Por Carlos Mariano –
No dia 6 de maio, a polícia do Rio de Janeiro fez uma operação na comunidade do Jacarezinho, uma das mais pobres e violentas da cidade e a mais negra das chamadas favelas do Rio, com a alegação que seria para o tal chamado combate ao tráfico de drogas na localidade. O resultado foi o extermínio de 27 pessoas numa operação que, segundo a imprensa, foi a mais letal praticada contra favelas no Rio de Janeiro em toda a sua história.
As favelas, construídas nos morros do Rio de Janeiro no início da República brasileira, foi uma arquitetura desesperada construída pelos excluídos de maioria negra como resposta ao descaso das autoridades com as vidas dos pobres da cidade no início da Primeira República.
Ao longo de sua existência as favelas cariocas se tornaram alvo de discriminação e local visto, por boa parte da opinião pública, como antro da criminalidade e barbárie e que deveria ser combatido com o rigor da lei e da arma. Pouca coisa foi feita para incluir as favelas e os favelados na chamada agenda política institucional carioca. Quando olhamos para os morros do Rio já vêm em mente imagens de tiros e corpos negros estendidos nos seus becos e vielas.
Uma das raras vezes em que não vemos seus moradores estigmatizados pela violência e o banditismo é quando assistimos um ensaio, desfile ou uma exibição qualquer das nossas queridas escolas de samba. Elas surgiram e foram materializadas dentro de nossas favelas por favelados pretos.
Essas mesmas pessoas que o ano todo são discriminadas socialmente e racialmente por parte da sociedade conseguem realizar o maior espetáculo de cultura popular do planeta: os desfiles das escolas de samba.
A favela do Jacarezinho, comunidade em questão neste artigo, foi – como diz um dos seus mais emblemáticos líderes comunitários, Rumba Gabriel, um exemplo de quilombo urbano. Ali se refugiou uma enorme quantidade de negros e negras que foram largados e largadas à própria sorte, de forma irresponsável, pelas autoridades na pós-abolição da escravatura.
Por volta de 1920, o morro do Jacarezinho começa a receber uma boa quantidade de leva de refugiados na parte mais alta do local. Assim, os refugiados ficavam mais perto do céu e longe da polícia, que já naquela época cumpria seu papel de capitão do mato, reprimindo o ajuntamento de famílias negras que não tinham onde morar.
Durante a chamada era Vargas, várias indústrias se fixaram no bairro do Jacaré, onde se instalou a favela do Jacarezinho. Nesse período, ocorreu segundo Rumba Gabriel, uma evolução na qualidade de vida dos moradores da favela.
Isso porque foram gerados empregos nas fábricas e também houve uma melhoria nos índices na área da educação.
É claro que sendo a favela do carioca com o maior número de negros no seu território, o Jacarezinho tinha que ter escolas de samba e sambistas de qualidade. Para preencher a ausência e omissão do poder público, a comunidade do Jacarezinho desenvolveu uma organização e união comunitária peculiar entre as favelas do Rio de Janeiro. Nessa força comunitária se destacou a liderança e participação da mulher negra da favela do Jacarezinho. Como ocorreu na maioria das favelas cariocas, o samba e as religiões de matrizes africanas nasceram praticamente juntas e cumpriam um papel social.
A negritude do Jacarezinho floresceu com seus batuques dos terreiros de umbanda que, em grande parte, era comandado por mulheres como Tia Lurdes, Tia Madalena, Dona Ziza e Tia Dorinha. Essa última nos deixou em 2019, aos 101 anos de idade.
À exemplo da umbanda, as mulheres negras do Jacarezinho também foram protagonistas no samba. Andressa Moreira da Silva, mulher de fibra que se tornou grande liderança comunitária na favela, alfabetizou e cuidou à sua maneira da criançada local. Andressa também se destacou no âmbito da cultura popular. Foi ela quem organizou e fundou na parte mais íngreme do morro, a Escola de Samba Unidos do Morro Azul – uma das escolas de samba que, junto com a Unidos do Jacaré e o Bloco “E Não Tem Mosquito”, em 16 de junho de 1966, deram origem a nossa Unidos do Jacarezinho, hoje única agremiação da favela.
