Por Ricardo Cravo Albin

“Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém” – (ditado popular).

Desde que as autoridades públicas menos atentas à disseminação do Coronavírus começaram a perceber que a Ômicron estava arrefecendo, a pouca cautela habitual se fez presente num abrir e fechar de olhos. Em especial por agora, na abertura do período eleitoral, em que os autoritários de sempre pensam que liberar os cidadãos de itens incômodos como proibição de agrupamentos, e, sobretudo as máscaras, serão excelente moeda para aquinhoar simpatias, ou seja, votos. Ledo engano, até porque essa liberalidade precipitada custou graves prejuízos eleitorais nas últimas eleições à figuras como Crivella e mesmo Bolsonaro.

Quando no ultimo desfile de 21 de abril das Escolas de Samba fui convidado a visitar um luxuoso camarote, fui instado a retirar minha máscara à entrada por conta de que todos lá dentro estariam sem máscara. É claro que recusei, dei meia volta e retornei à segurança da adorável cabine de transmissão do desfile pela Rádio Roquette Pinto. Onde todos respeitaram meus cuidados pessoais.

Vê-se agora, especialmente nos últimos dias, um fato gravíssimo ocorrer, um grande aumento de novos diagnósticos da pandemia, bem como alta no índice de transmissão. Além da baixa procura por vacinação. Tudo isso, digamos de imediato, era presumível, afinal estamos no outono, alguns dias já são gelados. E o óbvio, só não vê quem não quer: a disseminação de doenças respiratórias começa a se impor.

Nas últimas semanas voltou aquilo de que eu tinha absoluta certeza, as máscaras, as velhas, incômodas, mas necessárias máscaras a abortar a contaminação pelo seu principal caminho, as gotículas projetadas pelos contaminados nas faces de seus interlocutores.

Como observei ainda há pouco, o sul do país (mais frio) está à frente do maior número de contaminações. As escolas e prefeitura de lá já recomendaram com vigor a volta das máscaras. A primeira cidade foi Londrina. A medida de contenção foi baseada no aumento de 370% nos casos de Covid-19 nesses últimos 30 dias.

Na sequência, e essa pandemia não é mesmo para brincadeira de políticos levianos a se fazerem de bonzinhos, cidades de cinco estados do sul já voltaram a recomendar o uso de máscaras: São Bernardo do Campo (MG), Petrópolis (RJ), Maringá (PR), Poços de Caldas (MG) e Canoas (RS). Estou acompanhando com preocupação aquilo que desde o Carnaval pressupunha, o agravamento da pandemia pela liberação dos cuidados que continuam necessários. Acabo de ler boletim da Fiocruz (e aguardo com ansiedade uma próxima nota da querida médica Margareth Dalcolmo) que assegura o temível aumento de casos de Covid-19 em todas as regiões do país, ao lado, o pior, do aparecimento de outros vírus respiratórios. O que se vê, a partir do Sul, ou seja, o temor de crescimento (ou volta) da pandemia já é fato concreto. Diversas escolas e universidades em estados como Paraná, Rio Grande do Sul, Minas e São Paulo, assim como a nossa UFRJ, passaram a indicar aquilo de que eu tinha a certeza, voltariam as máscaras. Escolas de São Paulo parecem agora estar à frente na corrida à cautela e urgente proteção. Outro fator de peso, e muito necessário, será a vacinação imediata dos 12 aos 18 anos, que acabou de ser liberada enquanto escrevo as notas de agora. Segundo a Fiocruz os adolescentes nessa faixa etária foram muito atingidos pela pandemia, razão por que sua imunização há que ser imediata e urgente.

