Por José Carlos de Assis –
Era previsível o desconforto de Lula em relação à manutenção das taxas extravagantes de juros que prevalecem no Brasil a despeito do resultado das eleições.
Um líder popular, como ele, comprometido com atender às demandas básicas da população, não poderia se sentir à vontade com a posição de guardião da concentração de renda alimentada pela política monetária e financeira conduzida pelo Banco Central desde os infames governos Temer e Bolsonaro.
Também era previsível as pressões do mercado financeiro e dos economistas financiados por ele, através da mídia convencional, para manter as altas taxas de juros, independentemente da curiosa melhora nas condições fiscais do país. O mercado financeiro está interessado na economia de seus rentistas, não na economia nacional. Para defendê-los conspiram inclusive para derrubar governos, como começam a fazer objetivamente com Lula.
Cito a melhora concreta da situação fiscal no ano passado (superávit, não déficit) para desmoralizar um fetiche comum dos defensores de juros altos, mesmo sem acreditar que a redução do déficit fiscal contribui para a queda dos juros. De fato, como era também previsível, o mercado está disposto a justificar qualquer política que lhe interessa, descomprometido com a coerência com suas próprias premissas anteriores. A premissa era que se o déficit caísse, a inflação seguiria. Não aconteceu.
O que não achava previsível foi o tom de verdadeiro libelo com que o notável e um dos mais preparados economistas do Brasil, André Lara Resende, fulminou a atual política monetária do BC e seus apoiadores no mercado financeiro. Foi num artigo no “Valor”, de 7/02. Ao lê-lo me dei conta de que a “unanimidade burra” em defesa da política monetária finalmente foi rompida entre nós. Lula se deu conta de que tinha que puxar o coro, e viu que não está só. O manifesto de economistas progressistas divulgado ontem prova isso.
O artigo de André é irrespondível. Os nossos “doutores” doutrinados nos EUA na linha do neoliberalismo deveriam se envergonhar da tentativa que fizeram para amarrar Lula a sua seita na campanha presidencial, soltando uma nota pública com ares de apoio condicional a sua candidatura. Os principais foram Armínio Fraga, Pedro Malan e Edmar Bacha. Eles estão vendo agora que o presidente não lhes deve o governo e tem vontade própria, na defesa do povo e de uma economia desenvolvimentista, mas tem também suporte firme no mundo acadêmico.
É nossa sorte. Há poucos dias, conversando com um amigo, disse que o Brasil já não dispõe de muitos economistas políticos do porte de Celso Furtado e Ignácio Rangel. O manifesto dos economistas puxado por Bresser Pereira e Luís Gonzaga Belluzzo demonstra que estava errado. Além disso, se temos uma esmagadora maioria de economistas de mercado, temos também uma leva de economistas alinhados com a Teoria Monetária Moderna, da qual alguns dos fundadores históricos foram citados com simpatia por Lara Resende. São relativamente jovens e terão que enfrentar os desafios da quebra de um paradigma de política monetária que está cristalizado há mais de 40 anos nas estruturas da política econômica brasileira e nas suas instituições.
De fato, os tecnocratas do BC atuam, num ambiente inflacionário, como máquinas de reação à situação fiscal, a despeito da inocuidade dessa política. Na medida em que o déficit público aumenta, eles tentam baixá-lo e puxam automaticamente para cima a taxa de juros para combater supostos efeitos inflacionários. Isso é balela, como ensinava minha mestra Maria da Conceição Tavares. No caso do custo de vida, uma aberração maior. É muito difícil estabelecer relação direta de causalidade entre déficit público, inflação e aumento do custo de vida.
Em termos factuais, e não ideológicos, na realidade do mercado o que empurra a inflação e o custo de vida para cima é a alta dos custos dos produtos e insumos intermediários na cadeia produtiva. De forma simplificada, é o preço da farinha de trigo, do óleo e da energia, entre outros, que leva ao aumento dos preços do pão francês na prateleira. Isso não tem nada a ver com déficit público e situação fiscal.
