Por Ricardo Cravo Albin

“Que sempre se exibam no Brasil suas danças e seus cantos, nossa alma” – Jorge Amado

O enorme sociólogo Luis da Câmara Cascudo estabeleceu em sua obra literária algumas das fixações do que se deve entender por alma brasileira. E com precisão cortante foi ao cerne da questão quando declarou, inclusive a mim que visitava o sábio em Natal (Rio Grande do Norte) a cada ano para lhe beber da sabedoria: “para se avaliar o Brasil profundo é fundamental aceitar nossa miscigenação, de que se ressaltam duas características, o canto e a dança, voz e pés, os ‘requebros’ do corpo e do gogó”.

Agora mesmo, o atacante do Real Madrid, o brasileiríssimo Vini Junior foi insultado com ofensas racistas em um programa de TV da Espanha. Um jornalista de nome Pedro Bravo, que de bravo nada tem, a não ser a alma suja do preconceito e da tristeza doentia dos infelizes de espírito sempre de mal com a vida. O tal “Nada Bravo” criminalizou o gesto espontâneo do Vini que, na explosão de alegria ao fazer um gol, exibe com a graça habitual dos negros uns passinhos de samba, ao invés de vociferar palavrões ou de se jogar ao chão como tantos usam fazer. Um turbilhão de solidariedade e indignações lhe foram dirigidas, a começar por Pelé, Neymar e até pela CBF.

O grave desse insulto do jornalista espanhol ficou registrado em frase deplorabilíssima e fétida – “Se quiser dançar samba faça no Brasil. Aqui tem que respeitar seus companheiros de profissão e deixar de ser macaco”.

O atrabiliário “Bravo Covarde” não se deu conta – ou se deu – de que a ofensa era a um país, um país de negros e mulatos que sempre dançou, cantou e exibiu alegria e suspiros de uma felicidade possível, sim. Especialmente para celebrar uma explosão como um gol no adversário. Nosso Vini, o Vinícius que porta o mesmo nome do poeta libertário Vinícius de Moraes, manifestou-se até polidamente ante a extrema agressão – “A felicidade incomoda, especialmente quando exibida por um preto brasileiro, vitorioso na Europa. Meu sorriso e minha alegria não se apagarão pela xenofobia e racismo. Criminalizar minhas danças? A dança do meu país? Aceitem e respeitem. Não vou parar. Já há semanas os preconceituosos começaram a censurar as explosões de minhas alegrias, na hora suprema de um gol. Porquê, eu não sei. Talvez inveja…”

O mais imperdoável desse racismo empedernido é tentar deter a alegria, a felicidade. Futebol é – e deve ser sempre – uma alegria. Até porque futebol é também uma dança, que encantou o mundo nas décadas finais do século passado, com a arte de Pelé e Garrincha. O direito de ser feliz e poder exibir isso deveria ser protegido. E estimulado. Jamais censurado, especialmente quando embrulhado pelo horror do racismo, do preconceito, da ofensa rastaquera. Ainda neste último fim de semana, quando Vini jogou em Madrid circularam rumores de que os gritos ofensivos de “macaco” teriam sido gritados por fanáticos. Tudo o que eu espero é que os ouvidos do Vini não tenham registrado a retenção da infâmia. A solidariedade a ele e a todas vítimas de racismo deveria permitir imediata prisão dos agressores. Em qualquer estádio onde se exiba qualquer esporte.

Sugiro que cabe aos clubes mais importantes do Brasil tomarem uma posição mais aguerrida em condenação reiterada a esses desvios e esgares racistas. Que escrevam ao Real Madrid uma solene solidariedade dirigida ao Vini Junior.

E que se dirijam também às autoridades culturais da Espanha, como Ministérios do Esporte, da Cultura e das Relações Exteriores, ratificando que o ofendido não se resume apenas ao jogador. Mas a todo um país, insultado na sua configuração anímica, sua dança fixada desde séculos pelos nossos ancestrais.

P.S.1 – Emito aqui um suspiro de profundo pesar pela morte prematura do escritor e curador Emanoel Araújo, amigo querido, baiano ilustríssimo, que me honrou ainda nos anos 60 com memorável pintura-retrato. Emanoel fundou em São Paulo o museu Afro-Brasileiro.

P.S.2 – Registo com encantamento a chegada do novo livro do sociólogo italiano Domenico de Masi, intitulado “O Trabalho no Século XXI” (Sextante). Criador da expressão “ócio criativo”, De Masi analisa o declínio da era industrial na economia. E defende uma produção mais inteligente, livre e flexível que valorize a felicidade humana. Um bravo à coragem do italiano, que certamente estaria a aplaudir a dancinha de felicidade do Vini. Como acima proponho.

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

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