Por Luiz Carlos Prestes Filho

Em entrevista exclusiva para o jornal Tribuna da Imprensa Livre, a compositora Catarina Domenici afirmou: “Eu diria que a música brasileira de ontem e de hoje não deve nada para a música de qualquer outro país. Mas o Brasil é um país muito esquisito. É um país que parece ter vergonha se si mesmo. Veja só: o compositor Ernesto Nazareth é o patrono da cadeira de número 28 da Academia Brasileira de Música, mas me lembro bem de regulamentos de concursos de piano dos anos 70 e 80 nos quais não era permitido tocar a sua música. E quando isso não estava expressamente escrito no regulamento, havia um entendimento tácito que ‘não pegava bem’ tocar Nazareth em concursos.”

Catarina ao piano. A pianista, compositora e pesquisadora Catarina Domenici é graduada em Música pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com Mestrado e Doutorado em Performance pela Eastman School of Music, em Nova Iorque. É professora titular do Departamento de Música da UFRGS. Reconhecida pela versatilidade, possui uma discografia com 20 CDs lançados no Brasil e no exterior, pelos quais recebeu prêmios da APCA e Troféus Açorianos de instrumentista, CD erudito e camerista. Como compositora, foi premiada em 2020 nos Estados Unidos com sua canção “Amazônia”. Suas obras têm sido apresentadas em concertos na Itália, Espanha, Reino Unido e Brasil. (Crédito: Marcelo Chechik)

Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música clássica?

Catarina Domenici: Cada um desses termos aponta para um aspecto da prática social dessa música. O termo “música de concerto” carrega consigo o significado da palavra concerto enquanto instituição social para a performance pública da música realizada fora de contextos religiosos ou dramáticos, sendo sua origem localizada na prática musical informal no século XVII, primeiramente em ambientes domésticos e depois em teatros. A nossa compreensão atual do termo fundamenta-se na associação entre o local (teatro) e o modo de apresentação e fruição da música de acordo com códigos sociais estabelecidos no final do século XIX. Já o termo “música erudita” diz respeito à presença da notação musical; uma música que distingue-se das demais, nomeadamente as de tradição oral, pelo letramento, referindo-se também à forma de registro e acesso a essa música que é feito via partituras. O termo “música clássica” expressa o caráter perene das obras musicais e também seu aspecto modelar, canônico e normativo da prática. Tecnicamente, todos esses termos são corretos, pois descrevem um aspecto da música que chamamos “de concerto”, “erudita” ou “clássica”. A escolha pela utilização de um termo em detrimento de outro revela o nosso desconforto contemporâneo não com a terminologia em si, mas com a ideologia que esses termos carregam. Por exemplo, o fato de denominarmos uma música de “erudita” implica que as outras não sejam letradas sendo, portanto, ignorantes. Só aí já temos um grande problema que é a associação entre a escrita e o conhecimento e a exclusão da epistemologia oral e do conhecimento corporificado. A supremacia da escrita sobre a oralidade cumpre a função de sancionar o que é considerado um conhecimento válido (e valioso) para a sociedade contribuindo para a manutenção de uma ordem social que marginaliza outros conhecimentos e seus produtores.

Grupo PIAP e John Cage na Bienal de São Paulo, 1985. (Arquivo pessoal)

Por outro lado, se considerarmos que outras culturas já utilizavam sistemas de notação anteriores ao nosso, como a chinesa, a persa, a hindu, e que a música tradicional dessas culturas não é considerada música erudita no ocidente, nos deparamos com o caráter exclusivo e excludente da terminologia que aponta para uma música específica, feita por uma “tribo” particular: a música escrita por compositores europeus e consumida pela classe dominante europeia. Richard Leppert, em seu livro “The Sight of Sound”, investiga os significados sociais da música através da iconografia enfocando as representações das práticas musicais da burguesia do norte da Europa dos séculos XVII ao início do XX. Em sua análise, Leppert revela como a música grafada foi utilizada como uma distinção no campo social, sendo representada como ordem e civilização em oposição às músicas das camadas sociais mais baixas e de outros povos não europeus com sua música “barulhenta” e seus corpos não disciplinados. Ao longo do livro evidencia-se a separação entre a música e o corpo, primeiramente através da notação e depois através dos códigos morais estabelecidos para a sua prática, percurso ao longo do qual o corpo passa a ser representado como um intruso, como um mal necessário ou mesmo um inimigo da experiência musical. Na virada do século XX, essa música torna-se uma arte do isolamento que aspira a prescindir de corpos. A relação entre a música e o corpo mediada pela notação é imbuída dos valores burgueses, implicando em um cerceamento particularmente marcante dos corpos femininos. E isso ocorre até os dias de hoje, haja visto as reações da crítica e do público quando alguma artista rompe com os códigos de vestimenta, como a Yuja Wang, ou expressa a sua corporeidade de forma espontânea, como Jacqueline du Pré ou Nadja Salerno-Sonnenberg. Como eu sempre estive envolvida com a prática da música de concerto e da música popular (e do jazz), senti na pele as atitudes contrastantes em relação ao corpo. A movimentação espontânea, valorizada na música popular e no jazz como demonstração visual do envolvimento com a música e com o momento da performance, era completamente censurada na performance da música erudita; o corpo era ora tratado como máquina eficiente, ora tratado como representação da respeitabilidade burguesa.

Apresentando “Sonatas e Interlúdios para piano preparado” de John Cage no Festival de Ouro Preto e Mariana em 2013, Casa da Ópera. (Crédito: Isadora Faria)

Assim os movimentos eram coibidos e disciplinados para atingir a máxima eficiência com um mínimo de esforço (lembrando que o esforço físico sempre esteve negativamente associado ao trabalho pesado) e para comunicar uma atitude de reverência. Anna Bull em seu livro “Class, Control and Classical Music” destaca como a noção de branquitude enquanto controle e transcendência do corpo está codificada na estética da performance da música de concerto. E essa estética é também extensiva ao público, o qual é sujeito a um código de comportamento disciplinar do corpo para fruir essa música. Eu acrescentaria também que quando se trata de corpos femininos sobre o palco a demonstração de controle é ainda mais exigida, posto que o corpo não ‘performa’ apenas a música, mas uma ordem social na qual a mulher deve sempre colocar-se como submissa diante da autoridade masculina. No caso da violinista Nadja Salerno-Sonnenberg, a sua corporeidade foi interpretada como um antagonismo ao compositor pelo crítico Martin Bernheimer que escreveu: “Ela está lutando contra o compositor, ao invés de interpretá-lo.” Retornando à escrita, considerando ainda um outro tipo de letramento utilizado no ocidente, o do jazz, percebemos uma outra nuance do termo: a diferença entre uma notação considerada completa e outra considerada incompleta. Só que a notação nunca é totalmente completa no sentido em que ela possa prescindir de uma tradição oral para informar “o que acontece entre as notas” como já escreveu Charles Seeger. Mas a partir do século XIX fomos levados a crer que uma partitura de uma obra “erudita” é a representação gráfica da obra, ou melhor, que a obra é a partitura. A emergência do conceito de obra, que Lydia Goehr descreve de forma clara e precisa em seu livro “The imaginary museum of musical works”, ocorre dentro de um contexto amplo de transformações políticas, sociais e econômicas. A burguesia, como a nova classe dominante, organizou o mundo de acordo com seus valores e crenças e a música não escapou a esse processo, afinal, como afirma Tia De Nora, “o musical e o social não são distintos”. O conceito de obra surge concomitantemente à figura do artista autônomo, uma nova categoria social.