A obsessão em tentar controlar a inflação pela redução do déficit fiscal e o aumento dos juros ignora a função positiva que o déficit pode ter na economia em termos práticos.
Se é resultado de financiamentos ou investimentos públicos responsáveis, que aumentam a oferta de bens e serviços na economia, ele terá um efeito positivo no controle da inflação, pois contribui para reduzir a pressão da demanda agregada no mercado em relação à oferta.
O controle da inflação pela redução do déficit fiscal e o aumento dos juros é, portanto, uma ilusão neoliberal que vem desde os tempos de Milton Friedman, conforme mostrei num artigo recente e no meu livro “A Economia Brasileira Como Ela É”, editado pela Amazon. Friedman, o inventor ideológico do monetarismo, teve grande influência nos EUA e no resto do mundo nos anos 70 e 80, sobretudo entre nós, quando eclodiu a crise da dívida externa. Ele pregava que bastava controlar o fluxo da moeda na economia para reverter a inflação.
A crise da dívida veio junto com a crise inflacionária. Esta última era uma inflação de custos, em função do aumento dos preços do petróleo e da explosão dos também altos juros internacionais. Ambas foram enfrentadas entre nós como uma inflação monetária. No caso da dívida, a justificativa era cortar na oferta de moeda, pois isso coincidia com a necessidade de reduzir a demanda interna e criar uma “sobra” de produtos exportáveis.
Quanto à inflação, a justificativa era similar. Argumentava-se que para controlá-la bastava reduzir a oferta de moeda pelo lado fiscal, diminuindo com isso a pressão da demanda sobre a oferta de bens e serviços no mercado interno. Entramos assim num ciclo recorrente de corte de gastos e investimentos públicos, com impacto negativo na produção e no emprego, contraindo nossa capacidade de gerar empreendimentos produtivos novos para atender à demanda. A taxa de crescimento do PIB caiu para níveis historicamente baixos.
Esse tem sido o cânone característico de nossa política monetária e financeira. Está inoculado no DNA da maioria dos economistas de mercado. Mudar será essencial para retomarmos uma política econômica desenvolvimentista, o que exigirá mais do que conseguir o apoio do Senado para demitir o presidente do BC. É preciso mudar a própria concepção central da política monetária centrando-a na produção. Ou buscar uma nova e grande convenção nacional em torno da necessidade dessa mudança.
É que na realidade prática em que estamos vivendo, onde o equilíbrio político do país depende de um grande acordo costurado pelo presidente entre uma base instável de vários partidos, não creio que o melhor caminho para definir uma nova política monetária seria simplesmente entregá-la a um novo presidente do BC. Seria preciso, a meu ver, que a política fiscal-monetária fosse discutida com o Senado antes da definição de um novo presidente do banco. Ou, melhor ainda, que o novo presidente e a nova política fossem definidos no mesmo movimento.
Essa seria a forma de evitar as chantagens do mercado, que teria, antes de discutir nomes, de debater e digerir as diretrizes fiscal-monetárias apresentadas pelo governo, apontando para uma economia de produção, em lugar de uma economia de especulação. Tendo que abandonar, mesmo que, inicialmente, só em tese, os cânones antigos para se adequar às novas diretrizes propostas, o mercado não se arriscaria a perder dinheiro no jogo de conspirações, dado o alto “risco” de enfrentar o poder institucional do governo, sobretudo quando apoiado pela opinião pública.
Um atalho para se chegar a isso está sendo proposto pelo economista Paulo Rabello de Castro, que foi presidente do BNDES. Ele sugere que o governo amplie o quadro e os poderes do Conselho Monetário Nacional e enquadre o BC exclusivamente como seu órgão executivo, como acontece com o FED nos EUA. Seria um bom começo. A mim, contudo, não parece que baste. É preciso mudar efetivamente a política fiscal-monetária, buscando uma alternativa teórica e prática ao monetarismo e ao neoliberalismo.
Do contrário, mudaremos os nomes, mas não a política.
JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política; Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964; Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro; Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica. Autor de “A Era da Certeza”, que acaba de ser lançado pela Amazon. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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