Por José Carlos de Assis

Não me encontro entre 36 milhões de brasileiros, e provavelmente de muitos estrangeiros, que seguiam Marília Mendonça na internet e nos palcos. Entretanto, me comovo com a morte de uma pessoa tão jovem que interrompe, aos 26 anos, uma carreira que a própria repercussão nacional de sua morte revelou ser extremamente promissora. Mas não é por não chorar, pessoalmente, por essa tragédia que não deixo de me indignar com suas circunstâncias e fazer a pergunta: Quem a matou?

É que não foi um acidente sem culpados.

Não se pode dizer simplesmente que foi o destino. Não havia, no momento do acidente, ventos e tempestades na trajetória do voo. Não há indicações de falha técnica do avião, que estava em dia com todos os procedimentos convencionais de segurança. As indicações preliminares, ao contrário, é que o aparelho, um bimotor Beech Aircraft, mesmo com mais de três décadas de uso, estava apto a voar com segurança por muito mais tempo. O que houve então?

Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, o grande poeta mineiro que, certamente, com sua fina sensibilidade, estaria entre os que pranteiam Marília Mendonça, “no meio da trajetória do voo havia uma torre de eletricidade da Cemig”. Esta é a maior empresa estatal mineira, cuja privatização, por mais de R$ 22 bilhões, o governador Romeu Zema quer concluir no segundo mandato que provavelmente acha que pode comprar com essa fantástica quantia de dinheiro em caixa.

Mas vamos ao centro da questão. O que matou Marília Mendonça, em última instância, foi o descaso absoluto com a infraestrutura de serviços públicos no país por parte de governantes irresponsáveis e em geral corruptos. É inacreditável que, em zonas de aproximação e decolagem de aviões em aeroportos, não se estabeleça uma infraestrutura preventiva de acidentes, para evitar que casos como o da cantora – como os de outros precedentes – resultem em mortes evitáveis.

As estatísticas revelam que a probabilidade de se morrer em desastre aéreo é de uma em 2 milhões. Bem menor que a probabilidade de se morrer num desastre de carro. Contudo, no Brasil, vemos que, por falta de infraestrutura adequada em aeroportos, o risco tornou-se alto. O que não quer dizer que o risco de morrer na estrada é muito menor: digam os caminhoneiros que estão em greve geral por falta absoluta de condições de trabalho, com salários e preços aviltados de fretes.

Eles morrem extenuados por viagens de mais de 2 mil quilômetros de extensão, sem garantia de retorno; enfrentando buracos e barreiras; consumindo drogas para se manterem acordados; sem direito a locais de repouso nas paradas; sem direito a aposentadoria especial, extinta pela infame reforma previdenciária de Guedes e Bolsonaro; deixando para trás mulher ou marido e filhos, sem segurança de que voltarão com dinheiro suficiente para ir à feira. É um verdadeiro massacre.

Por enquanto lutam praticamente sozinhos. Os petroleiros, que deveriam ser seus aliados naturais pelo interesse comum na Petrobrás, sendo uma das categorias melhor remuneradas do país, parecem mais preocupados em elevar ainda mais seus salários e manter seus empregos do que mudar a política infame de preços da Petrobrás. São de muita retórica, sim, mas de pouca ação. É o que acontece também com as Centrais Sindicais, que apoiam a greve de boca mas nada fazem de prático.

O acidente com Marília Mendonça não foi único, perto de aeroportos.

Foi o mais recente que resultou em tragédia. Antes, ainda em 1998, um avião bimotor Twin Comanche caiu na periferia de Rio Claro, São Paulo, depois de bater num poste de rede elétrica e explodir. Morreram seis pessoas, duas delas crianças. Daí para cá teria sido possível que as autoridades tomassem providências para limpar o espaço aéreo público, junto aos aeroportos, de redes elétricas que representam risco para a vida.

Acontece que não é só perto dos aeroportos que as redes elétricas aéreas matam. Matam com muito mais frequência nas cidades. Matam crianças que soltam pipas e adultos que roubam fios. E o roubo de fios, pelo que a mídia do Rio tem divulgado, tornou-se a fonte de sobrevivência principal de milhares entre os 14 milhões de desempregados e 25 milhões de subempregados que a política genocida de Bolsonaro deixou sem auxílio emergencial digno durante a pandemia.

