Por José Carlos de Assis

A ideologia é um veneno poderoso que atua sobretudo em tempos de crise. Recente entrevista do ex-governador Ciro Gomes, sustentando que se deveria usar as reservas internacionais do país para financiar a retomada da economia, é fruto da profunda ignorância sobre relações financeiras que está envenenando as mentes mais vulneráveis da economia política brasileira. É com certa decepção que constato a vulnerabilidade também de Ciro.

Ele fala também em quantidades: acha que não precisamos mais de 250 bilhões de dólares em reservas. Supostamente, os cerca de 150 bilhões de dólares restantes, em relação a menos de 400 bilhões de dólares atuais, poderiam ser investidos. Entretanto, Ciro não explica como se faz essa mágica. Como gastar um milhão de dólares das reservas? Não é tão simples como parece. A moeda corrente no Brasil é o real, não o dólar. Isso dificulta tudo.

Para usar em investimento interno um milhão de dólares das reservas, é preciso que o Banco Central converta esses dólares em reais. Para isso, terá que emitir real. Entretanto, emitir real é da rotina diária do Banco Central. Seu impacto monetário na economia se esgota na emissão. O Banco Central não precisa de comprar dólar para emitir real. É um emissor soberano, sem lastro. Pode fornecer real para a economia sem mexer nas reservas em dólar.

Como se explica isso? O motivo é muito simples. Quando entra dólar na economia por conta de uma exportação, o Banco Central compra o dólar do exportador e lhe dá em contrapartida reais de sua emissão. Quando sai dólar por efeito de importações, faz a operação contrária: recebe uma receita em real do importador e fica com o dólar correspondente nas reservas. Receitas em dólar e real se equivalem segundo a taxa de câmbio.

Há apenas uma condição possível para o uso das reservas em investimento: caso o Banco Central venda os dólares no mercado negro. Mas isso não seria inócuo, independentemente do aspecto moral. Ao converter dólares no mercado negro, sem a correspondente emissão de real pelo Banco Central, seria inevitável uma forte contração monetária interna da economia, pois os usuários do dólar enxugariam o mercado.

Essas relações financeiras são características de uma economia de moeda soberana e não conversível no mercado. Nelas, a função das reservas é, fundamentalmente, garantir o fluxo do comércio de importações e de pagamentos externos. No Governo Sarney, no ápice da crise da dívida externa brasileira, tivemos o grande impacto de um esgotamento virtual de reservas internacionais, levando-nos à moratória externa.

Hoje, o confortável colchão de reservas deixado pelo Governo Lula seria uma tremenda ajuda para garantir compras externas de equipamentos e tecnologia, sem risco de calote. A política de Guedes, ao contrário, esgotando as reservas exclusivamente por negociatas financeiras de seu grupo de pilantras, nos põe em risco direto de não pagar nossas contas externas quando a crise atual acabar. É que este Governo não tem política industrial.

A China tem 4 trilhões de dólares em reservas e nem sabe direito o que fazer com elas, pois seria afogada em importações, prejudicando a indústria nacional. Certamente não fará como o Governo Dutra, que queimou em quinquilharias nossas reservas constituídas na Segunda Guerra.Os comentaristas que se metem por mares desconhecidos causam tremendo prejuízo ao debate nacional. Desviam-nos de assuntos centrais, como a privatização.


JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964. Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro. Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica.