Por Jeferson Miola

Passados quatro dias do bombardeio do prédio onde funcionava um hospital materno-infantil na cidade de Mariupol, no sul da Ucrânia, prossegue a guerra de versões. Enquanto isso, a verdade – a vítima imediata de toda guerra – continua agonizando.

O bombardeio de um hospital é um crime de guerra e contra a humanidade. É causa suficiente para levar seus mandantes e executores ao banco dos réus do Tribunal Penal Internacional e das Cortes e Tribunais internacionais de direitos humanos.

Para que os autores possam ser denunciados é indispensável, entretanto, haver uma denúncia bem documentada e bem fundamentada. É preciso documentar e registrar imagens, colher depoimentos e testemunhos, identificar e catalogar as pessoas feridas, vítimas fatais etc.

Apesar de líderes mundiais terem empregado adjetivos fortes para condenar o ataque, ainda não se conhece, contudo, nenhuma apuração preliminar séria e imparcial sobre o evento.

A propagação de uma narrativa

Os golpes de estado, promovidos no Brasil (2016) e na Venezuela (2002), através de tramas entre os Estados Unidos a oligarquia e setores do judiciário locais, foi um dos temas do evento “Jornalismo de Guerra”, realizado dia 15 de abril de 2018 no auditório Modesto da Silveira na sede da OAB-RJ, pelo Jornalista e Editor do jornal Tribuna da Imprensa Sindical (agora Tribuna da Imprensa Livre), Daniel Mazola e pelo Advogado Aderson Bussinger, Diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ. (Divulgação)

Em lugar do esclarecimento da verdade prevalece, no entanto, a prioridade em se propagar versões que abasteçam a narrativa desejada e pré-concebida. A mecânica disso é rudimentar.

Primeiro, decidem o conteúdo e o alvo da narrativa. E, a partir daí, vão encaixando as peças para dar aparência de verossimilhança, pouco importando se as peças são verdadeiras ou falsas. O fundamental, no caso, é a narrativa; o que importa é a propaganda, não a verdade.

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, por exemplo, alardeou que “Pessoas, crianças estão sob os destroços. Atrocidade!” [9/3]. Em que pese a contundência da denúncia, não existe, contudo, uma única fotografia ou filmagem de uma única criança “sob os escombros”.

E a imprensa não se preocupou em conferir a veracidade da acusação, apenas repetiu e replicou esta versão na velocidade indomável das mídias digitais.

O Secretário-Geral da ONU António Guterres, de outra parte, denunciou que o ataque foi feito “a um hospital onde estão localizadas as maternidades e as alas infantis, é horrível. Os civis estão pagando o preço mais alto por uma guerra que não tem nada a ver com eles”, disse ele [9/3].

Em resposta, o vice-embaixador da Rússia na ONU Dmitry Polyanskiy acusou Guterres de promover fake news. E lembrou que em 7 de março a Rússia alertou que não havia pacientes e profissionais de saúde no local, pois o hospital passou a funcionar como base militar do Batalhão de Azov, uma milícia neonazista do governo ucraniano.

O Secretário-Geral da ONU, num desempenho incompatível com o cargo que ocupa, apesar da réplica do diplomata russo, fez ouvidos moucos, não abandonou a versão que demoniza Putin e a Rússia e, providencialmente, deixou o assunto de lado.

A porta-voz da ONU para Direitos Humanos Liz Throssel, por seu turno, mencionou a “suspeita de que pacientes estavam escondidos nos porões do hospital” [11/3]. Ela usou uma “suspeita” não comprovada e, talvez infundada, para sustentar a narrativa de que “era um hospital e estava funcionando, com pessoas ali” [sic].

Além disso, a mídia divulgou, a partir de informações oficiosas e também não comprovadas, que três pessoas foram mortas e outras 17 ficaram feridas em decorrência do ataque.

Estranhamente, porém, não foi divulgado nenhum registro das cenas assombrosas descritas pela funcionária da ONU, como também não se tem conhecimento sobre nenhuma das três pessoas alegadamente mortas, como tampouco foi divulgado um único boletim médico de nenhuma das supostas 17 pessoas feridas.

Tivesse de fato acontecido como propagado pelas autoridades, o que seria uma brutal e condenável atrocidade, certamente haveria uma cobertura exaustiva do acontecimento. Mas não é isso o que se observa no caso presente.

O ataque ao hospital e a modelo grávida

De tudo o que foi publicado a respeito do ataque ao hospital, duas informações são coerentes. Uma: o prédio, que antes funcionava como um hospital materno-infantil, foi, sim, atacado. E a segunda informação coerente: a modelo fotográfica Marianna Vishegirskaya, grávida, foi fotografada no cenário.