A trajetória vitoriosa da Rosa e Branco no asfalto carnavalesco começou com o carinho recebido pela Estação Primeira de Mangueira, que apadrinhou a escola e, com sua primeira conquista em 1967: campeã do grupo 3 das escolas de samba, com o enredo “Exaltação a Frei Caneca”.
A história da Unidos do Jacarezinho, bem como de toda a favela, foi feita de muito suor, luta e persistência. Na história dos desfiles a Jacarezinho passou somente quatro vezes entre as grandes escolas de samba carioca: em 1970, 1973, 1987 e 1989. Nas outras vezes se revezou nos grupos intermediários do acesso.
Como escola pobre encravada dentro de uma favela esquecida pelo poder público, a Unidos do Jacarezinho também foi renegada por boa parte do mundo do samba preocupada muito mais com a glamourização das grandes escolas de samba que desfilam seu luxo e riqueza na Marquês de Sapucaí.
Esquecida hoje na Avenida Intendente Magalhães, espaço destinado ao desfile dos grupos intermediários, a Jacarezinho vive da força comunitária e da sua história como grande território negro do samba carioca. Pelo seu modesto barracão carnavalesco passaram e despontaram grandes expoentes do samba carioca como Cartola, Gaspar, Nelson Sargento, Bezerra da Silva. Mas, o que teve maior envolvimento amoroso com a escola foi o grande poeta Monarco da Portela que, pela sua ligação com os sambas e enredos escritos na agremiação, poderia também ser conhecido como Monarco do Jacarezinho. Aliás, as duas paixões de Monarco, Portela e Unidos do Jacarezinho, representam formas distintas de organização e reconhecimento como escolas de samba de origem negra.
A Portela, criada pelo sambista e pensador negro Paulo da Portela, objetivava, como dizia seu próprio líder, ser uma escola criada por negros, mas que deveria se abrir e ser conquistada pelos “não negros”. Não é à toa que a Portela é uma das escolas de samba que mais sofreu um processo de branqueamento cultural e várias crises de identidade na sua história. Vale lembrar a saída de Mestre Candeia, um dos maiores compositores da escola, por discordar dos rumos que a Portela estava seguindo. Rumos que, segundo o mestre, negava a raiz negra de formação da escola. Depois que se desligou da Portela, ao lado de outros sambistas negros, Candeia fundou a Grêmio Recreativo Escola de Arte e Samba Quilombo que tinha como base de pensamento a revalorização das raízes negras e populares das escolas de samba.
Por outro lado, à Unidos do Jacarezinho, sendo impactada pela deterioração social do local, não restou outra alternativa a não ser desenvolver-se para dentro da sua própria comunidade. A Unidos do Jacarezinho ao longo de sua história no carnaval se afirmou como uma escola de samba de materialidade e pensamento negro.
Quando ouvimos o lindo samba que Monarco compôs para Rosa e Branco “Geraldo Pereira, eterna glória do samba”, de 1982, que deu o título de campeã do terceiro grupo à escola, estamos vendo uma agremiação que desenvolve e monta seu desfile calcado numa narrativa que reafirma a criação da escola de samba como instituição da cultura negra.
Lutarmos pela existência do pavilhão Unidos do Jacarezinho é manter acesa a chama da resistência negra quilombola com sua poesia e samba de raiz e, ao mesmo tempo, olharmos para a comunidade do Jacarezinho sem enxergamos nela somente a violência sofrida todos os dias pela total ausência de políticas públicas.
Bibliografia:
Artigo “Jacarezinho: A história da favela mais negra do Rio”, autor. Willian Rios – Veja Rio 16/08/2020.
Schwarcz Lilia e Starling Heloisa, Brasil: uma biografia. Companhia das Letras SP 2015.
Pimentel João, “Cinco Escolas” Verso Brasil Editora 2012.
CARLOS MARIANO – Professor de História da Rede Pública Estadual, formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador de Carnaval, comentarista do Blog Na Cadência da Bateria e colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
MAZOLA
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