Grupo PIAP e Martha Herr em 1986. (Arquivo pessoal)

Na constituição do campo da música “erudita”, este um subcampo dentro do campo de produção cultural restrita, a obra musical emerge como o capital simbólico, o eixo a partir do qual todas as relações se organizam. Assim, a separação entre a composição e a performance se oficializa, sendo que essas atividades passam a ser conceituadas em oposição binária e organizadas em uma relação vertical. Como afirma Goehr, performances e seus performers eram, respectivamente, subservientes às obras e a seus compositores. A dicotomia mente/corpo une-se à divisão sexual do trabalho para conceber a composição como atividade de criação, localizada na esfera mental, sendo a performance definida como reprodução e localizada na esfera corporal. Simultaneamente, temos a criação de um cânone musical eminentemente masculino (aqui, eu desafio o/a leitor(a) a nomear uma obra musical considerada um clássico que tenha sido composta por uma mulher!) e a fragmentação do ensino da música em disciplinas nos currículos dos conservatórios, sendo as disciplinas práticas recomendadas às mulheres e as teóricas, aos homens. Assim temos que a organização das atividades musicais realizada ao longo do século XIX reflete a um só tempo o patriarcado e o sistema capitalista em sua divisão sexual do trabalho, na exclusão das mulheres da esfera do poder simbólico, e na concepção do corpo do performer como força especializada de trabalho hierarquicamente inferior a quem exerce a atividade mental. Portanto, para mim a questão terminológica é menor se comparada à concepção que temos desse objeto. Talvez seja necessário separar o repertório que praticamos e amamos tanto das práticas anacrônicas associadas a esse repertório. Precisamos atualizar práticas e conceitos ao mesmo tempo que construímos novas significações para esse repertório. De outra forma, iremos continuar buscando novos termos, talvez mais politicamente corretos, para designar práticas sociais e concepções de mundo caducas. Enquanto não abraçarmos o empreendimento de democratizar essa música, sem o ranço catequético e o ar de superioridade, estaremos fadados ao isolamento.

Afinal, somos uma dentre tantas músicas que existem no planeta.

Apresentando “Sonatas e Interlúdios para piano preparado” de John Cage no Festival de Ouro Preto e Mariana em 2013, Casa da Ópera. (Crédito: Isadora Faria)

Prestes Filho: Beber na fonte da cultura brasileira foi importante para o surgimento da sua linguagem? A sua primeira composição foi realizada aos 14 anos e fez sucesso no Festival de Música Popular de Itapetininga. Como a percussão da Escola de Samba “ZôLivre” de sua cidade natal, São Miguel de Arcanjo (SP), influenciou a compositora de hoje?

Catarina Domenici: Eu morei em São Miguel Arcanjo até quase completar dez anos de idade. Naquela época, São Miguel era uma cidade muito pequena, bastante rural, sem piano, teatro, ou sala de concerto. Fui criada no samba rural paulista que era feito na casa da minha avó paterna. Na minha família, ninguém ouvia música clássica – e, talvez, nem soubessem da existência disso; mas cresci ouvindo muita música brasileira nas gravações em fita cassete de Elis Regina, Chico Buarque, Wilson Simonal e a jovem guarda. Me lembro de quando o Valter Franco foi jurado do Festival de Música de São Miguel Arcanjo na década de 70. Valter Franco era amigo de um primo do meu pai, o Lollo Terra, que hoje dá nome ao Festival de Música de São Miguel Arcanjo.

Festival de Música Popular de Itapetininga, 1981. (Arquivo pessoal)

A passagem dele por São Miguel causou um alvoroço, bem como a passagem da cantora Rosamaria que gravou músicas do Lollo. Como eu era pequena, não podia assistir o Festival, mas me lembro bem do falatório e da movimentação social que o Festival trazia para um ambiente culturalmente muito precário. O aparente vazio cultural era preenchido pelo samba, pela música das rezas das procissões e das novenas que frequentava com a minha avó, pelas canções de pular corda e jogar amarelinha. Os disquinhos coloridos também fizeram parte do meu repertório infantil. Se de um lado há um detrimento causado pela precariedade de estímulos culturais, por outro há a potência de um vazio que eu precisava preencher. Desde muito cedo eu inventava músicas e textos para peças infantis. Com a ajuda da minha irmã mais nova, Eloisa, eterna parceira de aventuras criativas, arregimentava as crianças e montávamos os “espetáculos” nos quintais, às vezes até cobrando ingresso! Isso sem nunca ter pisado em um teatro ou assistido a uma peça. Para mim, sempre foi muito evidente o prazer e a necessidade de criar. O meu bem estar dependia dos mundos imaginários que eu criava. Nesses mundos eu existia de verdade.

Tocando “Variações Rítmicas” de Marlos Nobre com o Grupo PIAP no concerto de comemoração de 40 anos do grupo em 2018. (Crédito: Karen Montija)

A primeira vez que senti na pele a falta de acesso a materiais foi quando ganhei um xilo-piano da Hering aos cinco anos de idade. Em poucos dias memorizei todo o livrinho que vinha junto com o brinquedo e compreendi o sistema de notação na pauta musical, achando muito desnecessário utilizar um sistema de cores para as alturas que correspondiam às teclas do xilo, afinal, cada nota tinha o seu som específico. Bastava ouvir, não precisava ver a cor. Naquela altura, eu nem imaginava que tinha ouvido absoluto. Em uma semana tinha esgotado os recursos do xilo-piano e ficado fula da vida que as teclas pretas não faziam som. Esgotado esse recurso, e sem poder tocar no violão que meu pai tinha, fui atormentar meu pai e meus tios para tocar na bateria da escola de samba. Naquela época, apenas os homens podiam tocar. Mas diante da minha insistência eles se dobraram e me iniciaram no samba, primeiramente na mesa da cozinha da minha avó e depois na bateria da escola de samba ZôLivre. Aprendi lições importantíssimas, como o desenvolvimento da habilidade de manter um pulso constante e o reconhecimento de padrões, o que é fundamental para qualquer músico. O ritmo se organiza a partir da noção de um pulso, e logo pude ter consciência de que podia criar padrões rítmicos a partir de qualquer pulso. Essa é a principal influência da vivência no samba na minha música: a importância do ritmo. Para mim, ritmo é vida e movimento e essa é a própria definição de música. Uma fase crucial do meu processo criativo consiste em encontrar o ritmo da música que está por vir; descobrir, ou melhor, escutar como ela pulsa, como ela vive.