Mas, quando bombardeado, o prédio funcionava como base militar de setores extremistas das Forças Armadas ucranianas [Batalhão de Azov], alegou o governo russo, sem ser desmentido. Se esta alegação que não foi desmentida for verdadeira, isso significa que no momento do bombardeio já não havia pacientes, profissionais de saúde e civis no prédio.

Em razão disso, a modelo fotográfica, bem como outras pessoas, teriam sido filmadas no local no contexto de uma produção cenográfica executada depois do prédio ter sido bombardeado, como sustenta o site Anti-Spiegel [aqui].

Observa-se, neste sentido, que as pessoas filmadas e fotografadas não aparentam pânico e não estão cobertas de poeira, o que aconteceria caso efetivamente estivessem no local no momento das explosões.

Se a modelo Marianna atendesse a um dos inúmeros pedidos de entrevista, poderia colocar fim a muitos rumores, e contribuiria para o fim desta insana guerra de versões.

O jornal inglês The Guardian publicou reportagem [12/3] sobre o nascimento da filha da modelo supostamente em alguma maternidade da Ucrânia.

Nas fotos da matéria, do fotógrafo Evgeniy Maloletka, da estadunidense Associated Press, Marianna aparece vestindo a mesma roupa de cor bege com bolinhas escuras que aparecia nas imagens do hospital atacado [o esperável seria ela estar vestindo a indumentária própria de ambientes hospitalares no momento do parto ou após o parto].

O canal BBC, de Londres, transmitiu a informação do embaixador da Ucrânia na ONU Sergiy Kyslytsya de que a filha de Marianna foi batizada como Veronika, sem nada mais esclarecer.

A mídia hegemônica e o jornalismo de guerra na guerra

Na cobertura do conflito, a mídia hegemônica tem sido parcial, enviesada e tem propagado um sentimento russofóbico que vai muito além de uma posição anti-Putin. É caso de racismo e preconceito mais profundo. Os meios de comunicação têm atuado como agentes propagadores da ditadura do pensamento único pró-OTAN e pró-EUA..

A mídia hegemônica tem evidenciado pelo menos três características marcantes na cobertura do conflito.

A primeira, de se desobrigar de qualquer compromisso com a verdade e com a veracidade dos fatos. Entende que não precisa embasar as informações, opiniões, versões e até mesmo notícias publicadas em fatos comprováveis, reais, concretos. Basta-lhes criar os fatos úteis para colocar em pé uma narrativa planejada. Se disse, está dito!

A segunda característica é que, por se saber hegemônica e colonizadora, impõe uma espécie de “princípio de autoridade” sobre as mídias nacionais da periferia do sistema, inclusive para setores das mídias independentes. Uma relação, enfim, colonizadora, entre metrópole-província.

Nesta relação ideológica hierárquica, a mídia das metrópoles imperiais impõe a sua verdade sem precisar comprová-la, mas apenas reiterá-la. O chamado princípio da autoridade que deve ser obedecido. Como um pai autoritário que diz para o filho: “Cala a boca, olha com quem estás falando!”.

E a terceira característica é a censura e a extinção da liberdade de expressão e de imprensa e o banimento do pluralismo jornalístico, como evidenciam os bloqueios estabelecidos pelas plataformas controladas por capitais estadunidenses  – Twitter, Facebook, Youtube, Google, Instagram – que restringem informações que não sejam condenatórias à Rússia e a Putin e liberam o caminho para posições racistas, preconceituosas e, inclusive, violentas contra o povo russo.

Numa guerra acontecem, em simultâneo, muitas guerras – guerra informacional, comunicacional, cibernética, psicológica, econômica, contra a pluralidade de opinião, contra a liberdade de imprensa e de expressão, guerra de narrativas etc.

O acontecimento de Mariupol, nesta perspectiva de guerra híbrida e multidirecional, é um campo de exibição do papel central e decisivo – semiótico – exercido pela mídia hegemônica na alimentação de interesses poderosos para defender o status quo geopolítico que agoniza.

Enquanto a mídia “convida” a opinião pública a se distrair com o suposto ataque a crianças e gestantes na maternidade de Mariupol, aproveita para esconder os arsenais biológicos dos EUA no território ucraniano. Vários laboratórios de armas bacteriológicas coordenados pelos EUA foram desbaratados, mas este gravíssimo assunto não merece mais que notas de rodapé na mídia.

Chega a ser bizarro ouvir a histeria ridícula da mídia hegemônica alarmando a existência de uma “máquina de propaganda russa” que dissemina a visão russa no Brasil e em outros países, como se a própria mídia hegemônica não fosse, ela mesma, uma mortífera e maligna máquina de propaganda de guerra da OTAN e dos EUA.

Na cabeça de muita gente, a embolorada guerra fria ainda não acabou. Os incautos que se cuidem.

JEFERSON MIOLA – Jornalista e colunista, Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial


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