Por Lincoln Penna –
A geração nascida durante a Segunda Grande Guerra Mundial, portanto entre 1939 e 1945, pode e deve contabilizar perdas e ganhos, como inventário necessário no momento em que vivemos a mais trágica conjuntura política. Esta não foi pior e tampouco melhor do que os anos da ditadura de 1964 a 1985. Tem sido diferente e sob certo aspecto mais dolorido.
Expliquemos, então.
Concebida e vindo à luz na ditadura do Estado Novo, a geração da qual faço parte cresceu em tempos de uma redemocratização que parecia definitiva, cercada por eventos e inovações em todas as atividades. Forjada pela euforia do nacional desenvolvimentismo e da soberania nacional, teve como símbolo a criação da Petrobras, e viveu os calorosos anos do crescimento a todo custo (e que custo!) do governo JK. Adolesceu e se tornou adulta no instante da mais bela e intensa criatividade cultural.
Marcada pelo advento do Cinema Novo, da explosão da Música Popular Brasileira (MPB), particularmente representada pela Bossa Nova, acompanhou a criação e instalação da nova capital em Brasília moldada pela genialidade de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. E vibrou com a conquista da Copa do Mundo na Suécia superando o amargor da derrota no Maracanã para o Uruguai em 1950.
Engajou-se na luta política a partir, principalmente, da campanha de 1960, que consagrou a dobradinha inusitada Jan-Jan (Jânio Quadros e João Goulart, mais conhecido como Jango), adversários de chapas diferentes, porém irmanados em torno de um véu de esperança que ambos lograram construir no imaginário do eleitorado sedento de candidaturas mais afeitas ao gosto popular; essa geração foi à luta desde aí.
Até aqui, era tudo contabilizado no rol dos ganhos. Ganhos materiais, pouco, mas consistentes, pois o Brasil desde o fim da Guerra até os anos da década de setenta cresceu como poucas economias no mundo. Apesar de manter uma concentração de renda e, em razão disso, uma desigualdade crônica, que só fez aumentar a defasagem de lá para cá. O País do futuro, como se dizia, parecia ter finalmente se tornado realidade.
Com o golpe de 1964, os ganhos subiram o elevador e passaram mais do que nunca a beneficiar o andar de cima do edifício social brasileiro. Com isso, as perdas passaram a se tornar crônicas e atingiu os setores intermediários da sociedade, mas, sobretudo, as classes populares, trabalhadores assalariados e o contingente mais desassistido a engrossar a linha abaixo da pobreza, a miséria hoje em dia estampada em céu aberto. Para minimizar os efeitos para a opinião pública ao invés de se ter a coragem de falar de fome, como Betinho, empregam o nome de gente com insegurança alimentar. Termo que agride menos.
Aparentemente superada a ditadura do capital depois de vinte e um anos de governança de militares e a escora do grande empresariado, foi retomado o chamado poder civil, a sugerir um falso afastamento do poder militar, que como se sabe mesmo tendo uma relativa autonomia em ralação às classes dominantes, tem cada vez mais a estas se tornado cúmplice. Pena que na contramão de épocas em que os militares exibiam um patriotismo sem patriotada subserviente.
Essa geração foi, portanto, testemunha do enorme retrocesso mascarado com um crescimento absurdamente indecente. E até hoje lembrado pelos ideólogos desse Estado autoritário como um milagre mentirosamente repetido para virar uma verdade falsa, e seus descendentes buscam fazer o mesmo.
Mas, como se sabe a tragédia repetida se transforma em farsa. É o que se presencia hoje.
Perdeu-se um round nessa grande travessia que continuamos a apostar, mas a despeito das derrotas, a geração da qual estou a me referir nessa reflexão tem o condão de acreditar que a história não se resume a uma narrativa dos vencedores, mesmo tendo as ferramentas e os holofotes ao seu dispor. Ela possui a faculdade de traduzir os embates das forças sociais a partir de uma lógica na qual desponta o peso das vontades coletivas a darem rumo aos acontecimentos. Mais do que uma descrição é o registro de impulsos tardios ou não que acabam por prevalecer.
As derrotas nos ensinam, embora deixem seqüelas difíceis de serem superadas. Esse aprendizado nos remete às sociedades que passaram por terríveis agressões e violências tanto no passado remoto quanto no recente. Desse quadro nefasto elas conseguiram sair mediante impulsos provocados pela autodefesa da dignidade de seu povo, que introjetou a firmeza dos resistentes levando aos caminhos da libertação. Sob certos aspectos, a autoestima de um povo acaba sendo mais decisiva do que qualquer ideologia, muito embora contar com uma ideologia é preciso porque ela molda o futuro que desejamos construir como povo.
Hoje idosa essa geração acredita na ciência, mais do que acreditava antes, está certa de que a tecnologia pode incrementar os mais ardentes desejos da humanidade por inteiro. No entanto, estar a serviço exclusivamente dos poderosos passa a ser uma arma que não tem nenhum sentido, salvo o de se perpetuar as desigualdades. Está mais do que consciente de que sem uma revolução na educação, que sozinha não pode promovê-la, é impossível mudar o mundo para melhor.
Que esse triste cenário em que vivemos seja removido em nome dos valores civilizatórios, que passam pela transformação na ordem econômica, social e política dos estados nacionais de todo o mundo. A ideia de uma transformação, que mobilize toda a sabedoria popular em todas as tribos mundialmente organizadas com vistas à construção do futuro imediato, se encontra na ordem do dia. Tenha o nome e o impulso que tiver não dá mais para nos resignarmos. Do contrário, o passivo das perdas vai tomar a forma de uma crosta, difícil de ser extraída.
No Brasil a crosta da escravidão secular tem resistido aparentemente como em nenhum outro lugar. A ela se juntou uma nova camada, costurada pela dependência contumaz de uma classe dominante modernizada pelo capital financeiro, cuja manifestação de indolência é doentia. Desprovida de sentimento de pertencimento à nação, pois só enxerga o seu umbigo é incapaz de ter um projeto autônomo, não só porque é dependente estruturalmente, mas porque é de uma subserviência atávica.
Basta! Ou viramos o jogo na esfera da ação política consciente e determinada, ou vamos ter de incluir novas gerações nesse passivo representado pelo peso maior das derrotas do que das vitórias. Afinal, o povo brasileiro é amante dos triunfos, da alegria dos encontros coletivos proporcionados pelas festas aonde quer que elas aconteçam. Acomodar-se às derrotas sucessivas contraria o seu DNA. E lembrem-se, a esperança só é cultivada nos momentos de tristeza, até porque nos de alegria, ela é desnecessária.
E viva o poder popular!
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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