Solista com a OSPA e Neil Thomson, regência. (Crédito: OSPA)

Então, para mim, o ritmo é a base de tudo. Tudo tem ritmo: nossos corpos, a natureza. Ciclos grande e pequenos, pulsos regulares e irregulares. Observar o mundo e a mim mesma buscando padrões que ora se repetem, ora variam, foi de grande importância para minha imaginação. A imaginação sempre foi minha grande companheira. Muito traumatizada, tinha dificuldades em me socializar. Meus colegas de escola sempre foram 2 ou 3 anos mais velhos que eu, porque ingressei no primeiro ano escolar aos quatro anos de idade já alfabetizada. A observação da natureza sempre foi um refúgio e fonte de inspiração – os ciclos das árvores frutíferas, o orvalho que tocava as plantas todas a manhãs, o milagre de plantar uma sementinha de alface e observar o seu crescimento, a excitação de arrancar mandioca com a minha avó – tudo isso para mim era pura magia e combustível para a poesia. Apenas aos 10 anos, quando nos mudamos para Itapetininga, é que fui descobrir um outro mundo, um mundo mais urbano, “civilizado” e “tecnológico”, com mais recursos e oportunidades, mas com menos magia. A nossa casa já não tinha mais um quintal que parecia infinito em sua biodiversidade e na sua potência poética que eu podia observar silenciosamente por horas a fio. Nessa época, me lembro de fugir na hora do recreio para ir escondida observar as freiras cuidando da horta do colégio.

Com a professora Rebecca Penneys em Chautauqua, NY, 1995. (Arquivo pessoal)

Me senti verdadeiramente desenraizada com a mudança para Itapetininga até conhecer o piano aos 11 anos de idade com a professora Angelina Colombo Ragazzi, que recomendou que eu fosse estudar no Conservatório de Tatui no ano seguinte. A minha primeira participação no Festival de Música Popular de Itapetininga foi um ato necessário e profundamente rebelde. Naquele ano eu havia interrompido meus estudos no Conservatório pois não encontrava uma maneira de expressar a minha criatividade nas aulas de piano. O estopim foi a repreensão dura que minha irmã Eloisa recebeu da professora quando esta a ouviu tocando uma música de ouvido. Aquilo não fazia sentido para mim.

Solista com a Orquestra UNISINOS e Evandro Matté, regência. (Crédito: Lucas Saporiti)

Oras, o ouvido não seria importantíssimo para um músico? Devido a esse episódio, minha irmã não quis mais frequentar o Conservatório. Eu ainda fiquei mais um semestre, mas também desisti para poder improvisar e criar à vontade. Ainda tenho guardadas dezenas de fitas cassete dos registros que fiz nessa época. No ano seguinte, a direção do Conservatório telefonou para a minha mãe para dizer que havia ingressado no quadro um professor recém formado na USP e que eles achavam que ele seria bom para mim. De fato, esse professor, Marcos Tadeu Borges de Freitas, me entendia. Ele percebeu a minha curiosidade insaciável e a minha necessidade de autonomia. Me ensinou ferramentas de análise da música contemporânea, me expôs a novos repertórios e me fez pensar sobre a interpretação musical pela primeira vez, ao invés de apenas imitar o que ele fazia. Sob a sua orientação me senti motivada a continuar meus estudos no Conservatório até tomar a decisão de fazer o curso universitário de música. Mas à medida que eu me aprofundava nos estudos eu comecei a me fragmentar em várias Catarinas que não se conversavam mais: uma que compunha escondido, outra que tocava música erudita, outra que tocava em banda de baile, outra que estudava e tocava jazz e MPB. E mais escondido ainda havia ficado a menina que se criou em uma escola de samba. O resgate daquela menina veio junto com a destruição desses muros internos, quando decidi me assumir como compositora e integrar todas as experiências musicais da minha vida; afinal, a Catarina é um só corpo que tocou na bateria da ZôLivre, em bailes e quartetos de jazz, que toca muita música contemporânea e repertório de prática comum, que improvisa e inventa. Tudo isso está registrado em cada célula do meu corpo e a minha voz é a soma de todas essas vivências.

Duas fotos no Festival Claude Bolling, 2018. Acima, da esquerda para a direita: Rodrigo Alquati (cello), Ayres Pothof (flauta), Daniel Wolff (violão), Catarina Domenici (piano), Camilo da Rosa Simões (violino), Ricardo Arenhaldt (bateria), Everson Vargas (baixo). (Arquivo pessoal)

Prestes Filho: Durante anos você se dedicou ao piano, hoje é interprete reconhecida, inclusive, com o domínio de repertório nacional de música contemporânea: Silvio Ferraz, Harry Crowl, James Correa, Eduardo Miranda, Ricardo Tacuchian, entre outros. Conte sobre estes trabalhos. Conte como se deu a sua passagem para a composição? Quais interpretações você destacaria?

Catarina Domenici: A dedicação ao piano segue intacta, mesmo atuando também como compositora. A prática do piano faz parte do meu cotidiano, algo que dedico em média 3-4 horas diárias para a construção de novos repertórios e para atualizar repertórios antigos. Ser pianista é parte da minha identidade, porque para mim ser musicista implica em efetivamente fazer música no seu sentido mais concreto, o da produção e da socialização do som. Por isso não abro mão da performance. São as demandas da performance que propiciam o meu crescimento como artista e como ser humano. É um exercício constante de humildade, transformação, aperfeiçoamento e empatia no encontro com a voz do Outro. O meu gosto pela música contemporânea manifestou-se muito cedo. O meu ingresso no Conservatório foi marcado pelo maravilhamento da descoberta de uma estrutura disciplinar para o estudo da música; um currículo muito bem organizado, tanto em termos das disciplinas de Teoria e Solfejo, Harmonia, Contraponto, Piano, Música de Câmara, História da Música, quanto na organização do repertório que era estudado nas aulas de Piano. No repertório obrigatório, compositores brasileiros figuravam em paridade com compositores europeus. Descobri Claudio Santoro, Guerra-Peixe, Camargo Guarnieri, Ernest Widmer ao mesmo tempo em que descobri Beethoven e Bach e devo confessar que naquela época me sentia bem mais próxima dos brasileiros do que dos europeus, exceto pelos europeus ditos contemporâneos como Bártok e Jelinek. As obras didáticas de Bártok, Jelinek e Widmer eram obrigatórias, então cresci com os seis volumes do Mikrokosmos e a coletânea For Children de Bártok, com os Zwölftonfibel für Klavier de Jelinek, e com o Ludus Brasiliensis de Widmer. Gostava tanto de tocar esse repertório que não podia entender a rejeição dos alunos a essas obras. Aprendi sobre o dodecafonismo com as peças progressivas de Jelinek, que eu devorava e tocava de memória.

