Por Sérgio de Souza Verani

“Nós, os da Psiquiatria Democrática, ligados ao povo, ligados aos movimentos políticos que lutam pela libertação do povo, escolhemos a face libertadora, e não o lado repressivo.” (Franco Basaglia)

O Movimento da Luta Antimanicomial produz a lei 10216, de 6.4.2001, que “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”.

O antigo modelo da segregação e enclausuramento hospitalar é substituído por uma extensa rede de atenção psicossocial, com gestão democrática, integrada ao SUS.

A tutela psiquiátrica é rompida. A pessoa portadora de sofrimento psíquico torna-se sujeito da sua vida, resgatadas a sua dignidade, a sua cidadania, a sua liberdade.

Como seria bom, para a garantia dos Direitos Humanos, que os profissionais do sistema de justiça fossem influenciados pela literatura antimanicomial e por suas práticas, com a formação de um pensamento crítico, a orientar o seu trabalho para a defesa da liberdade, da dignidade, da vida.

Mas a ideologia punitivista prevalece: 800.000 pessoas presas! É como se não existisse a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10.12.1948: “Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.” (art. 5º)

Para o autor da ação criminosa considerado inimputável, permanece ainda no Código Penal (artigos 26, 96, 97) a medida de segurança de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (o Manicômio Judiciário), por tempo indeterminado, até a “cessação de periculosidade”.

Essa internação compulsória é absolutamente inconstitucional. E deslegitimada pela lei 10216/01, que exige fundamentação médica precisa para a internação, medida excepcional, em qualquer das suas modalidades.

O próprio conceito de periculosidade é incompatível com os pressupostos dogmáticos e democráticos do Direito Penal, além de violentar os Direitos Humanos.

Eugênio Raul Zaffaroni considera esse conceito de periculosidade “o produto de uma ideologia racista, colonialista, pseudocientífica e antidemocrática”, que tem servido para produzir genocídios. (Manual de Derecho Penal – Buenos Aires, 1987).

Conheci o Manicômio Judiciário Heitor Carrilho em março de 1983, com meus alunos da Faculdade Cândido Mendes, Ipanema. A lembrança daquelas portas inescrutáveis é aterrorizante.

Numa das celas havia um velho, 88 anos, recostado na cama, balbuciando algumas palavras, pedidos de cigarros às jovens alunas de Ipanema. Chamava-se Febrônio Índio do Brasil, e cumpria medida de segurança há 56 anos. Era uma pessoa destroçada, aniquilada, produto da segregação manicomial.

É Isto Um Homem? Indaga Primo Levi, no livro sobre o tempo de prisão em Auschwitz.

O Jornal do Brasil, em 29.05.1983, publica uma excelente matéria, dos repórteres Antero Luiz e Glória O. Castro: “Preso que assustou o Rio é esquecido no manicômio.”

O JB conta que Febrônio foi preso em agosto de 1927, acusado do homicídio de dois adolescentes. E o seu nome, Febrônio, passou a servir “para designar um homossexual ou era usado pelos pais que queriam assustar seus filhos.”

O laudo psiquiátrico, de 1929, foi elaborado por Heitor Carrilho. Trechos desse laudo encontram-se no texto “Febrônio, Blaise e Heitor”, de Guilherme Gutman (Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental, S.P., v. 13, n.2, 2010): ”Febrônio é portador de uma psicopatia constitucional caracterizada por desvios éticos, revestindo a forma de loucura moral e perversões instintivas, expressas no homossexualismo com impulsões sádicas.”

O laudo conclui, após mencionar “a sua iniludível temibilidade”:

“Portanto, deve ele ficar segregado “ad vitam”, para os efeitos salutares e elevados da defesa social.”

Um ano depois daquela visita ao Manicômio, Febrônio morreu, em 27.8.1984, com 89 anos, passados os últimos 57 anos nesse Manicômio.

A determinação do psiquiatra Heitor Carrilho cumpriu-se integralmente: segregado “ad vitam.”

Agora, a Reforma Psiquiátrica corre grande risco.

O governo genocida do Presidente Bolsonaro não tem limites no seu projeto para a destruição da vida e dos direitos sociais.

No final do ano passado, o Ministério da Saúde (ou Ministério da Morte, mais de 380.000 pessoas mortas por Covid-19) acolhe um documento da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) – “Diretrizes para um modelo de atenção integral em saúde mental no Brasil” – que constitui um grave retrocesso.

Esse documento até afirma que os seus “pressupostos éticos estão de acordo com os definidos pela lei 10216/01”, e enuncia como primeiro princípio ético a “promoção dos Direitos Humanos dos indivíduos com transtorno mental e seus familiares”. Mas as diretrizes apresentadas são a negação dos Direitos Humanos e a destruição das práticas e valores produzidos pela Reforma Psiquiátrica e pela lei 10216.

Uma das propostas da ABP é a criação de “um moderno Hospital Psiquiátrico”. E, para esse moderno Hospital, recomenda “a inclusão da eletroconvulsoterapia (ECT) nas listas de procedimentos do SUS considerando sua sólida base científica, eficácia e efetividade.”

Sobre a Medida de Segurança, critica o conceito da periculosidade, mas, negando o que diz, propõe “a criação de pelo menos um Hospital Psiquiátrico Forense por Estado, com pessoal qualificado, em número adequado e devidamente treinado para lidar com este tipo de paciente, nos moldes da psiquiatria forense moderna.”

A linguagem revela o preconceito e a ideologia da desclassificação humana.

Propõe-se, na verdade, o retorno ao destino de muitos Febrônios.

É a produção da necropsiquiatria, aliando-se à necropolítica dirigida pelo Governo Federal.

O documento da ABP tem produzido uma grande reação, com muitas manifestações de repúdio.

O Manifesto da Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica, da Luta Antimanicomial e do SUS conclui:

Somos Antimanicomiais e reafirmamos que a nossa luta é pelo cuidado em liberdade e pelo fim de todos os hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas e instituições afins, com sua substituição definitiva por uma rede de serviços abertos e comunitários de base territorial.”

Por Uma Sociedade Sem Manicômios. Por Uma Sociedade Sem Prisões.


SÉRGIO DE SOUZA VERANI é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, membro da Associação Juízes para Democracia.