Por Karlos Holanda –

Esse ano completei 17 anos de formado, e até então nunca havia trabalhado com medo em minha profissão. Como médico anestesiologista sempre frequentei ambientes, que poderiam ser considerados de risco, com pacientes portadores de doenças transmissíveis, mas nunca foi algo que me assustasse.

Dia 13 de março de 2020 as primeiras informações sobre lockdown chegaram ao Rio de Janeiro, e nesse mesmo dia embarquei para Ribeirão Preto onde ministro alguns cursos de especialiazação/pós-graduação. Retornei ao Rio na noite do dia 15 de março à noite. Mas logo na chegada meu telefone não parava de receber mensagens, eram colegas cancelando todas as suas cirurgias, pois nem eles, nem os pacientes queriam correr o risco de se contaminar nos hospitais.

A partir daí, notícias de que os médicos seriam convocados para enfrentar o desconhecido Covid-19, começaram a assombrar, principalmente os mais velhos, muitos com comorbidades graves, temerosos por enfrentar o desconhecido e pelo medo da morte, sim caro leitor, médico também tem medo de morrer.

Enterro de vítima de Covid-19, no cemitério de Brasília. (Reprodução)

A partir desse momento, fechei meu consultório temporariamente e fiquei trabalhando somente com a anestesia. E como era ir ao hospital? Era assustador, eu confesso, principalmente pelo medo de deixar meus dois filhos órfãos, afinal eles dependiam muito de mim, mas o pai deles tinha feito um juramento ao se formar e tinha que enfrentar o inimigo invisível para ajudar ao próximo, e não era permitido recuar.

O ambiente hospitalar era sempre tenso, pacientes com aquela terrível doença passavam o tempo todo ao meu lado, mas desistir nunca foi uma opção. Alguns dias depois o medo era ainda maior, pois chegavam notícias de que colegas que conhecia há anos tinham partido e deixado suas famílias em luto.

Movimentação de paciente em frente a um Hospital referência no tratamento de covid-19. (Sérgio Lima/Reprodução)

Lembro de um domingo, onde próximo das 14 horas, logo depois do almoço de família, meu telefone tocou e um colega desesperado me pedia socorro. Um paciente, de nome e história desconhecidos para mim estava morrendo por falta de ar e precisava ser intubado. As tentativas realizadas por colegas da emergência não haviam sido bem sucedidas e eles pediam a presença de um anestesiologista, por sua maior experiência em intubação, para tentar ajudar diante daquele momento tão crítico. Saí com meu carro em disparada, sim era necessário salvar uma vida, e no caminho novamente meu telefone toca, era meu colega informando que a emergência estava com a porta aberta para que eu entrasse mais rápido, respondi que tinha entendido, e fiz a pergunta: É Covid? E ele rapidamente respondeu, sim. Parei meu carro atravessado, e corri em direção a porta, lá uma médica me esperava com olhar aflito e rapidamente me passou o caso. Pedi os equipamentos de proteção individual, coloquei e entrei.

Lá dentro, um senhor de cabelos brancos brigando pela vida, me esperava, eu não podia errar, precisava salvar uma vida, pois aquela pessoa era com certeza o amor de alguém. Entrei pedi o material necessário e iniciei o preparo. Em determinado momento, avisei que estava pronto e com Deus ao meu lado realizei a intubação daquele senhor. Ao final uma sensação de alívio tomou conta de mim e todos lá presentes, fixei o tubo, ajudei a escolher a melhor configuração no ventilador para ele e fui embora. Saí de lá sem saber o nome daquele senhor e sem que a família soubesse quem eu era e o que tinha realizado, mas feliz por ter feito jus ao juramento que fiz ao final de minha faculdade no ano de 2004.

Na volta para casa, parei meu carro e comecei a refletir, lembrei dos meus filhos e pensei, que poderia ser eu aquele paciente. Essa Pandemia maldita estava destruindo milhares de lares e eu implorava a Deus por proteção.

Manaus sofreu com a falta de oxigênio para tratar infectados pela Covid-19. (Reprodução)

E assim continuava minha vida profissional, é verdade que o ritmo era muito menor do que antes, mas o estresse gerado por cada saída para o trabalho, me deixava depressivo. Mas quem me conhece pode perguntar, você com depressão? Sim eu, assim como muitos que estão lendo esse texto, enfrentei um momento de depressão pela primeira vez, mas acabei superando com a ajuda de amigos e familiares. Minha mãe, com seus 80 anos de idade, isolada em sua casa me passava força e dizia que eu precisava me levantar, porém o que eu queria, naquele momento eu não podia ter, que era o seu colo. Afinal o único filho dela era médico, e estava em contato direto com o vírus, e isso me impedia de tê-la ao meu lado.

E em 2021, finalmente recebi a notícia do dia da minha vacinação e fui com sorriso nos dentes até o local. Chegando lá encontrei outros colegas que assim como eu, estavam tomados pelo sentimento de alívio, mas ainda seriam necessários mais 3 meses para tomar a segunda dose, mas isso não importava, o que interessava era que naquele dia a esperança voltava a aparecer como o sol no amanhecer. Ah e sua mãe, tomou a vacina? Sim ela tomou, e só depois da sua segunda dose, consegui finalmente o meu colo de volta. Sim caro leitor, sentir o carinho de minha mãe novamente não tem preço. Lembro da primeira vez que minha filha viu a avó após mais de um ano, e abraçou por longos 4 minutos com lágrimas nos olhos, aquela que para ela é sinônimo de amor.

Movimentação de médicos e paciente com covid-19. (Sérgio Lima/Reprodução)

O médico assim como qualquer outro profissional, tem seus medos, doenças, inseguranças e fragilidades, mas nessa pandemia, assim como Enfermeiros, Técnicos de Enfermagem, Fisioterapeutas, Nutricionistas, equipe de limpeza, entre outros que ficaram na linha de frente da Covid-19, tinha medo, e não era medo de morrer, era medo de deixar sua família desamparada, pois não havia nenhum programa de auxílio para familiares que perdessem seus entes queridos para a doença. Sou herói? Sim, sou o herói dos meus dois filhos, em quem não parei de pensar um só minuto, e por eles me mantive forte, e cumpro até hoje meu papel profissional.

Aqui deixo o agradecimento a todos os profissionais que mantiveram e continuam mantendo os hospitais em pleno funcionamento, e aos que se arriscam para manter os serviços essenciais funcionando, como aquela senhora caixa do supermercado, o balconista da farmácia, o frentista do posto, o entregador do delivery, entre muitos outros, mas lembrem-se, a Pandemia não acabou, e os cuidados devem ser os mesmos de antes, somente com ajuda de toda nossa população seremos capazes de vencer esse vírus.

Dr. KARLOS GUDDE DE HOLANDA MOURA – Médico, titular desta “Tribuna da Saúde”, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Residência Médica em Anestesiologia pelo Hospital Beneficência Portuguesa da São Paulo; Pós-graduado em Laser, Cosmiatria e Procedimentos pela FATESA de Ribeirão Preto; Pós-graduando em Nutrologia pela USP de Ribeirão Preto; Professor da Pós-Graduação de Laser, Cosmiatria e Procedimentos na FATESA de Ribeirão Preto. @dr.karlosholanda


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