Festival Música Nova em 1985. Da esquerda para a direita: Richard Fraser, o compositor canadense Stuart Shepherd, Gilberto Mendes, Catarina Domenici, Eduardo Gianesella, Marco Monteiro e John Boudler. (Arquivo pessoal)

Aprendi a teoria dos contornos analisando obras do Mikrokosmos de Béla Bártok, e aprendi sobre novas notações com o Ludus Brasiliensis de Widmer. Para mim, a teoria e a prática sempre caminharam juntas, indissociáveis. Perceber que para a maioria dos alunos do Conservatório havia um abismo quase que intransponível entre a teoria e a prática, que eles não faziam a mínima ideia do que estavam tocando, foi um choque. Se por um lado a organização disciplinar do estudo da música representou um momento para contemplar a vastidão de conteúdos e a oportunidade para estudar esses conteúdos de maneira aprofundada, por outro a separação intra-disciplinar foi revelando aos poucos territórios demarcados por fronteiras rigidamente estabelecidas e fortemente guardadas, como a fronteira que separava a performance da composição ou a que separava a música de concerto da música popular. Segui me aperfeiçoando no piano no curso de Bacharelado em Música (Piano) na UNESP. Já na prova específica, John Boudler, fundador do grupo PIAP e o “papa” da percussão no Brasil, me ouviu e me convidou para ser a pianista do grupo. Para mim foi uma verdadeira maravilha poder expandir o meu conhecimento e o repertório de música contemporânea, ainda mais com um grupo de percussão. Eu costumo brincar que fiz duas faculdades: o curso de piano com a grande Beatriz Balzi e o curso do PIAP. A experiência com o PIAP foi profundamente importante para a minha formação musical e profissional. John sempre foi muito exigente com a qualidade musical e técnica, a pontualidade, a seriedade e profissionalismo desde os ensaios até o palco. Com o grupo PIAP participei de todos os Festivais Música Nova durante o curso de graduação, tendo a oportunidade de fazer diversas estreias de compositores brasileiros e estrangeiros.

Espetáculo “Cem metros de valsa e um grama” com a Cia GEDA de Dança. Porto Alegre, 2011. (Crédito: Santierri)

Em 1985, no meu primeiro ano de faculdade, tocamos para John Cage as suas Três Construções na Bienal de São Paulo. No ano seguinte, vencemos o II Prêmio Eldorado de Música. O Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo estampava na primeira página: “Vanguarda ganha o Eldorado” e uma outra “Eles não usam black-tie”. O enfoque das matérias era, claro, o enorme preconceito com a percussão, com a música contemporânea, e com o fato de que não tocávamos de terno e gravata. Quando os finalistas foram anunciados junto com a ordem de apresentação na final, houve uma certa tensão com os outros concorrentes sobre o PIAP ser o primeiro a se apresentar (afinal, a montagem de palco de um grupo de percussão não é feita em 5 minutos, não é?). Ouvi o comentário sarcástico da acompanhadora de uma candidata que “primeiro viria a fanfarra”. Talvez o preconceito com a música contemporânea e com a percussão fosse mais forte naquela época, mas ele ainda existe. Sempre fui olhada de canto pelos pianistas, digamos, “mais tradicionais”, por tocar muita música contemporânea, tocar com percussão e, ainda por cima, tocar jazz e música popular. Por outro lado, fiz Mestrado, Doutorado, recebi o Performer’s Certificate e o prêmio de melhor pianista do ano em uma das escolas norte-americanas mais tradicionais e prestigiosas, a Eastman School of Music, justamente tocando só repertório de prática comum. Mas a parte mais visível da minha produção como intérprete é a música contemporânea por ter realizado a estreia de quase uma centena de obras como solista e como camerista junto aos grupos PIAP, Novo Horizonte, Duo Uno, Novo Ekç-Ensemble, Musitrio e Slee Sinfonietta, e por ter gravado vários CDs dedicados a essa produção.

Com meu professor David Burge e suas alunas. Eastman School of Music, 1990. (Arquivo pessoal)

Talvez a passagem para a composição, que para mim não é uma passagem no sentido de um deslocamento de um ponto A para um ponto B, mas uma ampliação do meu leque de ações musicais, teve início na minha recusa em aceitar o rótulo de intérprete de música contemporânea. Não me entenda mal, eu amo a música contemporânea, mas não gostaria que minha carreira como musicista ficasse restrita a uma atuação demarcada por esse rótulo, afinal eu toco outros repertórios também. Certo dia, estava atualizando a minha biografia para um recital e não me reconheci mais nela. Faltavam muitas Catarinas ali e essa percepção me levou a iniciar um movimento de reintegração das minhas facetas musicais, inclusive vir a público como compositora. O meu desejo sempre foi ser uma musicista completa, que transita livremente entre a interpretação, a composição, a improvisação e por diversos repertórios. As interpretações que eu destaco são: “Variações Rítmicas para piano e percussão” de Marlos Nobre (https://www.youtube.com/watch?v=U5Tkj6Yn_ts), “Confini” do compositor italiano Paolo Cavallone (https://www.youtube.com/watch?v=LjJYXcWjm44), “Wed”, do compositor norte-americano David Lang (https://www.youtube.com/watch?v=jaT6WDLOZvM) e a gravação das obras de James Correa e Eduardo Miranda no CD Plural.

12- Duo Bujes-Domenici. Paula Bujes (violino), Catarina Domenici (piano). Recital na Série Schaffler em Sorocaba, 2019, com programa totalmente dedicado às obras de compositoras. (Crédito: Mirna Módolo)

Prestes Filho: Como a sua formação colabora hoje para a realização e apresentações de obras de sua autoria? Nos EUA o uso de percussão pelos africanos escravizados foi proibido, o que fez a população negra levar a linguagem musical dos ancestrais para a clarineta, saxofone, trompete e piano – instrumentos que os escravocratas consideravam ser exclusivamente de brancos. Hoje estudiosos, como o historiador Alessandro Ventura, em sua tese sobre a “Memória e a Cultura Negra nas Américas”, na Universidade Paris III, reconhecem que negros levaram a percussão, inclusive, para o piano. No seu piano podemos encontrar frases musicais da Escola de Samba “ZôLivre” ou algo que remeta as suas origens culturais?

