Por Cid Benjamin –

Entre os anos 1965 e 1973, durante a ditadura militar argentina, um personagem do cartunista Quino (1932-2020) fez grande sucesso e até hoje é apreciado: Mafalda.

Inteligente e questionadora, a cada dia ela dava lições a todos sobre temas do dia a dia, apesar de ter apenas seis anos. As tiras em que eram publicadas pareciam trazer historinhas para crianças, mas apresentavam lições para os adultos.

Mafalda foi um sucesso mundial, tendo sido traduzida para mais de 30 países.

Num episódio, Manolito, um amiguinho de Mafalda filho de imigrantes galegos, lhe perguntou, reproduzindo a mediocridade de um certo senso comum: “Por que no matamos las personas malas? Asi quedaríamos solamente las buenas.”

Mafalda respondeu, de bate-pronto: “No, Manolito. Asi quedaríamos solamente los assassinos…”

Essa tirinha me veio à cabeça diante da onda de violência que assola cidades latino-americanas e das formas de enfrentá-la, como está acontecendo mais recentemente no Equador, quando notícias de rebeliões em presídios e a ocupação de uma emissora de TV por grupos de bandidos impressionaram o mundo.

Esse quadro faz com que supostas soluções, como a apresentada por Manolito a Mafalda, ganhem mais adeptos. Isso ocorre particularmente em El Salvador, onde está em curso a principal experiência de aplicação dessas propostas, sob a batuta do presidente da República, Nayib Bukele.

Matérias publicadas pelo jornal “O Globo”, citando relatórios de organizações independentes, informam que, neste último país, a autodenominada “guerra contra as gangues” prendeu cerca de 70 mil supostos bandidos sem ordem judicial ou sem flagrante desde que foi adotada, em março do ano passado — o que significa cerca de 1% da população do país. Muitos deles foram depois mortos na prisão, onde a tortura passou a ser coisa corriqueira. Leis de exceção foram renovadas por iniciativa do Poder Executivo 15 vezes consecutivas.

Relatório do ano passado, publicado pela Human Rights Watch em parceria com a ONG Cristosal, afirma que de 58 mil detidos em oito meses, pelo menos 1.600 são crianças e adolescentes, com idades entre 12 e 17 anos
O próprio presidente Bukele fez questão de divulgar um vídeo mostrando as duras condições de confinamento dos presos. Foi um gesto pensado, para mostrar o rigor com que está tratando o problema. Nas imagens, os detentos aparecem amontoados em celas.

Em muitos casos, “as detenções parecem ser baseadas na aparência e origem social dos detidos”, afirma um relatório conjunto publicado nesta quarta-feira pela Human Rights Watch (HRW) e a ONG salvadorenha Cristosal, o que, para nós, brasileiros, não é novidade, basta ver o que propõem o governador Cláudio Castro e o prefeito Eduardo Paes sobre a frequências às praias cariocas. O documento de 89 páginas relata violações de direitos humanos, como detenções arbitrárias em massa e tortura.

O próprio presidente salvadorenho divulga pessoalmente os resultados dessa guerra. Segundo a imprensa, exige que os policiais prendam um número mínimo de pessoas diariamente, o que levou à cadeia muitas pessoas sem ligação com qualquer quadrilha.

As cifras são impressionantes: nos oito meses do estado de emergência decretado por Bukele, a população carcerária quase triplicou: passou de 39 mil, em março, para cerca de 95 mil em novembro, mais de três vezes a capacidade oficial, afirma o documento conjunto.

Agora, uma informação também muito preocupante: os índices de aprovação dessa política ultrapassaram 80%. A última pesquisa realizada pela Unidade de Pesquisa da Universidade Francisco Gaviria mostrou que 71% das pessoas acham que o país está no caminho certo, 72% estão satisfeitos com o presidente, e 81% apontam que “com Bukele estamos melhor”.

É bom que, no Brasil, defensores da democracia e dos direitos humanos abram os olhos. A violência urbana é, ao lado das desigualdades sociais, o principal problema do País.

A população tem razão ao desejar segurança pública. Ela é um direito básico que — lado de saúde e educação e outros mais — tem que ser garantido pelos que governam.

É bom, portanto, que seja dada à questão a atenção devida. E que se busquem caminhos para garanti-las de forma democrática e civilizada. Já aparecem candidatos a Bukele também no Equador. Mais um pouco eles vicejarão por aqui também, indo além das toscas caricaturas bolsonaristas desse personagem. E podem perfeitamente ter apoio popular.

Mão de obra para esse trabalho sujo já existe, de sobra. Nós temos mais de 400 mil policiais militares, número superior ao efetivo das Forças Armadas, uma gente cada vez mais acostumada a espancar, extorquir, violentar e matar pobres de Norte a Sul do País.

Em boa medida fora de qualquer controle dos governadores que não aceitem rezar por essa cartilha, eles já são um baita problema para a consolidação da democracia e de uma convivência civilizada na sociedade.

É bom abrir o olho. O enigma de que a mitologia grega falava com a Esfinge de Tebas — monstro que devorava os viajantes que não os decifrasse e que dá título a este artigo — está posto. Em torno da segurança pública. Esse debate tem que ser transformado numa das prioridades nacionais.

Que o próximo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, esteja atento para isso.

CID BENJAMIN foi líder estudantil nos movimentos de 1968, participou da resistência armada à ditadura e foi dirigente do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Libertado em troca do embaixador alemão, sequestrado pela guerrilha, passou quase dez anos no exílio. De volta ao Brasil em 1979, foi fundador e dirigente do PT e, depois, participou da criação do PSOL. É jornalista, professor e autor dos livros “Hélio Luz, um xerife de esquerda” (Relume Dumará, 1998), “Gracias a la vida” (José Olympio, 2014) e “Reflexões rebeldes” (José Olympio, 2016). Organizou, ainda, a coletânea “Meio século de 68 – Barricadas, história e política” (Mauad, 2018), juntamente com Felipe Demier.

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