Por José Macedo

“Se a atuação do Brasil nos faz um pária internacional, que sejamos um pária” (Jornal El Pais)

Esta foi uma das frases  pronunciada pelo chanceler, Ernesto Araújo, no seleto colégio Rio Branco, que prepara diplomatas. Neste momento, o mundo isola nosso País como ameaça global. O pior está por vir. Alguns países já se movimentam para uma intervenção em nosso País, sob a justificativa de salvar a humanidade e os brasileiros.

Para todos, estudamos e nutríamos esperanças de ver nosso País soberano e próspero, seria melhor acelerar a máquina do tempo, para que tudo isso passe rápido, mesmo sabendo de seus custos, sofrimentos e perdas. No final do século XX, cientistas sociais e economistas acreditavam viver em uma sociedade estável, segura e próspera. O século XXI colheria os frutos da riqueza capitalista e do progresso da humanidade.

Esses prospectivistas não enxergavam as crises e incertezas próprias do sistema capitalista, coincidindo com a derrocada do sonho socialista. Assim, predominava a imaginação na década de 1990, com a declaração do “fim da história”, da Guerra Fria e do culto à globalização. O século XX não foi paradigma, nem poderia servir de fundamento a ser seguido ou mesmo, modelo para o atual século XXI. Em muitos aspectos, o século XX alavancou o progresso, bem como a prosperidade material, mas careceu de estabilidade e de segurança para toda a humanidade, os conflitos, as guerras e a fome assustaram a todos, constantemente. Hoje, a humanidade sofre profunda crise e é corolário da incerteza e incapacidade dos países administrarem suas crises, incapacidade de antecipar-se, de evitar suas ações perversas contra a natureza e o meio ambiente.

A atual crueldade da crise sanitária tem sua origem na má vontade da humanidade de impor limites na destruição da  natureza e sobretudo, da geração da pobreza e da degradação ambiental. Tudo isso, de um lado, um pequeno percentual da população mundial usufrui da riqueza produzida por todos; do outro, uma maioria torna-se vulnerável e não possui o mínimo dos nutrientes de que necessita para viver.

O Estado, através de seus governos, é omisso, é cúmplice e o maior agente da violência, neste início do século.

A prospectiva de estabilidade desenhada no imaginário de estudiosos e tecnoburocráticos, especialistas em estatística e em econometria, auxiliares da ciência econômica, equivocaram-se. Assistimos o insucesso e o fracasso da ciência económica e do direito. Os desmatamentos, queimadas, detritos químicos e outros agentes destruidores causam desequilíbrios, no setor produtivo. Os efeitos dessa destruição vêm de modo lento e imperceptível sob diversas formas, como doenças, vírus, pandemias etc. Por isso, a maioria dos estudiosos, economistas, cientistas políticos e estatísticos, até aqui, equivocaram-se com relação ao “breve século XX”, analisado pelo historiador, Eric Hobsbawm, no livro “A Era dos Extremos, o Breve Século XX”.

Senão, vejamos.  Na verdade, o século XX foi permeado de conflitos, guerras e genocídios, doenças, vírus, contágios,  dizimação de populações, ora pela fome, ora pela violência individual e do Estado. Concomitante às frustrações, tivemos o progresso, a ciência e o conhecimento, em todos os segmentos. A ciência, desenvolvida no século XX, tem sido a maior parceira da vida. Nessa análise, não posso deixar de pensar nos séculos anteriores, as descobertas da lâmpada, do telefone e do automóvel no final do  século XIX.

No século XX, foi descoberta penicilina, em 1928. Apesar do progresso na medicina e a tecnologia na agricultura, controle de pragas, melhorando a nutrição e a qualidade de vida, não resolveram a questão da fome, que continuou matando populações em diversos países e continentes, repito. O racismo, a desigualdade social, as perseguições contra o pobre, contra a mulher permanecem vivas e não demonstram sinais de melhorias. No Brasil as estatíticas assustam, até àqueles mais insensíveis. Os assassinatos de negros e de mulheres parecem intermináveis, apesar da leis. Esses males matam milhões, desde Caim, citando a Bíblia, quer se acredite como livro histórico ou revelado.

Quando reflito sobre a condição humana, lembro-me do mouro Otelo retratado na Tragédia de Shakespeare, do ano, 103. Assim, a peça é, perfeitamente, adaptável ao mundo de hoje à nossa condição de humanos. Que nos diz a Tragédia, “Otelo de Shakespeare, em 160 (sec. XVII)? Quem conhece a peça, observa vinculação com os dias atuais. Shakespeare é um profundo conhecedor da natureza humana, esta era capaz de assassinar, vingar, odiar, emitir notícias falsas (fake news), de racismo, homofobia, misoginia, até de amar. Otelo, mouro, negro, General de Veneza, bem sucedido, conhece a jovem branca, Desdêmona, apaixonam-se, apesar do pai, um general eminente e branco, opor-se. No meio desse mundo branco, Otelo é vitimado por um oficial, de nome Yago, que teria sido preterido em uma promoção. Yago, motivado pelo ódio, vinga-se, espalha a mentira de que sua amada o traía. A falsa notícia espalha-se e prospera, apesar das veementes negativas de  sua amada. Otelo é atacado pela fúria do ciúme, imagina ser Desdêmona sua propriedade, mata-a. Nesse contexto de amor, ciúme, poder, ódio e lamentos, Otelo descobre a farsa. O terrível desfecho acontece, Otelo mata-se, com o próprio punhal no coração. O racismo, as fake news, a vingança, o feminicídio  a xenofobia, a autodestruição e o amor estão presentes nessa tragédia shakespeariana.  São esses os sentimentos da condição humana.