Catarina Domenici: Não acho que tenha alguma frase musical da Escola de Samba ZôLivre no meu piano, mas há um entendimento subjacente, uma vivência corporificada do ritmo. A minha formação e atuação profissional como pianista me dá uma autonomia enorme para tocar minhas músicas. Até pouco tempo atrás, não era visto com bons olhos um(a) compositor(a) que toca suas próprias obras. Essa é uma daquelas heranças mofadas dos modernistas que consideram que um compositor “sério” não toca suas próprias obras e não se fixa em escrever para o seu instrumento. Oras, então Mozart e Bach não seriam nem um pouco sérios aos olhos do século XX, pois antes da divisão rígida de trabalho que ocorreu ao longo do século XIX, essa era a regra – e não a exceção: compositores(as) tocarem e/ou regerem suas próprias obras. Lukas Foss, compositor, regente e pianista, foi bastante crítico dessa divisão de trabalho, a qual para ele é uma separação artificial tão sem sentido quanto tentar separar a forma do conteúdo.

Festival de Teatro de Curitiba, 2019. Com Silvana Scarincci, Gabriella Di Laccio e Cristina Caparelli apresentando concerto inteiramente dedicado às compositoras. (Divulgação)

Em 1964, Foss criou o Center of the Creative and Performing Arts na Universidade de Buffalo com o objetivo de fomentar a colaboração entre compositores e intérpretes a nível institucional. Na lista de nomes dos Creative Associates vemos um número majoritário de compositores/instrumentistas e de intérpretes/compositores, como David Del Tredici, Frederic Rzewski, George Crumb, David Tudor, Yuji Takahashi, Vinko Globokar, entre outros. Talvez a ideia de Foss fosse justamente reunir músicos, como ele próprio, versados nas duas práticas, a composição e a performance. Nas últimas décadas, a ideia do trabalho colaborativo vem se popularizando em duas frentes em particular: 1) em projetos coletivos nos quais as fronteiras entre composição e performance e os papéis de compositor e intérprete são borradas, e 2) quando o(a) compositor(a) se une a um(a) instrumentista para trabalhar na escrita idiomática para um instrumento no qual não possui proficiência. Em ambos os casos, é curioso observar (e digo isso com base na minha pesquisa de mais de 10 anos sobre interações entre compositores e intérpretes na música contemporânea) a continuidade da primazia do abstrato sobre o concreto, a ponto da autoria de criações coletivas ser atribuída ao compositor do grupo. Enquanto persistir a noção de composição como atividade mental e de performance como atividade corporal com suas respectivas atribuições de valores, sendo a mente mais valiosa do que o corpo, a colaboração entre compositores e intérpretes não passará de uma mera ilusão de horizontalidade.

Performance de “Vox Balaena” de George Crumb. Com Christine Beard (flauta) e Rodrigo Alquati (cello) em Omaha, NE, 2018. (Arquivo pessoal)

Prestes Filho: Cite nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Cite nomes de compositores que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras que tem importância estruturante para sua formação.

Catarina Domenici: Acho que todos(as) compositores(as) que toquei e estudei são importantes para a minha formação, que é contínua. Estou sempre aprendendo e descobrindo coisas e esse, para mim, é o grande propósito da existência. Mas se tiver que citar autores de músicas que tiveram um impacto profundo na minha vida, que me fizeram perceber coisas que não havia percebido antes, cito Egberto Gismonti, Maurice Ravel, Claude Debussy, Robert Schumann, Cláudio Santoro, Meredith Monk, Frederic Rzewski e Dmitri Shostakovich.

Tocando “Second Construction” no Happening Cage na Bienal de São Paulo em 1985. (Arquivo Pessoal)

Prestes Filho: A Música Contemporânea abraça o seu ambiente de trabalho. Você acompanha quais movimentos de Música Contemporânea? Quais poderia destacar? Poderia citar os artistas brasileiros e estrangeiros da atualidade?

Catarina Domenici: O que mais gosto na contemporaneidade é a mistura e a diversidade. Apesar de estar sempre atualizada sobre o que está sendo feito hoje não sigo nenhum movimento específico, mas estou sempre atenta aos trabalhos da compositora Diana Soh e dos compositores James Correa, Mark Olivieri, Frederic Rzewski e David Lang. Lang é co-fundador do coletivo Bang on a Can que tem uma proposta arejada para a música contemporânea. A sua obra tem a marca da sofisticação na simplicidade, econômico e profundo. Um ótimo exemplo é a obra The Little Match Girl Passion que recebeu o prêmio Pulitzer em 2008 e o Grammy em 2010 pela esplêndida gravação da obra pelo Theater of Voices.

Com a pianista Clélia Iruzun, Judy & John Taylor em Londres após concerto em 2020. (Arquivo pessoal)

Prestes Filho: A interseção música/audiovisual é uma realidade. A trilha que você compôs para o vídeo “Locus Enunciativo – Círculo Farpado”, de Juliana Sixel, demonstra seu interesse por trilhas sonoras. A atual revolução científica e tecnológica está transformando e aproximando todas as áreas da produção cultural. Qual é o impacto da mesma na música contemporânea?

Catarina Domenici: Essa foi a terceira trilha sonora que fiz. As outras duas foram para espetáculos de dança onde atuei em cena tocando a trilha ao vivo, ambas produções da Geda Companhia de Dança de Porto Alegre. Em 2011 foi o espetáculo “Cem metros de valsa e um grama” sobre a vida de Chopin, que recebeu o Prêmio Klaus Vianna. Em 2012 foi o espetáculo “Não me toque, estou cheia de lágrimas: sensações de Clarice Lispector”, para o qual compus e executei a trilha ao vivo da segunda cena, “Infância”, que remetia às primeiras memórias de Clarice no Brasil. O trabalho com Juliana Sixel que foi apresentado no Porto Alegre Em Cena em 2020 deveria ocorrer também dessa forma, ao vivo, não fosse a pandemia. Aliás, todo o festival PoA em Cena foi realizado de maneira virtual no ano passado.

