Por João Batista Damasceno

O Caso Mariana Ferrer mobilizou a sociedade e outros casos foram reportados, assim como foram analisadas e discutidas as condutas dos agentes do Sistema de Justiça. A cada dia mais, ouço relatos de estupros e assédio sexual de amigas, alunas, filhas de amigos e de outras mulheres cuja dignidade sexual foi violada. As vítimas já não se sufocam no silêncio e denunciam. Talvez pela idade, pelo respeito que expresso pelas vítimas e seus familiares, pela confiança em mim depositada ou por outro motivo que desconheço, sou procurado para ouvir. Ouvir, em tais situações, é humanismo. Em nenhum caso vi as instituições funcionando adequadamente.

Temos deficiência no trato da questão. O comportamento formal e legal se exige da pessoa vitimada é incompatível com o seu estado emocional. Ao lado das medidas legais é preciso estabelecer serviço de apoio humanizado às mulheres vitimadas. Mesmo nos casos em que atuei, como juiz, tenho sérios questionamentos se fiz o que era mais adequado, ainda que tenha a consciência tranquila de que não teria como fazer diferente. Mais que nunca tenho compreendido não se poder esperar da pessoa vitimada por violência sexual comportamento padrão, nem exigir que a comunicação seja imediata. Cada pessoa vitimada se comporta de uma maneira, assim como cada uma tem um tempo para elaborar o que lhe sucedeu.

A constituição da família tradicional brasileira, na colonização, sob o regime de economia patriarcal, teve como característica a formação de uma sociedade agrária e escravocrata em que tudo era permitido ao senhor. ‘Senhor’ era título de potestade, a que muitos aspiravam, sem limites de qualquer ordem no âmbito de seus domínios. A fazenda, local onde tudo se fazia, tudo podia ser feito, inclusive o ‘apossamento’ das mulheres negras e índias, sem qualquer limitação ordenada pela ‘civilidade’. E, sob a ideologia de que o senhor rural tudo podia, nem a vítima deslegitimava a violência a que era submetida. Em não poucas famílias brasileiras ainda há quem se vanglorie da origem indígena sob o fundamento de ter alguma ascendente “pega a laço”. O ‘apossamento sexual’ era forma de subjugação do corpo de quem era tratada como objeto.

A violência sexual contra mulheres sempre foi tratada com irrelevância pelas instituições brasileiras. Na Colônia, em alguns casos, chegava-se a multa. Mas irrisória. Diversamente, a blasfêmia contra os santos ou a ‘feitiçaria amorosa’ era punida com degredo. O comportamento do colonizador era de sadismo e a prática sexual forçada, se não resultasse lesão corporal, não era considerada violência sexual. O estupro consistia numa transgressão deliberada para explicitar poder, demonstrar quem estava acima das normas e quem podia ‘profanar’ corpo alheio. Os Bandeirantes, ‘cablocos’ nascidos do estupro das índias, igualmente aprenderam a fazer apreensões de pessoas, escravizá-las e se ‘apossar’ das mulheres de outras tribos. O sadismo do conquistador transmitiu-se socialmente aos seus descendentes e se estendeu às demais mulheres, sob a forma de repressão sexual e social do pai ou do marido.

O estupro foi uma forma de desonrar os vencidos e suas mulheres, esteve presente em todas as guerras dos povos ocidentais, remanesce atualmente com os soldados estadunidenses no Oriente Médio e por agentes do Estado em incursões militares nas favelas e periferias, bem como nos presídios. Também está presente em ocorrências com jovens brancas de classe média, usuárias de drogas e chamadas de “ratinhas de favela”, ou outras em incursões para conhecimento de realidades distintas das suas, praticadas, por vezes, por quem também é cotidianamente vítima de outras violências. Além da prática sexual com violência ou ameaça, e com pessoa vulnerável incapaz de consentir, também é atentado à dignidade sexual o assédio de pessoa privilegiada em relação de poder.

A prática do estupro, não raro, envolve pessoa das relações sociais da pessoa abusada. O assédio sexual sempre decorre de abuso em relação de poder. Estupro não é sexo e não implica desejo e gozo, mas dominação sobre o corpo de outrem. A cultura do estupro e do assédio sexual é uma cultura de subjugação. A cultura do estupro é parte do passado que insiste em permanecer presente em nossa ‘conservadora modernidade’. A abominável cultura do estupro pode permear todas as classes sociais, graus de instrução, níveis econômicos e etnias. Se a educação não for libertadora o desejo dos que foram oprimidos será tornarem-se opressores.


JOÃO BATISTA DAMASCENO – Professor da UERJ, Doutor em Ciência Política (UFF), Juiz de Direito substituto de Desembargador do TJRJ, membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia, colunista e membro do Conselho Editorial do jornal Tribuna da Imprensa Livre.