A narrativa dessa tragédia merece nossa reflexão,  tecendo uma analogia com os dias atuais

Desde 2016, quando foi sancionada a Lei do Feminicídio, cujo objeto é o de reprimir e condenar agentes criminosos contra a mulher, no âmbito familiar espera-se melhora nos índices desses crimes. A lei motivou preocupações, despertou debates e e discussões nos meios jurídicos e em toda sociedade. Houve esperança e foi responsável por maior  conscientização da mulher sobre sua condição. Antes, foi sancionada pelo presidente Lula a Lei 11.340, de 7/08/2006, Lei Maria da Penha, de nome sugestivo e emprestado pela vítima, Maria da  Penha, uma mulher que ficou paraplégica, em virtude das surras sofridas. Ao afinal, o marido foi condenado, mais pressão da sociedade. Com o tempo, essas Leis perderam seus efeitos iniciais, eficácia e efetividade.

Nesse quadro negativo, em 2016, a presidente Dilma sancionou a Lei do Feminicídio, com objeto ampliado, atinente a crimes praticados, em razão de sua condição de mulher. O artigo 121, dispositivo do CP foi ampliado, para recepcionar a Lei.  Atualmente, o governo federal apregoa, aos quatro ventos, a diminuição dos índices de criminalidade no país, ao contrário, explodiu o número de assassinatos contra mulher. Em 2019, os números de crimes de feminicídio, traduzidos em sequestros, furtos, roubos, estupros e assassinatos explodiram.

O governo Bolsonaro, por seu ex-ministro, Sérgio Moro, faz vista grossa com relação à esses delitos violentos contra a  mulher. O comportamento do presidente Bolsonaro repete seu preconceito e misoginia, quando é contrariado por uma mulher, foi assim na Câmara dos deputados e como presidente. Recentemente, ocorreu  com jornalista, Patrícia Melo, da Folha de São Paulo,, é um reprovável estímulo, fere a dignidade da pessoa humana, desqualifica-a e banaliza sua subjetividade e honra. Os lamentáveis  episódios retratam ostensiva misoginia e o caráter do ofensor, no caso concreto, o presidente Bolsonaro. Não é novidade, tendo como personagem o chefe do Executivo brasileiro, Jair Bolsonaro, no centro da controvérsia. O governo não se importa, quando as estatísticas exibem um vergonhoso número de 1.310 assassinatos de mulheres, no ano de 2019. Em 2020, em média 5 mulheres por dia foram assassinadas, por sua condição de mulher, somando 1.800, no ano. Nos primeiros meses de 2021, segundo revelam estudiosos o número aumentou, sobretudo, porque os homens têm focado, em casa. No próprio judiciário ocorrem casos reveladores do machismo estrutural. Já assisti, por diversas vezes, o tratamento preconceituoso, até com mistura de ódio e de desrespeito, de juízes  em audiência, o que é lamentável.

Assim, 5 mulheres são assassinadas, a cada 24 horas. O número revela  um aumento, em média, de 8%, na contramão de outros crimes, definidos como violentos.

Este espaço não permite mostrar com maior amplitude esse retrato, manchado pela omissão e desprezo ao fenômeno, violência contra a mulher. Sem medo de praticar qualquer erro, há desprezo sim, há omissão e má vontade contra a mulher, nas questões, ora analisadas. Faço Lembrar que, os números são alarmantes, quando analisamos a condição da mulher negra, favelada e pobre. Os índices negativos saltam e surpreendem, mas não preocupam esse governo, mesmo sabendo de que, a probabilidade da mulher negra e pobre ser assassinada é de 2,7 vezes mais, com relação à mulher branca. Fiz essas digressões, não me restringindo ao tema, objeto do título deste artigo, com intuito de mostrar, que o século XX deixou progresso material, mas deixou, também, heranças nefastas e de difíceis reparação em nossas vidas. Apesar da ciência e do conhecimento, porém, em muitos dos seguimentos da sociedade, há retrocessos, nas relações sociais, violência familiar, educacionais, qualidade de vida, na saúde, desprezo e conservação da natureza.

Finalizo repetindo o que disse, nesta semana, o Jornal El País, em uma de suas matérias: “O Brasil torna-se pária mundial”.


JOSÉ MACEDO – Advogado, economista, jornalista e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.