objeto desejado pela consciência dos que perceberam os males de origem que acorrenta grande parte do povo deve ganhar os corações e mentes. Neste processo devem-se descartar modelos apriorísticos porque se trata de uma construção coletiva e calcada numa realidade concreta, muito embora socialmente resultante de um acúmulo de experiências reinterpretadas à luz de novas situações e desafios que batem em nossas vidas continuamente neste mundo mutante.

É importante mencionar que nessa situação em que passa o mundo que produziu um sistema de desigualdade social dos mais perversos acumularam-se também um passivo que precisa ser enfrentado simultaneamente com os danos derivados dessa desigualdade produzida pela espoliação de gente e de povos e suas culturas. Refiro-me aos danos que afetaram duramente a natureza, o clima e em conseqüência as sucessivas intempéries que temos ultimamente conhecido, com previsões ainda mais catastróficas no decurso do século XXI.

Conjugar as perversões de um processo histórico marcado pelas várias formas de exclusão social a perpetuar as desigualdades com a imediata concepção de uma série de providências que impeça a escalada de novas e mais graves transtornos, eis uma tarefa que se coloca para a humanidade. E esta deve ser parte constante dos projetos políticos que se inspiram no princípio de solidariedades dos povos.

Só mesmo uma consciência dirigida para um sistema que atenda a todos e não apenas a alguns tem a possibilidade de realizar com êxito essa conjugação de esforços a pensar exclusivamente na velha e sempre presente utopia a ser realizada, a da fraternidade universal.

Enquanto isso faz bem a evocação da democracia como um bem coletivo. E mais ainda: que sua existência seja objeto de defesa inegociável. Porém, não se deve ter a ilusão de que as práticas democráticas possam ser partilhadas por todos, caso não se enfrente o contencioso da ignorância, do egoísmo e dos interesses de classe e de grupos a buscarem incessantemente a preservação de estruturas que tolhem o fruir da democracia para todos.

Para que a democracia venha a ter um futuro grandioso é conveniente que nos ocupemos em consolidar a nossa imprópria República, uma vez que ela não tem se revelado em momento algum como aquele regime que envolveu velhos e novos sonhadores, isto é, o regime da cidadania universal. Em sociedades de classe, os regimes republicanos e as democracias tendem a se desfigurarem. Reaver esses ideários implica em revolucionar as nossas práticas sociais e políticas.

E a rever crítica e conscientemente a nossa presença no mundo compartilhando o bem comum com os nossos concidadãos.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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