Por Ruth de Aquino –

Era dezembro de 1981. Eu trabalhava no Jornal do Brasil como redatora. Uma enchente terrível em Petrópolis chegou à primeira página, dominada pela foto magistral de Carlos Mesquita. Aos prantos, um rapaz de 14 anos, Jamil, carregava nos braços um bebê, retirado da lama. Chovia. A foto ganhou Prêmio Esso.

Jamil perguntava aflito: “Ele está morto? Ele está morto?”. Quando perdeu a esperança, pousou o bebê num barranco com cuidado, como se temesse machucá-lo. E voltou para resgatar sobreviventes no Morro do Alto Independência. O nome do rapaz, Jamil, era o mesmo do prefeito de Petrópolis na época. Mas o prefeito Jamil Miguel Sabrá usou as máquinas municipais para limpar os postos de gasolina da família e não para ajudar os soterrados.

A reportagem do JB dizia. “Assim como existem dois Brasis, a tragédia de Petrópolis mostrou que há dois Jamis”. O texto era de Paulo Motta, estagiário promissor, formado dois anos antes. Anos mais tarde, Motta se tornou editor executivo do GLOBO.

“As águas mais uma vez desciam as encostas da Serra do Mar. A estrada estava perigosíssima, com chuva torrencial e pedras rolando. Tivemos que dormir no carro, em uma ladeira. Quando raiou o dia, naquele cenário de catástrofe, vimos o Jamil, com o bebê morto no colo”, disse Motta. “Carlinhos (Mesquita) fez dois cliques. Ainda era filme, a ser revelado no Rio. Ele abaixou a máquina e começamos a chorar”.

Essa foto do premiado Mesquita (1946-2012) me lembra uma das mais famosas da guerra do Vietnã. A menina de nove anos queimada por Napalm e nua, gritando, correndo na rua. São situações muito diferentes e distantes. Mas as imagens em preto-e-branco se parecem pela dor, pela composição, pela nudez. E pelo impacto individual da tragédia humana – ou desumana. Tanto os conflitos mundiais quanto os desabamentos em favelas de alto risco prosseguem. Absurdos, criminosos, impunes.

Em qualquer lugar essa quantidade de água que caiu em Petrópolis causaria danos. Mas não morreria tanta gente se a ocupação não fosse desordenada e em encostas. E se houvesse uma política séria de habitação para baixa renda. No desespero por dar um teto a sua família, pais e mães acabam acreditando em milagres.

Caramba. Quantas vezes escrevemos isso? A memória, ao avançar a idade, é uma vantagem e uma desvantagem – temos a perspectiva do passado mas perdemos a do futuro, porque a esperança parece ser um delírio. Quantas vezes especialistas alertaram para construções precárias, ilegais e de risco maior devido às mudanças climáticas? Cada tempestade desnuda a omissão do poder público. Moradias desafiam abismos, pedras e morros desmatados.

Jamil Luminato, o rapaz fotografado por Mesquita em 1981, não podia imaginar que, 32 anos depois, em 2013, perderia a filha e os netos de dois e quatro anos num outro temporal no mesmo lugar em Petrópolis. “Essa tragédia se repete sempre. Todo ano, sempre igual. Daquela vez ajudei a salvar os vizinhos. Infelizmente, dessa vez foi com minha filha e meus netos. Espero que façam algo para não acontecer de novo”. E agora, em 2022? Por onde Jamil andará?

Perguntei ao jornalista Paulo Motta o que sente agora, quatro décadas depois. “Impotência, vergonha. Entre a tragédia de 1981 e a de agora, houve muitas outras, milhares de mortes, dor, sofrimento. E a mesma incúria de sempre, a mesma cara de pau dos políticos, que roubam impostos e doações, o mesmo negacionismo e esquecimento. E a gente levando a vida. Mau-caratismo não tem ideologia”.

Somos todos cúmplices, por achar que não temos nada a ver com isso. E por aplacar nossa consciência com um Pix para quem ficou sem casa ou não tem dinheiro para o funeral.

Trinta e dois anos depois de ser fotografado tentando salvar um bebê de temporal em Petrópolis, Jamil Luminato enterrou filha e dois netos, vítimas de deslizamento no mesmo lugar. (Reprodução)

RUTH DE AQUINO nasceu no Rio. Jornalista desde 1974. Mestrado em Londres sobre Ética na imprensa. Foi repórter, editora, diretora de redação, correspondente em Londres e Paris. Escreve sobre o ser humano e suas contradições.

Publicado inicialmente em O Globo. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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