Concerto do Musitrio. Rodrigo Alquati (cello), Catarina Domenici (piano), e Rodrigo Bustamante (violino). Minas Gerais, 2002. (Arquivo Pessoal)

O ideal para nós seria que fizéssemos a gravação em vídeo de uma performance ao vivo, com a interação em tempo real. O isolamento social nos obrigou a interagir através de trocas de mensagens, fotos e pequenos vídeos. A partir do material enviado por Juliana criei a música que ela utilizou para fazer a performance final. Sempre tive muito interesse em trabalhar com as outras artes. Já colaborei com artistas visuais e com artistas da dança e do teatro, além de ter participado de performances envolvendo novas tecnologias e vídeos com os compositores Jônatas Manzolli, Ana Fridman, James Correa e Felipe Castellani.

Com a soprano Gabriella Di Laccio no recital “Mestiza: the voice of Catarina Domenici” em Londres, 2020. (Arquivo pessoal)

Prestes Filho: Em 2020, sua canção “Amazônia” foi vencedora do Calliope’s Call, tendo a estreia norte-americana em abril de 2021. Suas composições vem sendo apresentadas tanto em concertos quanto em shows. A canção “Marielle presente” foi gravada pela soprano Susie Georgiadis e pela pianista Angiolina Sensale no CD Homage. Esta obra foi elogiada por João Marcos Coelho na revista “Concerto”, em março de 2019. O gênero canção tem destaque na sua produção autoral, destaque para as “Cirandas das Mestras”. Descreva as diferentes fases de sua trajetória como autora de canções.

Catarina Domenici: Compor canções me remete ao espaço lúdico da minha infância, onde uma brincadeira era sempre acompanhada pela invenção de uma letra musicada. Me lembro do que o Nelson Sargento falou em uma entrevista sobre estar pintando uma parede e começar a cantarolar, a brincar com letra e melodia, e nascer uma canção. Meu processo criativo é muito semelhante. As ideias brotam quando meu corpo está em movimento. Não consigo compor parada. A primeira canção que eu compus, “Esperança”, foi durante o meu primeiro ano de aulas de piano. Essa canção foi composta durante a caminhada matinal de casa para a escola que realizava diariamente com minha irmã Eloisa. A letra e a melodia vieram juntas, como geralmente vem até hoje as letras e as melodias das minhas canções. “Esperança” teve sua estreia realizada por mim, ao piano, e Eloisa, no canto, no recital de final de ano da professora Angelina Ragazzi em Itapetininga.

Cartaz do recital “Mestiza: the voice of Catarina Domenici” em Londres, 2020. (Divulgação)

A primeira versão da canção “Healing”, foi composta no trajeto entre o meu trabalho no Finger Lakes Community College em Canandaigua e a minha casa em Rochester, no estado de Nova Iorque. Enquanto dirigia, comecei a cantar a melodia e a trabalhar na letra. Quando cheguei em casa, coloquei tudo no papel. Essa canção ficou adormecida por quase 10 anos, porque eu não tinha ficado satisfeita com o resultado. Quando a Gabriella Di Laccio me pediu uma canção para ser gravada no CD Homage, vi nisso uma oportunidade de retomar “Healing” e retrabalhá-la a partir de toda a experiência acumulada ao longo de quase 10 anos. Já a canção “Marielle presente” praticamente nasceu pronta, de súbito. Me lembro de ter ficado profundamente chocada com o assassinato de Marielle, e, por dias, não consegui sequer expressar uma frase a respeito.

Com os compositores James Correa, Felipe Castellni e Ana Fridman, Unimúsica, 2019. (Crédito: Maciel Goelzer)

Quatro dias depois, acordo de madrugada, como se atravessada por um raio, como se estivesse sendo chamada pela música que ainda estava por vir. Primeiro, veio a célula rítmica e a partir dela, a letra e a melodia jorraram prontas, como se, finalmente, eu tivesse conseguido expressar o meu choque e indignação pelo assassinato de Marielle. No dia seguinte, enviei a partitura pronta para a Susie e a Angiolina gravarem. Essa canção carrega muito das minhas explorações com o que eu chamo de “techno-côco”, uma mistura de repente, côco de embolada e rap que é para mim um espaço lúdico de criação de letras ao redor de um pulso ou de uma figura rítmica. Isso começou quando estava morando em Buffalo, NY, entre 2005 e 2009, e participando do Ensemble Vocal Experimental Babel, coordenado pela soprano Tony Arnold. Dessa época, veio “Catchiurina”, uma resposta para o colunista João Coutinho da Folha de São Paulo em forma de ‘techno-côco’ sobre o racismo no Brasil. Para mim, a união entre a música e a palavra é uma das formas de expressão mais potentes que há. A canção, como escreveu minha irmã Eloisa Domenici, é mais do que um gênero musical, é uma rede de conhecimento e reconhecimento, uma rede de conexões e afetos.

Com o flautista Leonardo Winter, Unimúsica, 2019. (Crédito: Maciel Goelzer)

No cancioneiro brasileiro da música de concerto, minhas referências são Claudio Santoro, Villa-Lobos e Waldemar Henrique. As canções desses compositores se localizam em um entre-mundos, nem erudito, nem popular. Considero as melhores performances dessas canções aquelas realizadas por cantores versados em ambas as práticas e que encontram a mistura certa de colocar a voz nesse entre-mundos. Aliás, o entre-mundos é o chão da minha raiz, o meu lugar de fala e o lugar de onde minha voz emerge. A canção “Amazônia” foi uma encomenda da soprano Susie Georgiadis e da pianista Carla Ruaro para um concerto em Milão em abril de 2020 que foi cancelado devido à pandemia, mas ainda tive a oportunidade de realizar a estreia em Londres com a soprano Gabriella Di Laccio, que apresentou novamente a canção com a pianista Clélia Iruzun em Londres no ano passado. A estreia norte-americana ocorreu em abril deste ano pela soprano Evangelia Leontis e a pianista Christina Wright-Ivanova em Boston. No mesmo mês, minhas canções “Healing” e “Marielle presente” foram estreadas nos Estados Unidos pela soprano Shelby VanNordstrand e pela pianista Kristín Jónína Taylor, professoras do Departamento de Música da Universidade de Nebraska em Omaha. Em outubro, elas estarão apresentando um paper sobre essas canções em um congresso em Rochester, NY. Após a composição de “Amazônia”, me dediquei a um ciclo de 4 canções dedicadas à Gabriella Di Laccio, “Letters to my Mother”, que na verdade é uma miniópera para soprano e piano sobre a relação com a minha mãe.

A língua que utilizei para este ciclo de canções, assim como em “Healing” é o inglês, minha segunda língua, e a língua através da qual me sinto mais confortável para falar sobre experiências traumáticas.

Com a Slee Sinfonietta e Brad Lubman, regente, em Buffalo, 2008. (Arquivo pessoal)

Prestes Filho: Qual a contribuição dos compositores brasileiros vivos de música contemporânea para com o desenvolvimento da técnica da escrita musical? Podemos identificar uma proposta brasileira? A nossa música contemporânea não deve nada para a música de qualquer outro país? Você escreve seus trabalhos direto no computador?