Minha mulher, Iara, que é advogada criminalista, se mostrou espantada com a indústria de roubo de fios de cobre montada na periferia da capital fluminense. Os ladrões não se contentam em vender o fio encoberto. Querem vendê-lo sem a cobertura de borracha, pois isso dá mais dinheiro. Contratam quem o faça queimando o fio encoberto na rua para tirar a borracha, gerando uma poluição pública infernal. Onde está o crime? De quem não enterrou a rede ou de quem a rouba?

Mas haverá a quem responsabilizar pela morte da cantora?

Em primeira instância, é do órgão regulador, o Decea – Departamento de Controle do Espaço Aéreo, ligado ao Ministério da Aeronáutica. Mas estariam os oficiais do Ministério da Aeronáutica realmente preocupados em dar segurança aos usuários dos transportes aéreos brasileiros? Ou estão mais apegados aos seus próprios cargos, como anjos da guarda dos oficiais de pijama que funcionam como guardiães, no Palácio do Planalto, do facínora acusado de crime contra a humanidade?

É fato que ele ainda não foi julgado, mas não é menos fato que a opinião pública já o julgou. A complacência vem do sistema político, envolvendo praticamente todos os partidos, alguns por ação e outros por omissão. Daqui a décadas, quando um historiador olhar retrospectivamente para o que está acontecendo hoje na sociedade e na economia brasileira, dificilmente compreenderá como um presidente da República, que até um leigo reconhece como paranoico, ficou no cargo durante tanto tempo.

Há pseudolegalistas que, arguindo com a necessidade de se respeitar o rito da constitucionalidade, querem arrastar a situação atual até as eleições no fim do próximo ano. E o que se dirá dos sofrimentos do povo durante o período intermediário de mais de um ano? São milhões morrendo de fome, milhões desempregados, milhões vivendo a míngua de esmolas que já não caem mais com tanta frequência das mesas da classe média, porque também ela teve sua renda degradada.

Os oportunistas que querem esperar pelas eleições antes de removerem logo do poder o usurpador que as fraudou é porque julgam que já as ganharam nas pesquisas. Por isso, toleram que o TSE proclame a todos os ventos que as eleições de 2018, que elegeram Bolsonaro, foram fraudadas, mas que fraudes eleitorais só serão punidas nas próximas eleições. Quanta covardia. Quanta hipocrisia. Quanta crueldade. E tudo com o país em destroços, entregue à própria sorte ou à sorte de quem o rouba.

Os filósofos políticos dos séculos XVII e XVIII que reinventaram, na forma de democracia representativa, a democracia direta grega limitada da antiguidade, alegavam que, diante de um governante que visasse à retomada do poder absoluto dos reis depostos, o povo teria o direito sagrado de rebelar-se. Era um alerta contra as tentativas de poder arbitrário, que Bolsonaro pretendeu suscitar, de forma descarada, com seus dois discursos, em Brasília e em São Paulo, no 7 de Setembro.

Que tenha, agora, sem demora, a resposta devida. Diante da atitude leniente das elites e das classes dominantes com a situação atual, e diante da paciência dos poderosos com os crimes da autoridade máxima formal da República, que o povo, atropelando suas lideranças também formais, tome a iniciativa ele próprio de assumir o controle das instituições da República para recolocá-la no eixo alinhado com seus próprios interesses. É o direito sagrado à rebelião contra os ditadores fascistas.

Isso pode ser realizado de forma ordeira e pacífica, sem que corra o sangue na forma tão desejada por Bolsonaro. Basta que a sociedade civil se organize no sentido de conduzir o processo de restauração de uma verdadeira democracia no Brasil. Pode-se fazer isso com a convocação, ainda no nível da sociedade, de um Pacto Social no qual lideranças expressivas da sociedade se sentem em torno de uma mesa comum para definir o futuro do Brasil.

Vamos sugerir, oportunamente, os passos para isso.

JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política; Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964; Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro; Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.


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