Por Carol Proner

A justiça de transição no Brasil nunca foi completa, e pagamos um alto preço por isso.

Das dimensões que compreendem um adequado processo de revisão e transição da ditadura para a democracia, o Brasil avançou em três fases, mas deixou de lado talvez a mais importante, a dimensão da justiça.

Não há dúvidas de que alcançamos a memória histórica com diversas políticas públicas dedicadas à revelação, ao reconhecimento e aos registro da violência e das vítimas. Também enfrentamos o processo de restabelecimento da verdade histórica, sendo a instalação da Comissão Nacional da Verdade o mais cabal exemplo. E não se pode deixar de reconhecer o extraordinário trabalho da Comissão de Anistia, instalada com força de lei no âmbito do Ministério da Justiça e que realizou processos de reparação individual e coletiva documentando a perseguição a 40 mil pessoas atingidas por atos de exceção.

Mas é preciso admitir que, apesar dos avanços, nunca houve acordo a respeito da dimensão da justiça e da responsabilização. Os militares foram poupados em um estranho pacto de silêncio que penetrou na democracia em forma de tabu inquebrantável.

Para quem estuda direito internacional, é claríssimo que o Brasil viola a convencionalidade do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e descumpre decisão judicial ao não revisar a Lei de Anistia (Caso Gomes Lund vs. Brasil). O Supremo Tribunal Federal, pode-se dizer, se acovardou diante da apreciação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 153 (ADPF 153), e se recusou a revogar a Lei de Anistia. O entendimento do STF, em resumo, foi o de que a Lei de Anistia havia sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988 com base na interpretação histórica e no caráter de lei-medida e não caberia ao Poder Judiciário reescrever a história.

Mais adiante, recordemos que a própria lei que criou a Comissão Nacional da Verdade não previu a dimensão da responsabilização. O relatório final registrou 377 nomes de violadores dos direitos humanos e recomendou a responsabilização criminal, civil e administrativa de 196 pessoas, muitas das quais ainda estão vivas, mas o mandato da Comissão se restringiu a isso.

Finalizados os trabalhos, em dezembro de 2014, o Relatório da CNV não chegou a produzir efeitos. O ano de 2015 pode ser considerado de sabotagem política e preparatório ao Golpe de 2016 que, ao que parece, contou com o conhecimento e a simpatia dos mandos militares.

Após a destituição de Dilma Rousseff, marcada pelas homenagens a torturadores, iniciou-se o desmonte das conquistas da transição. Michel Temer deu início ao esvaziamento da Comissão de Anistia tão logo assumiu o poder. Hoje, o pouco que sobrou é considerado pelos especialistas um desrespeito à memória histórica e à luta pela resistência democrática.

Mas para além da blindagem militar, há outra dimensão dentro da responsabilização que é ainda mais hermética: o papel cúmplice e até colaboracionista de setores do sistema de justiça, por vezes fazendo vista grossa, por vezes atuando como defensores do método da tortura que se instalou como regra nos porões militares.

O que mais impressiona nos áudios secretos do Superior Tribunal Militar revelados agora não são as sevícias com requintes de perversidade sexual contra mulheres grávidas que ocorriam nos interrogatórios do DOI-CODI, ou as mortes por espancamento ou os filhos abortados. Isso já se sabia, já estava registrado no livro Tortura Nunca Mais ou nos vários registros de memória da violência.

O que mais impressiona nos segredo de audiência do STM revelados agora são os fundamentos e as justificativas dos votos de um tribunal que admite que a sua função não era fazer justiça, mas defender a “Revolução”.

Na voz do almirante Júlio de Sá Bierrenbach, um dos ministro do STM em voto revelado nos áudios, “antes de julgar os homens, devemos julgar os papéis, isto é, a procedência dos autos dos processos” (Apelação 41.264). Depois da frase de efeito, o almirante passou a justificar a impossibilidade de reconhecer as torturas pela falta de elementos probatórios, admitindo que eventuais atos eram isolados e de responsabilidade de policiais sádicos.

Podemos concordar com o almirante Bierrenbach: antes de julgar os homens devemos julgar os papéis, uma frase adaptável aos diversos tempos da história. Podemos perguntar por que, em democracia, o tribunal constitucional decidiu preservar o pacto de silêncio. Ou por que os Ministros demoraram tanto para conceder ordem de acesso aos áudios do STM e a outros documentos. Podemos indagar qual o papel do judiciário atualmente e por que esse tema segue sendo um tabu mesmo diante da impotência militar.

As falas do vice-Presidente da República Hamilton Mourão e do atual Presidente do STM, Luis Carlos Gomes Mattos, como reação de repúdio aos áudios, demonstram que esse assunto não está morto, ao contrário, que se torna inadiável revisar a Lei de Anistia e romper o pacto de silêncio para se alcançar a verdadeira democracia.

CAROL PRONER é advogada, doutora em direito, professora da UFRJ, membro do Grupo Prerrogativas e da ABJD e diretora do Instituo Joaquín Herrera Flores – IJHF

Publicado inicialmente no Brasil 247. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com 


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