Catarina Domenici: Eu diria que a música brasileira de ontem e de hoje não deve nada para a música de qualquer outro país. Mas o Brasil é um país muito esquisito. É um país que parece ter vergonha se si mesmo. Veja só: o compositor Ernesto Nazareth é o patrono da cadeira de número 28 da Academia Brasileira de Música, mas me lembro bem de regulamentos de concursos de piano dos anos 70 e 80 nos quais não era permitido tocar a sua música. E quando isso não estava expressamente escrito no regulamento, havia um entendimento tácito que “não pegava bem” tocar Nazareth em concursos. Curiosamente, não havia proibição alguma – tácita ou explícita – de tocar “Saudades do Brasil” de Milhaud, ou as Mazurkas e Valsas de Chopin, por exemplo. Até hoje, quando vemos programas de recitais, concertos, e também os currículos de escolas de música, a assimetria entre obras de compositores estrangeiros e brasileiros é escandalosa. E quando se fala em compositor brasileiro, frequentemente a escolha recai sobre Villa-Lobos, que parece ser o único grande compositor brasileiro conhecido.

Capa do CD Homage: Compositoras do Brasil e Itália. (Divulgação)

Por outro lado, cito novamente que foi a distribuição simétrica entre compositores brasileiros e estrangeiros no currículo do curso de piano do Conservatório de Tatuí que me permitiu conhecer um grande leque de obras brasileiras para piano e descobrir que o Brasil tem muitos outros grandes compositores. Esse exemplo mostra para mim o poder da educação em revelar o desconhecido e construir novas realidades. Respondendo a segunda pergunta, eu utilizo lápis e papel pautado para escrever minha música porque a borracha e os rabiscos são meus melhores amigos quando componho. Há muita revisão envolvida e apenas depois de fazer uma cópia final no papel é que eu passo a partitura para um programa de notação no computador.

Com o compositor James Correa, Unimúsica, 2019. (Crédito: Maciel Goelzer)

Prestes Filho: Qual sua opinião sobre a presença das mulheres em atividades musicais? O número de compositoras na Academia Brasileira de Música (ABM) é pequeno. Seria possível uma reflexão sobre este tema? Inclusive, porque é tão rara a presença de mulheres negras na música de concerto do Brasil?

Catarina Domenici: Vou tentar responder essa pergunta em partes. Sobre a presença de mulheres em atividades musicais: se considerarmos as atividades musicais no âmbito profissional, notamos, de fato, uma assimetria entre a presença masculina e a feminina nos corpos orquestrais, na atuação de solistas ou regentes, em bandas de jazz, etc. O curioso é que as mulheres, particularmente as de classe média, sempre foram incentivadas a aprender a tocar um instrumento ou a cantar. Fazia parte, e talvez ainda faça, do que seria considerado uma boa formação, uma boa educação. Mas quando essa mulher quer se tornar uma profissional da música surgem os obstáculos. Desde a resistência da família, como a minha, que viu nessa escolha um grande equívoco em termos financeiros e até morais (afinal, mulher que atua em público sobre um palco não deve ser boa coisa!). Para a minha mãe, ser pianista e compositora era simplesmente impensável e por isso fui expulsa de casa aos 16 anos. Outro obstáculo que enfrentei foi o sexismo, que no mundo da música é tão presente e perverso quanto na sociedade. Eu tinha 17 anos quando comecei a tocar em uma banda de baile para me sustentar. Além de ser a mais nova do grupo, era a única mulher da banda. A outra era a cantora, muitos anos mais velha do que eu. Assédios eram frequentes. E aí pude ver que não era só a minha mãe que achava que mulher em cima de um palco não devia ser boa coisa. Todos achavam que se eu estava atuando em público, estava sexualmente disponível. Não havia respeito pela minha pessoa como uma profissional que estava realizando o seu trabalho. Viam apenas a menina novinha, bonitinha e inocente que sabia tocar piano.

Grupo Novo Horizonte. (Divulgação)

O salto de fazer música do ambiente doméstico para o ambiente público e profissional é gigantesco para as mulheres, até instransponível em muitos casos. Já para os homens, esse caminho parece ser de uma continuidade maravilhosa. São com frequência reconhecidos no ambiente familiar como “prodígios”, recebem todo o apoio da família para fazer essa passagem da esfera doméstica para a esfera pública, sendo que a família é quem empunha o estandarte de “menino prodígio” para a esfera pública. Afinal, meninos podem tudo, não é? Outro ponto importante diz respeito às referências. Oras, se o mundo profissional da música é escandalosamente assimétrico, há pouquíssimas mulheres em quem se espelhar fora da carreira docente. Professoras há de sobra, mas há poucas mulheres em evidência nos palcos. E quando há, os comentários geralmente são em tom duvidoso ou de reprovação, utilizando-se da falsa dicotomia entre carreira e maternidade, “se é boa pianista, é porque não tem família, não tem filhos” ou então atacando moralmente: “se está atuando como solista da orquestra é porque ‘deu’ para o maestro”. Comentários de teor semelhante emergem quando se trata da escolha do figurino, como o caso da pianista Yuja Wang, sendo o mais comum deles a acusação de que ela quer “aparecer mais do que a música”. Por outro lado, ninguém teceu esse tipo de comentário quando o pianista Friedrich Gulda subiu ao palco totalmente nu para tocar recitais na Áustria e na Alemanha. Quando se fala sobre a invisibilidade das mulheres, expõe-se a hipocrisia e o sexismo, porque todas as vezes que saímos de casa atraímos olhares maliciosos, atenção indesejada e desrespeitosa; somos constantemente expostas em peças de propaganda de todo e qualquer produto para consumo.

Com o grupo Vocal D’Quina pra lua no espetáculo de música popular Maria vai com as Outras, 2002. (Arquivo pessoal)

Somos visíveis como objeto, mas não como sujeito, porque quando se trata de reconhecer que uma mulher possa ser tanto ou mais competente do que um homem esse reconhecimento é ausente. O que é invisível é o reconhecimento. Entender isso muda o jogo porque coloca a responsabilidade pela invisibilidade na própria sociedade e não na competência das mulheres. Oras, somos mais da metade da população mundial e seria improvável que fossemos todas incompetentes. Portanto, a hipervisibilidade da mulher enquanto objeto anda de mãos dadas com a ausência de reconhecimento de suas competências enquanto sujeito e ambas cumprem o propósito de nos manter excluídas dos lugares de poder. O movimento contemporâneo que busca trazer à luz as compositoras de ontem e de hoje é absolutamente necessário, não porque seja politicamente correto, mas porque, ao mostra-las, revelam suas produções fantásticas nos forçando a perguntar por que estavam escondidas, e, sobretudo, a quem interessa que não sejam conhecidas? Tome-se o exemplo da Easter Sonata, considerada uma obra prima de Felix Mendelssohn, uma peça de grande fôlego e virtuosismo considerada uma demonstração da virilidade do compositor. Pois bem, em 2012 ficou provado que quem compôs a sonata foi a irmã de Felix, Fanny Mendelssohn (espaço para gargalhadas!). Outro exemplo é a pianista, compositora e pedagoga Hélène de Montgeroult (1764-1836), a primeira professora do Conservatório de Paris e cuja obra antecipa em algumas décadas inovações atribuídas a Chopin e Robert Schumann.