Agora, um fato muito aflitivo acaba de ser informado: apenas 42,46% da população tomaram a dose de reforço contra a pandemia. Para o presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde será essencial, para segurança geral, atingir os 90%. E ele mesmo alerta que pode estar a ocorrer uma novidade no Brasil – “o silêncio epidemiológico”, porque alguns municípios têm relatado aumento de internações e oscilações de óbitos, sem correspondência de casos. Para encerrar, concluo com outra notícia que merece todos os cuidados, é a possibilidade de epidemia de uma novíssima doença, a varíola dos macacos, supostamente já extinta. Mas que insiste em voltar. Faço minhas as palavras da microbiologista Natalia Pasternak: “o diagnóstico da varíola dos macacos não será nunca óbvio, porque se confunde com catapora, sífilis e doença de pele. Treinamento dos profissionais de Saúde, estratégias de isolamento e vacinação precisam existir”.

“Tudo isso”, conclui Pasternak, “requer visão, planejamento, verba e muita, muita vigilância”. Assim seja…

As cientistas Margareth Dalcolmo e Natalia Pasternak

P.S-1: Falando em saúde e em necessidade de fé na ciência, um aplauso fraterno para o cientista e grande médico Paulo Niemeyer Filho, que, com apoio expresso do presidente Merval Pereira, se empossou há dias na Academia Brasileira de Letras como uma representação da fina flor dos médicos escritores deste país.

P.S-2: Ainda da ABL, na próxima sexta se empossará o jurista pernambucano e escritor José Paulo Cavalcanti Filho.

P.S-3: A semana marca ainda o aniversário de cem anos da maior figura da nossa cena teatral, a grande Bibi Ferreira. Na quarta, a Cesgranrio do mestre Carlos Alberto Serpa lança um livro esperado por décadas, a biografia da Bibi, opulento volume escrito pela jornalista e atriz Jalusa Barcellos. Será distribuído para todo o país.

Transcrevo abaixo súmula do prefácio que fiz para o livro de Jalusa Barcellos, “BIBI FERREIRA, A SAGA DE UMA DIVA”.

100 ANOS DE BIBI FERREIRA

Uma necessidade a que o Brasil aspirava por décadas realizou-se em minutos.

A “necessidade” era a biografia substancial da lenda Bibi Ferreira, a mais completa atriz deste país ao longo dos seus mais de 90 anos de vida. O “realizar-se em minutos”, a autora já deixou claro, mas eu faço questão de sublinhar mais uma vez. Porque Carlos Alberto Serpa, ao nos receber em seu gabinete da Cesgranrio, e ao ouvir o que nos trazia ali, o apoio solicitado por Jalusa Barcellos para finalmente produzir-se uma biografia de Bibi Ferreira, foi cortante – “Para Bibi, feita por você, amiga íntima dela, além de autora da biografia do Procópio? Além de vir aqui trazida por este meu velho amigo? Fechado! Mãos a obra, porque a mais completa expressão das artes neste país de memória tão escassa quanto injusta merece a melhor biografia dentre todas já feitas até aqui”.

Embora dispondo de tempo exíguo, acompanhei, aqui, acolá, pela estima de décadas à autora, e pela devoção desde menino à biografada, o minucioso trabalho de elaboração deste livro.

Jalusa se entregou com furor e paixão ao trabalho. Mergulhou em todos os arquivos disponíveis. Ouviu meio mundo – a classe inteira ansiava por testemunhar vivências pessoais ao cruzar com a Diva. Levantou segredos. Pôs de pé personagens exumados por Bibi dentro e fora dos palcos, atores de carne e osso, além dos personagens criados por dramaturgos e que passara a ser incorporações suas.

Acabou por compor, é o que deduzo ao terminar de ler esses capítulos tão intensos, uma sentida declaração de amor à nossa extraordinária pequena grande mulher. Aliás, sobre a banalidade desse lugar comum, só o cito porque me faz evocar uma das maiores alegrias de minha vida.

Como sempre foi meu hábito desde adolescente, jamais deixei de comparecer a qualquer espetáculo com Bibi em cena. Certa vez, ela fazia curta temporada em espaço pouquíssimo usual imaginado pela perspicácia de Montenegro e Haman. No último dia de Bibi naquele local, um domingo, era meu aniversário. Não hesitei um segundo em abandonar uma festeta para mim que rolava desde às 5 da tarde e corri ao show no Shopping. A cantora Carmélia Alves me acompanhava. Ao sentarmos, Carmélia quis porque quis cumprimentar Bibi antes do espetáculo, alegando ter que voltar às pressas ao aniversário para cantar os parabéns. Cinco minutos depois, Bibi entra em cena, radiosa, em grande noite de vivacidade, roupas e adereços. Pede aos músicos que não ataquem o arranjo de abertura para seu primeiro número.

