Por Cid Benjamin –
O leiloeiro Alberto Lopes anunciou em seu portal na internet um pregão on line em que oferecerá, entre outros produtos, uma declaração com firma reconhecida em cartório, do militar da Aeronáutica Marco Aurélio de Carvalho dando detalhes sobre a tortura e a morte do preso político Stuart Edgar Angel Jones.
Os episódios aconteceram em 15 de maio de 1971, na Base Aérea do Galeão. O pregão ocorrerá no dia 5 de abril próximo, a partir das 19h. O endereço do leiloeiro é Estrada Coronel Pedro Corrêa, 740 – sala 515, no bairro de Jacarepaguá, Rio de Janeiro. Seu telefone é (21) 99536-0670.
Diz o site do leiloeiro: “O documento contém duas páginas datilografadas, com assinatura do oficial reconhecido em cartório, na data de 30 de março de 1976. Trata-se de documento NÃO OFICIAL, particular, de livre e espontânea vontade do declarante. Excelente oportunidade para colecionismo e pesquisadores, sobre dos momentos mais sombrios e nebulosos da história do Brasil.”
O site informa, ainda, que o lance mínimo inicial é de R$ 800.
O militar Marco Aurélio Carvalho informa que serviu durante dois anos na Base Aérea, do Galeão, sendo oficial da “área de informações”. Diz que participou da prisão e do interrogatório de Stuart, que, ele afirma, foi pendurado no pau-de-arara e submetido a choques elétricos e afogamentos. Assim, Carvalho é réu confesso das torturas em Stuart.
Ele afirma ainda que, depois disso, o preso foi levado ao pátio da base, amarrado ao parachoque de um jipe, sendo em seguida arrastado.
No essencial, essas informações não são inéditas. A tortura e a morte de Stuart tinham sido denunciadas numa corajosa carta do ex-preso Alex Polari de Alverga, que conseguiu ver, por entre as grades da janela de sua cela no Galeão, o martírio de Stuart e seu sufocamento ao ter a boca colocada no cano de descarga do jipe.
O episódio nos traz, porém, algumas reflexões sobre a Lei da Anistia e suas interpretações.
É possível considerar que os crimes cometidos pelos assassinos de Stuart como crimes conexos aos que ele era acusado (participar de uma organização clandestina que lutava contra a ditadura?).
Ora “crime conexo” a um assalto a banco, por exemplo, é o roubo de um carro a ser usado no assalto. Assim, o crime maior incorpora, para efeito penal, o menor. Mas um torturador que, por hipótese, estupra uma presa política estará cometendo um “crime conexo” ao que teria sido cometido por ela?
O absurdo dessa interpretação é patente.
No entanto ela tem sido aceita (até pelo STF!) para inocentar torturadores de presos políticos.
Mais: é sabido que a anistia não foi estendida aos opositores da ditadura acusados de terem cometidos o que esta classificou de “crimes de sangue”. Assim, mesmo depois de a anistia ter sido aprovada, muitos presos políticos continuaram presos e só ganharam a liberdade com a revisão da Lei de Segurança Nacional, que permitiu aos advogados de defesa pedirem o recálculo das penas.
Como, então, essa coisa de “crimes de sangue” não se estendeu aos crimes dos agentes da ditadura, permitindo que – além do absurdo da interpretação dos tais “crimes conexos” – eles tenham sido beneficiados com a anistia, mesmo tendo assassinado presos?
Bom, dito isso, resta registrar minha repulsa pelo fato de que há gente (o próprio torturador, parentes seus ou o leiloeiro) querendo ganhar dinheiro com episódios desse tipo.
É de dar asco.
PS.: Depois que esta denúncia começou a circular, o leiloeiro retirou o item do pregão.
CID BENJAMIN foi líder estudantil nos movimentos de 1968, participou da resistência armada à ditadura e foi dirigente do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Libertado em troca do embaixador alemão, sequestrado pela guerrilha, passou quase dez anos no exílio. De volta ao Brasil em 1979, foi fundador e dirigente do PT e, depois, participou da criação do PSOL. É jornalista, professor e autor dos livros “Hélio Luz, um xerife de esquerda” (Relume Dumará, 1998), “Gracias a la vida” (José Olympio, 2014) e “Reflexões rebeldes” (José Olympio, 2016). Organizou, ainda, a coletânea “Meio século de 68 – Barricadas, história e política” (Mauad, 2018), juntamente com Felipe Demier.
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