No Brasil, o sexismo realiza uma infeliz união com o racismo para manter a exclusão histórica de mulheres e de negros dos lugares de poder.

Fundação da Associação Brasileira de Performance Musica (ABRAPEM) em Uberlândia, 2011. (Arquivo pessoal)

O racismo à la brasilienne é um racismo velado, sorrateiro e cruel, que combina a cor da pele ao pertencimento a uma determinada classe social e ao nível de educação formal para discriminar. O fato de nunca termos tido uma política segregacionista oficial não quer dizer que não sejamos um país racista. Uma nação escravagista jamais consegue sair incólume dessa mancha vergonhosa que separa seres humanos entre proprietários e objetos. Cresci em um ambiente extremamente preconceituoso. Minha mãe fez de tudo para esconder o meu cabelo e qualquer traço de afrodescendência, mas eu sempre tive consciência que eu era diferente das pessoas que circulavam pelos mesmos lugares de classe média que eu. Só fui entender quem eu era quando fui morar nos Estados Unidos pela primeira vez. Lá, eu fui imediatamente reconhecida e abraçada pela comunidade negra. Foi como se uma peça muito importante do meu quebra-cabeça identitário tivesse finalmente se encaixado no lugar.

Duo Uno com o percussionista Eduardo Gianesella em Rochester, NY, 1990. (Crédito: Louis Ouzer)

Aqui no Brasil, o fato de eu ter nascido em uma família de classe média, ter feito faculdade, ter doutorado, ser professora universitária, me “embranquece”, a ponto de ter ouvido comentários contrários, mas “bem intencionados”, sobre o fato de eu assumir a minha afrodescedência, pois vêm nisso um demérito a minha pessoa. Acho que isso mostra muito bem o preconceito à la brasilienne. Na minha opinião, uma forma de combater esse racismo velado é virar de ponta cabeça o projeto de branqueamento através da miscigenação racial tornando visível a afrodescendência. Em 2007, a prefeitura de São Paulo realizou um projeto muito bacana espalhando por vários lugares públicos fotos de afrodescendentes ilustres que a história branqueou, como Nilo Peçanha, Mario de Andrade, Chiquinha Gonzaga, Carlos Gomes, Castro Alves, entre outros.

Ficou faltando Francisco Braga, outro grande compositor brasileiro.

Com Alice Knowles e Rin Osaki após performance na Albright-Knox Gallery em Buffalo, NY, 2009. (Arquivo pessoal)

Prestes Filho: Você escreveu no documento “Memorial – memórias, reflexões e a trajetória de uma pianista fora de curva” que: “A inquietação e o não-conformismo na vida e na arte rejeita rótulos fáceis e cômodos na busca por uma vivência musical plena, sempre em movimento, sem querer firmar residência em algum território demarcado por gêneros ou práticas musicais. Nomadismo musical, música em trânsito, identidade de fênix que fez da Música (sim, com M maiúsculo de tão grande e vasta) a sua casa e a sua missão de vida”. Na sua opinião não existe separação entre a vida e a arte, entre o perfeccionismo e o imperfeito? Em todos os quatro capítulos do seu memorial está presente esta sua visão?

Catarina Domenici: A separação entre a vida e a arte é artificial. Não quero dizer que sejam a mesma coisa – de jeito nenhum! – mas que sou o que sou como artista por causa da minha história de vida. Minhas perdas, dores, traumas, alegrias, aflições, indignações sociais e políticas são o combustível para fazer arte. Eu sou perfeccionista no sentido da auto-exigência, mas o perfeccionismo para mim é a eterna caminhada, o eterno aperfeiçoamento. Rejeito a perfeição enquanto estado estático que não existe nem na vida e nem na arte. Um momento pode ser perfeito, mas é efêmero. Se tentarmos nos apegar àquele estado de perfeição ficamos paralisados, morremos porque resistimos ao movimento, à vida, e não crescemos como artistas. Fazer arte é um risco constante. Na nossa cultura patriarcal, as mulheres são ensinadas a evitar o risco a qualquer custo em nome da segurança. Já os homens, assumem o risco abertamente confiantes de que há todo um mecanismo cultural que os acolhe quando falham. A falha para as mulheres pode ser fatal. Nelson Rodrigues com toda a sua mordacidade evidencia a relação entre gênero e perfeição quando declara que “perfeição é coisa de menininha tocadora de piano, fazedora de bordado”, colocando-se como um verdadeiro artista por abraçar seus defeitos e incorporá-los a sua arte. Não há como arriscar-se sem saber lidar com a inevitabilidade da falha. Thomas Edison falhou mil vezes antes de produzir uma lâmpada na sua tentativa de número 1.001.

Na arte, para que momentos perfeitos existam é necessário percorrer um longo caminho de buscas e tentativas, algumas bem sucedidas, muitas não.

Recebendo o primeiro Prêmio Açorianos de Música em 2005 pelo CD Porto 60. (Arquivo pessoal)

Prestes Filho: A Academia Brasileira de Música (ABM) desempenha papel importante na difusão da música brasileira. Você entende que o compositor deve participar de associações e sindicatos para encaminhar reivindicações e participar ativamente das lutas populares?

Catarina Domenici: A Academia Brasileira de Música é uma instituição fundamental para a memória da música do nosso país. Outra instituição, ainda jovem mas de extrema relevância, é o Instituto Piano Brasileiro que realiza um trabalho primoroso de pesquisa musicológica, criação de acervo e difusão da música brasileira, disponibilizando partituras e gravações da nossa música.

Em um país que ainda tem muita dificuldade em reconhecer e cuidar da sua memória, um país tão pobre em editoras de música, o Instituto Piano Brasileiro vem fazendo um trabalho essencial para a circulação desse vasto repertório. Financiado por doações de membros da comunidade que desejam contribuir para que a nossa música não se perca no pó da história, o IPB inova por apresentar uma outra maneira de preservar e difundir a música brasileira.


LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).