Soleniza-se, põe-se no centro do palco e ternamente diz: “Quero que vocês ouçam com atenção a razão que me faz sair do roteiro. E me acompanhem em uníssono na cantiguinha que entoarei a seguir. Logo explico: acabo de receber uma homenagem que me sensibilizou muitíssimo nesta noite. Sentadinho ali na primeira fila está amigo muito querido, acompanhado pela Carmélia Alves, a Rainha do Baião. Pois bem, ele quase sempre é o primeiro a aquecer meu coração ao adentrar o camarim a cada espetáculo meu, ano a ano.

Hoje é seu aniversário. Abandonou seus convidados, sequer apagou as velas dos seus quase sessentinha. Este Cravo que guardo na lapela do meu coração também gravou a última entrevista com meu pai, no seu leito de morte há alguns anos. E ainda acaba de, a meu pedido, me assessorar em pequenos segredos de andamento dos dois sambas de Noel Rosa que cantarei pela primeira vez daqui há pouco. Que as luzes da plateia se apaguem e que adentre ao palco o bolo com velas. E começou a entoar, a plenos pulmões, o Parabéns Pra Você. Lívido e quase em lágrimas, fiquei grudado na cadeira. A emoção só foi quebrada quando Bibi, impositiva, ordenou – “Sobe ao palco para soprar essas velas. Tantas que não posso apaga-las. Você sabe melhor que ninguém que tenho que preservar meu fôlego para tantas músicas.”

Subi ao palco um tanto trôpego. Acabei por tropeçar no último degrau e a quase queda me projetou a seus pés. Ainda semi-ajoelhado, pedi o microfone ao contrarregra e balbuciei – “Amada Bibi, estou aos pés da mais reluzente estrela do Brasil para lhe dizer, apenas em superlativos propositais, que você me ofereceu o melhor aniversário que pude ter em vida já alongada. E daqui, quase deitado no seu palco, posso comprovar a magia com que todos se referem a você ao chama-la de a mais alta pequena mulher do Brasil.

Acudiu-me agora mesmo antiga conversa que mantivemos em almoço com Paulo Autran no apartamento do Morro da Viúva. Falava-se da possibilidade de ambos montarem a obra prima de Virginia Wolf, “Orlando, a Mulher Imortal”, personagem de muitas vivências ao longo de séculos, experimentando muitas vidas, parceiros, sentimentos e até mudança de gênero. Orlando na verdade poderia ser uma paráfrase da intensidade de uma atriz em transfiguração constante no palco como Bibi. Estava sempre morrendo (ao terminar uma peça) e vivendo (ao estrear outra). Vivia na pluralidade, roçando a imortalidade. Gravitando ora no espaço, ora na terra. E ao se despedir depois de viver 400 anos incorporando dezenas de diversidades, a Mulher Imortal pode bradar um solene grito de liberdade – “finalmente estou livre”.

Leiam a biografia afetiva que Jalusa Barcellos põe agora a lume com o misto de robustos conhecimentos colhidos ao longo da amizade e trabalhos comuns mantidos por ambas ao longo de décadas.

Ao finalzinho da súmula deste prefácio, reflitam comigo o quanto injustos e desatentos são os que deveriam cuidar com mais zelo da memória da cidade do Rio. Que até hoje silenciam pecaminosamente ao não impor o nome da virtuosa Bibi Ferreira a uma escola, ou uma avenida, ou uma rua. Um bequinho, ou uma pracinha que seja. Embora eu deva acrescentar que essa possibilidade de homenagem pública pouco acrescente aos reluzentes fazeres artísticos da estrela.

Esses sim um foguete incandescente a cruzar céus e memórias da ribalta e do país ao longo de um século.

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.


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