Por José Carlos de Assis

Confesso que vivi. Este poderia ser o epitáfio de Carlos Lessa, lembrando o livro homônimo de Pablo Neruda. Foi uma vida intensa, corajosa, dedicada plenamente ao bem público, intercalada de sobrevoos hedonistas na cidade em que amava de forma absoluta e abnegada. Tinha duas paixões. A economia política e o Rio. Sobre este último escreveu um livro histórico, “O Rio de todos os brasis”, que colocou a cidade amada, de forma incontestável, como centro de convergência e polo de todas as trajetórias brasileiras.

Foi um dos maiores oradores que conheci, emparelhado com Maria da Conceição Tavares, a parceira intelectual que cultivou desde o exílio e com quem dividiu, durante décadas, a liderança intelectual dos economistas no Rio. Nos anos 70 eram imbatíveis nos seminários. Foi então que o conheci, para consolidar uma amizade de mais de quatro décadas. Não fui seu aluno formal, mas de Maria da Conceição. Mas nossas longas conversas, suas intervenções em seminários, seus livros me ensinaram mais que um curso inteiro.

Era uma alma essencialmente generosa. Estava próximo dos amigos em momentos alegres e tristes. Inúmersa vezes subi a ladeira do Cosme Velho onde morava para discutir com ele questões cruciais a política econômica. Rigoroso na análise, foi um crítico implacável da economia do regime militar. Em tese acadêmica, mostrou que, não obstante o legado positivo de grandes obras físicas, legou também ao país uma dupla dívida pública, externa e interna, que não teria sido necessária para ancorar o desenvolvimento econômico.

Um dia, depois de um seminário, andávamos a pé pela avenida Rio Branco celebrando o sucesso que fizeram, ele e Conceição, diante de uma plateia encantada. Lessa dizia algo assim: Não vão nos parar facilmente, porque não temos vulnerabilidades. Não podem nos chamar de ladrões porque não há como provar que somos ladrões. Não podem dizer que desviamos dinheiro público porque não mexemos com dinheiro público. Não podem tentar nos envolver com mulheres porque… ele então parou e disse: “aí é preciso ter cuidado!”

Nossa relação pessoal nunca foi afetada por nada, exceto a dificuldade que tive para vê-lo nos seus últimos meses de vida. Não me via como um economista especialmente destacado, porém certamente, como um excelente economista. Mas me via sobretudo como jornalista econômico excepcional, e não se cansava de me elogiar por isso. É o que equilibrava nossos julgamentos, porque o economista excepcional que ele era não se comparava com o escritor, que se manifestava de uma forma sofrida, embora logicamente impecável.

Um dia estive em sua casa e ele estava debruçado sobre uma mesa da cozinha escrevendo com a mão. Naquela época, ainda não dominava o computador. Ele substituía o computador com recortes de escritos que ia intercalando no texto, cortando, colocando, corrigindo. Era extraordinário como daquela balbúrdia pudesse sair um texto limpo, gostoso de ler, como sua obra prima “O Rio de todos os brasis”. Contudo, este era produto da paixão. A razão produziu importantes textos e livros, que ensinaram gerações de economistas a pensar.

Carlos Lessa fará falta ao Brasil. Por enquanto não tem substituto. Para quem já estava com uma doença grave havia meses, talvez seja reconfortante, aos 83 anos, selar o próprio destino sem ter que refletir e discutir, o que era essencial no nosso grupo, sobre a desgraça

que se abateu no Brasil com Bolsonaro. Ele irá para os Campos Elísios levando as lembranças e esperanças de sua juventude fértil e criativa, sem que sua alma passe pelo calvário maldito da maior crise sanitária e econômica da história do país, alimentadas pelo próprio Presidente.

Esta não foi a primeira decepção de Lessa com o governo, e, pior, com um governo de esquerda. Convidado a ser presidente do BNDES por Lula, passamos largo tempo discutindo a conveniência de ele aceitar ou não numa conversa dentro do carro, à noite, na frente de sua casa. Ele tinha sérias dúvidas e eu, para meu eterno arrependimento, ajudei a empurrá-lo para o cargo sob o argumento de que, como instrumento de desenvolvimento econômico, o BNDES era mais importante que a UFRJ, de que tinha que se afastar.

Henrique Meirelles, de que tínhamos as mais justificadas antipatias tendo em vista seu comprometimento filosófico e sua prática neoliberais, ganhou a disputa nos afetos de Lula. O Presidente se sujeitou às intrigas palacianas e demitiu Lessa para defender Meirelles. Perdeu o jogo o mais destacado economista brasileiro de sua geração, progressista, generoso, corajoso e competente, trocado por um tecnocrata ignorante de economia e de política pública, injetado por Lula no coração de seu fragmentado sistema de poder, de forma totalmente ambivalente. Desse golpe Carlos Lessa jamais se levantou. Não teve em apoio a ele um monarca esclarecido, daqueles que viraram a história no século XIX, rompendo fronteiras.

P.S. A melhor homenagem que se poderia fazer ao mestre Carlos Lessa é dar início hoje, nesta segunda, ao curso “Maratona contra o mito neoliberal”, direcionado principalmente aos trabalhadores, mas não só a eles, com aulas pela internet (oportunamente liberaremos o link). Também nesta segunda, inauguraremos, às 16h, uma série de videoconferências com os economistas Luiz Gonzaga Belluzzo, Márcio Pochmann, Antônio Corrêa de Lacerda, Daniel Conceição e eu próprio, pela qual denunciaremos a desumana estratégia do governo Bolsonaro supostamente contra o vírus, mas na verdade se empenhando em negar ao povo os recursos para bancar as pessoas em casa, no isolamento social.


JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964. Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro. Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica.