Por Roberto Amaral

A função do conhecimento histórico é deitar luz sobre caminhos a serem percorridos pelos que estão chegando à arena; o futuro é gestado no presente, que, porém, não se livra de seu passado, como lembrava Marx: não são apenas os vivos que nos atormentam, os mortos também. Em outras palavras, somos (ou seremos) o que fizemos. Ao lado das contingências estruturais, das leis tendenciais da história e das figuras coletivas e populares, há o imprescindível papel da vontade individual. É o campo dos grandes líderes (aqueles que compreendem o processo histórico) e dos grandes pensadores, capazes mesmo de alterar o aparente curso natural dos acontecimentos. São quase sempre intelectuais orgânicos que se apartam de sua origem pequeno-burguesa, abraçam a defesa dos interesses das grandes massas e dedicam a vida a um projeto de país e sociedade em contraste com o statu quo. São políticos, estadistas, pensadores, pioneiros, contestadores da ordem dominante, os lutadores de toda a vida.

A galeria dos brasileiros com tais atributos é modesta, mas em qualquer seleção, a mais severina,  figurará com destaque, no século XX, olhando para a frente, a vida-obra de Celso Furtado, unidade indissolúvel. O autor de Formação econômica do Brasil, obra seminal, indispensável para qualquer tentativa de compreensão do problema-Brasil, se destaca, entre os poucos pares, por haver procurado a economia para melhor compreender a história e, assim, e por essa via, tornar-se um humanista, no sentido mais rigoroso da palavra. Homem de seu século, aceitou o desafio de tornar-se sujeito consciente da história, consciente das consequências dessa decisão, a primeira e a mais cara de todas sendo a renúncia à vida privada e projetos pessoais. Tinha presente a advertência de Platão: “Aqueles que controlam o poder – os governantes e os guerreiros – teriam de renunciar às ideias de família e propriedade”.

Furtado diz que o problema fundamental de sua vida é a preocupação com os problemas do “homem geral”: “Toda a minha vida tem sido marcada por essa preocupação, como se me sentisse responsável pela pobreza, pelos sofrimentos dessa pobreza, pela condição de animalidade em que vive grande parte da humanidade”. Liberto de condicionantes religiosos, explica: “O que me preocupa é a deformação, a abjeção humana provocadas pela organização social baseada na exploração econômica ou dominação política de muitos por poucos”.

Cedo, no início de sua formação, ainda estudante no Recife, ou recém chegado ao Rio para o curso de direito, Celso, como assinalou João Antonio de Paula, está obsedado pelo desafio de responder à interrogação fundante: “o que é o Brasil, como entendê-lo, como fazer para transformá-lo, para superar seus impasses e suas crônicas iniquidades”. Cedo sabe que o homem é quem traça o seu destino, decide-se a fazer escolhas. Arquiteto de sua própria vida, antevê seu papel – contribuir para revolver as estruturas arcaicas –, e a esse objetivo condiciona sua existência. É admirável a firmeza de proposito, a clareza de objetivos que marca sua vida, como uma linha reta. Constrói-se como o  mais importante intelectual público de sua geração, e, dentre aqueles que se dedicaram a pensar o Brasil deixa a mais extensa bibliografia, a que não faltou, ao lado das incursões teóricas, da formulação de interpretações e formulação de esquemas históricos, a intervenção no dia a dia da política, do mundo real. Não recuou nos embates, seja lá trás no enfrentamento ao latifúndio no nordeste, seja no ministério enfrentando as forças do passado que se opunham ao desenvolvimento nacional. Seja na cátedra, seja nos seus muitos livros, escritos como peças de artilharia no combate ao atraso, no Brasil e na América Latina a cujo desenvolvimento dedicou o melhor de sua vida. Durante anos seguidos fustigou a política econômica da ditadura e, quando se pensava que a Nova República reconstruiria o Brasil, aliou-se a jovens economistas de oposição como Luciano Coutinho e Luiz Gonzaga Beluzzo na formulação de programa econômico para o frustrado governo Tancredo Neves.

Voltando-se ao estudo do subdesenvolvimento, rejeitou as teses fatalistas; o subdesenvolvimento não era uma etapa necessária para o desenvolvimento capitalista. Escreverá: “as enormes disparidades das condições de vida não constituem apenas um fenômeno econômico; mas político e social”, porque “o excedente é um fenômeno social produzido por toda a sociedade, mas apropriado por alguns. É na apropriação do excedente que geralmente damos conta da política de um país”.

No caso de Celso Furtado, mais do que a de qualquer outro intelectual brasileiro, há uma fusão entre vida e obra, e, para harmonizá-las, o pensador também se fez político e homem de Estado: jornalista, escritor, economista, historiador, professor, memorialista, ministro, embaixador.

