Por Kakay

“Tudo o que não invento é falso”.
–Manoel de Barros no poema “O livro sobre o nada”.

No dia em que foi criada a TV Justiça, eu tive a certeza de que o processo penal democrático sofreria um grande e importante golpe. A espetacularização, que, de alguma forma, sempre existiu, tinha acabado de ganhar uma aliada imbatível. O ministro Marco Aurélio, pai da ideia, contou com uma deferência rara: o afastamento temporário e proposital do presidente da República e do presidente da Câmara para ele mesmo assinar a lei.

À época, claro que o ministro não vai se lembrar, mas eu não me esqueço, procurei ele para dizer que os processos criminais não poderiam ser televisionados. A exposição midiática seria –e é– uma condenação acessória e irrecorrível. Até poderia entender a transmissão de processos de interesse público, que não envolvam o direito à privacidade e à intimidade, como a discussão sobre o marco temporal ou a questão das drogas. Todavia, nunca os processos criminais.

Recordo-me, como se fosse hoje, de uma conversa que tive com o Duda Mendonça, um cliente, querido amigo e o mais genial publicitário brasileiro. Advoguei para ele no famoso processo conhecido como “mensalão”. Esse julgamento ocupou a imprensa brasileira durante meses. A TV Justiça passava todas as sessões em tempo real e ainda reprisava como se fosse uma minissérie. O Duda, ao final, foi absolvido.

Quando sentamos para comemorar esse resultado, ele me disse:

“Kakay, hoje é o dia mais feliz da minha vida e eu devo isso a você, mas saiba que, no imaginário popular, eu sou ‘mensaleiro’ e estou ir irremediavelmente condenado”.

Ou seja, a superexposição midiática tinha cravado na testa dele uma condenação inapelável. O princípio constitucional da presunção de inocência não existe em processos midiáticos.

Ao longo de 40 anos de advocacia, trabalhei em muitos processos que chamavam a atenção da mídia. Fui advogado de 4 presidentes da República, mais de 80 governadores, dezenas de senadores e várias celebridades, como Roberto Carlos e Carolina Dieckmann. Posso dizer que sei exatamente o peso da opinião pública nos processos de repercussão. E, em respeito ao trabalho da mídia, tenho hoje uma lista de transmissão com 800 jornalistas para poder dar o tal “outro lado”, que não vale muito, mas registra o direito do cliente.

Mesmo contrário à espetacularização, especialmente do processo penal, entendo que erra o presidente Lula ao defender o sigilo nos julgamentos do Supremo. A publicidade é a regra e, felizmente, uma tradição já consolidada na nossa frágil democracia. Entendo que se faz necessária uma autocontenção no Judiciário, para que os juízes não falem fora dos autos, bem como não se exponham de maneira a tornar vulnerável a imparcialidade. Contudo, com a manutenção da indispensável publicidade das decisões.

As sessões, especialmente do Supremo Tribunal Federal, deveriam ser muito mais objetivas e cada ministro teria um tempo limitado para expor o voto. Poderia ser feito um voto de 1.000 folhas, mas o espaço para leitura deveria ser de, no máximo, 30 minutos. Até porque ele é, em regra, distribuído antes para os demais integrantes do órgão colegiado. Um resumo bem feito permitiria que um número muito maior de processos fosse levado a julgamento. Se não existisse a TV Justiça, seria consideravelmente mais fácil convencer a maioria do Tribunal a não ler 1 voto de 5 horas. Há estudo que comprova que, depois da TV Justiça, os acórdãos ficaram maiores. É o que se vê na Bíblia, Eclesiastes 1:2, trecho em que Salomão introduz o seu livro: “Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade”.

O momento é propício para defender a publicidade dos votos, principalmente depois da decisão histórica do ministro Dias Toffoli. Foi, em parte, a espetacularização da criminosa operação Lava Jato que criou os falsos heróis Moro e Deltan. Uma investigação com objetivos políticos e que foi a origem do governo fascista do Bolsonaro. Com o apoio da podre elite brasileira e parte significativa da mídia, criou-se o ambiente conveniente para a corrupção do sistema de Justiça. A decisão do ministro Toffoli expõe, com seriedade, coragem e didatismo, porções do engenho maquiavélico da farsa lavajatista. E é fundamental que ela seja pública e discutida em um ambiente plural e democrático. Felizmente não existe sigilo em uma decisão com essa dimensão e profundidade. O ministro não se manifestou sobre ela na mídia, apenas deu a crucial publicidade. É o conteúdo que fala por si. Não é o ministro que aparece, mas, sim, os seus argumentos. Esse é o caminho para a consolidação democrática.

Lembrando a grande Clarice Lispector:
“Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa”.

ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, tem 65 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, dezenas de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empreiteiras e banqueiros.

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