Por Jorge Folena –

A Justiça Militar tem entre seus órgãos o Superior Tribunal Militar e os Tribunais e Juízes Militares, instituídos por lei para “processar e julgar os crimes militares definidos em lei”. Além disso, a Constituição prevê que a lei irá dispor sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.

Vemos, assim, que o constituinte deixou para a legislação infraconstitucional a definição do crime militar e o seu respectivo processamento pela Justiça Militar; sendo que, na tradição brasileira, o fórum militar tem sido equivocadamente empregado para o processamento de civis, servindo inclusive como instrumento de perseguição política, e tornou-se comum o emprego das forças militares na repressão dos movimentos populares.

Na verdade, uma Justiça Militar em tempo de paz somente se justificaria, quando muito, para proceder ao julgamento de militares em decorrência de irregularidades cometidas no exercício de suas funções militares, em razão da rigidez da hierarquia e da disciplina da caserna. Contudo, entendo que os militares, como quaisquer servidores públicos, deveriam ser processados e julgados pela Justiça Comum, sem a influência do viés corporativo e protetivo a que conduzem, muitas vezes, os julgamentos pelos próprios pares.

A República, como instituição, tem por fundamentos a igualdade e a transparência. Por isso, não há justificativa para a existência de uma justiça punitiva exclusiva para os militares, aos quais deveria ser dispensado o mesmo tratamento conferido pela lei a qualquer outro servidor público.

Porém, desde o Império, civis vêm sendo julgados e condenados por órgãos militares, como forma de repressão direcionadas contra ações contestatórias e de rebelião, especialmente aquelas promovidas por movimentos populares.

Esse comportamento foi intensificado em diversos períodos da República, a começar pela sua fundação, quando se deu a perseguição aos simpatizantes do superado regime monárquico.

O mesmo ocorreu durante os anos da Revolução de Trinta, quando foram empregados inclusive tribunais de exceção, como o Tribunal de Segurança Nacional (TSN), criado em 1935 e formado inicialmente como órgão da Justiça Militar, que serviu para julgar civis incursos na Lei de Segurança Nacional da época, porém com o objetivo primordial de perseguir e condenar comunistas.

Da mesma forma, durante a ditadura de 1964-1985, a partir da edição do Ato Institucional número 02 (AI-2), a Justiça Militar foi empregada para perseguir e condenar civis, usando a acusação de prática de crimes políticos, contra a segurança nacional e a ordem econômica.

Em relação ao estabelecido pela Constituição de 1988, até hoje não foram regulamentados os dispositivos constitucionais acima mencionados, aplicando-se, por recepção, o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, correspondentes, respectivamente, aos Decreto-lei 1.001/1969 e 1.002/1969, oriundos do regime ditatorial de 1964-1985, impostos à época por meio da Junta Militar que governou o Brasil, formada pelos Ministros da Marinha, Exército e Aeronáutica, conforme poderes atribuídos pelo Ato Institucional número 16/1969.

O Código Penal Militar, em seu artigo 9º, inciso III, alínea “d”, considera crime militar, em tempo de paz, “os crimes praticados (…) por civil, contra instituições militares (…) nos seguintes casos: (…) d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.”

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal tem construído a sua jurisprudência para determinar que “a submissão do civil, em tempo de paz, à Justiça Militar é excepcional, que só se legitima quando a conduta delituosa ofender bens jurídicos tipicamente associados às funções das Forças Armadas, delineadas, em linhas gerais, no art. 142 da CF/88 (Constituição de 1988)”1. Sendo assim, o tribunal entende que o civil pode ser responsabilizado por crime militar quando atentar contra as instituições militares.

Ocorre que é também tem sido considerada como instituição militar a pessoa do militar, ainda que esteja atuando, com violência e fora de local militar, em serviço de preservação da ordem pública, como observado nas operações de Garantia da Lei e da Ordem, que têm sido utilizadas principalmente contra as comunidades pobres das periferias brasileiras.

Ou seja, é a naturalização do autoritarismo contra a população, para a manutenção de uma indevida e imprópria tutela militar sobre a ordem política civil. É a validação da autorização para que os militares estendam suas condutas para além dos limites dos quarteis, o que é inadmissível numa ordem democrática, na qual deve prevalecer o poder civil.

Superado o regime ditatorial de 1964-1985, a Nova República não teve nem a força nem a sabedoria necessária para se livrar da tutela dos militares, que vêm se impondo indevidamente desde a fundação da República em 1889.

Na elaboração da Constituição de 1988, os militares conseguiram manter o seu inadequado poder moderador, representado pela Garantia da Lei e da Ordem (artigo 142), e lograram conservar a estrutura da Justiça Militar, que recebeu carta branca para processar e julgar civis, ficando estabelecido na Carta Constitucional, apenas, que fosse feito conforme previsto em lei.

Nesse ponto, o constituinte deveria ter ressalvado, no Texto Maior, que os civis não deveriam ser julgados na justiça castrense em tempos de paz, a exemplo do que foi adotado em vários países (Portugal, Argentina, Colômbia e Paraguai) e como recomendado, em 2005, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no “Caso Palmara Irabarne vs. Chile”.

Mas como a opção nacional sempre foi pela contradição histórica, a manutenção dessas deturpações vem interferindo em nossas instituições, e de modo cada vez mais destrutivo desde a perpetração do golpe de 2016, quando o governo de Michel Temer, apoiado no parlamento pelo mesmo “centrão” de agora e pressionado pelos militares, aprovou a Lei 13.491/2017, que transferiu para a Justiça Militar os crimes praticados por militares contra civis, inclusive em casos de homicídio, durante as operações de Garantia de Lei e da Ordem (GLO).

Essa alteração permitiu que militares que atuaram numa dessas ações de GLO no Rio de Janeiro deixassem de ser julgados na justiça comum e fossem julgados e absolvidos pela Justiça militar quando dispararam mais de oitenta tiros, que causaram a morte do músico Evandro Rosa dos Santos e do catador de material reciclável Luciano Macedo, em sete de abril de 2019, no bairro de Deodoro.

Vemos assim a perpetuação da indevida “tutela militar” sobre os civis, que é aceita com toda a naturalidade pela sociedade civil, a quem caberia verdadeiramente a função de ditar aos militares as ordens de como proceder na execução de suas tarefas profissionais, entre elas a de garantir a efetiva soberania do país, que, ao longo de mais de cem anos de república, tem sido constantemente violada.

1 STF. Segunda Turma, Habeas Corpus (HC) 128.414/PB, relator Ministro Teori Zavascki, julgado em 17/05/2016

JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.

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