No quarto aniversário do golpe de 31 de agosto de 2016, neste ano e meio de bolsonarismo, procuro nutrir as esperanças envelhecidas na leitura de Diários intermitentes de Celso Furtado, obra que a inteligência brasileira – aquela voltada para o esforço de compreender este país e suas tragédias – deve à paixão e à lucidez, à competência e à dedicação sem fim de Rosa Freire D´Aguiar, jornalista, escritora, pesquisadora incansável.

O texto no qual me fixo é do distante 1979, e Celso toma do seu diário no dia de natal.

Começara naquela altura a longa agonia do regime militar, velho de 15 anos, que ainda nos afligiria por seis anos, não se sabia então.  O “Brasil potência” do “milagre econômico” dera com os burros n´água. Vivíamos e sofríamos sob  o governo do general Figueiredo, aquele que detestava o povo e adorava o fartum das baias onde reabastecia as energias perdidas com os fazeres da presidência.

A dramaticidade da fotografia de Furtado está em sua atualidade, passados 41 anos! Leiamos:

“Que quadro tão melancólico é o que nos apresenta este país. A situação econômico-financeira é extremamente grave, mas o governo não faz outra coisa senão enganar o povo. E também enganar os empresários, aparentemente desejosos de se deixar enganar, ou pelo menos temerosos de ver a realidade. […] E ninguém dá maior atenção a tudo isso. O objetivo único é conservar o poder e dar a impressão de que o país somente irá adiante se essa impostura de política liberal é mantida. Que pretende essa gente? Provocar o caos para impor uma camisa de força ao povo, agravar a concentração de renda, aprofundar a miséria do povo? Até quando se prestarão os militares a servir de instrumento a essa gente? E que opção se poderia apresentar a tudo isso? As oposições estão fragmentadas e absorvidas pelo jogo da pequena política”.

O governo militar, como se sabe, sobreviveria por mais seis anos, ditaria as condições de sua retirada de cena (uma delas, a impunidade dos torturadores) e estabeleceria os limites da constituinte. O regime decaído, na estranha conciliação dos príncipes, sobreviveria no governo civil da redemocratização, e os generais seriam tutores, monitores e curadores do governo da nova república, chefiado por José Sarney, o presidente da Arena, o partido da ditadura.

Uma vez mais os tempos passados pressagiando os tempos que estavam por vir, e que estamos a viver.

A dura leitura que Celso faz daqueles idos  não é impressionista; ele voltaria ao tema no dia seguinte, e, pelo que escreve,  parece estar olhando para nossos dias. Qual descrição mais realista dos tempos de hoje poderia sobrepor-se a essas linhas, escritas há tantos anos, originalmente destinadas ao resguardo histórico?

Vejamos: “[…] Agora as coisas são ainda piores do que na fase pré-64, porque o centro da cena está ocupado por militares ignorantes ou maquiavélicos e por tecnocratas travestidos de estadistas e aventureiros disfarçados de tecnocratas. Engana-se o povo da maneira mais descarada”.

O conhecimento da história, não é um fim, tão pouco a história se congela, ainda que o reacionarismo larvar – bactéria presente em toda a história da humanidade – tudo encete para prorrogar o passado. A emergência do presente, é inelutável, principalmente quando dispõe da força do homem para acioná-la. Mudar a história, todavia, é engenho e arte que na política se traduz por organização e liderança. No momento carecemos de ambas. E as grandes lideranças não são fruto do acaso, não nascem do nada, nem caem dos céus como as chuvas. São sempre produto histórico-social. Entre nós a emergência de grandes lideranças populares tem sido avara, e contam-se nos dedos de uma mão quantas na República surgiram, para conhecer seu crepúsculo quando mais delas o processo histórico aguardava intervenção.

Não obstante, não há por que perder a esperança – e muito menos ensarilhar as armas – quando estamos sustentados por aquilo que Celso chamava de “otimismo histórico”, atribuindo-o à sua formação “meio marxista, meio positivista”.

Lúcio Kowarick

A inteligência brasileira perdeu no dia 24 deste agosto, que felizmente vai embora, o brilho e a inteligência de Lúcio Kovarick, certamente o mais importante sociólogo brasileiro voltado ao estudo da questão urbana, a que dedicou toda a sua brilhante vida acadêmica, que a ele sobreviverá graças à prolífera produção:  pesquisas, dissertações, teses e livros: A espoliação urbana; Trabalho e vadiagem; São Paulo 1975: crescimento e pobreza; Conflitos Sociais e a Cidade viver em risco,  Escritos urbanos. Sua obra circula ainda pela América Latina, onde é lida e estudada. Era um scholar, e uma admirável figura humana. As circunstâncias me fizeram seu aluno e orientando. Sou-lhe grato pelo que me ensinou. O que não aprendi se deveu às minhas circunstâncias.


ROBERTO AMARAL – Escritor, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre.