Por Ricardo Cravo Albin –
Há dias vi um anúncio modestíssimo no jornal a convidar para uma missa em preito à hoje Santa Teresa de Calcutá, falecida no mês de setembro de 1997.
Fui. E pude reviver os momentos em que tive o privilégio de estar com ela, quando em viagem de um mês para tentar, insisto no verbo “tentar”, conhecer a grandeza espiritual deste inesquecível país asiático. (que me rendeu o livro de crônicas “Índia, um roteiro bem/mal-humorado).
A legenda de Teresa de Calcutá se consolidou lentamente, como só os trabalhos meritórios e permanentes são capazes. Pela década de 30, a jovem noviça da Albânia foi parar ali porque se perguntou qual a cidade do mundo com maior número de pobres. Fez-se missionária e fundadora da Ordem das irmãs pela Caridade, hoje espalhada por boa parte do mundo, inclusive no Brasil. Por mais de setenta anos ininterruptos, essa extraordinária albanesa tanto trabalhou pelos pobres que se considerava feliz quando era vista como parte integrante da cidade. Ela era mais. Teresa não só representava Calcutá aos olhos do mundo: ela foi, na verdade, a transfiguração da solidariedade e da compaixão humanas, elevadas à última consequência da doação e da persistência. Portanto, deferências honrosas, como o Prêmio Nobel da Paz, ainda são inferiores à consagração e crédito pessoais de que ela foi receptora em Calcutá e em qualquer outra parte do mundo.
Estive com Madre Teresa por cerca de 2 horas em sua morada de Calcutá, uma das cidades mais sombrias do mundo. Um quase pesadelo. Abaixo dou o testemunho do que vi. E senti.
A entrada da Obra das Servas de Deus – numa das muitas ruas escuras e tristes da cidade – me deu a imediata dimensão da modéstia e das dificuldades do trabalho empreendido. Uma portinha- que podia ser de uma quitanda qualquer num subúrbio carioca – dá entrada ao hall, estreito e acanhado, de poucos metros quadrados. O chão de cimento esburacado me era familiar: lembrou-me de imediato, os pátios semelhantes em orfanatos pobres que visito no Rio, às vésperas do Natal.
O ambiente da sala também me era familiar dos orfanatos: muitas orações nas paredes e algumas frases como “Jesus é meu pastor e nada me faltará” ou “Quem dá aos pobres empresta a Deus”. Num canto, do lado esquerdo, algumas fotos da dona da sala, a maior das quais mostrando-a abraçada pelo Papa João Paulo, foto rabiscada por uma extensa dedicatória em latim, feita pelo próprio Pontífice. Durante dez minutos aguardamos a religiosa, dentro de um silêncio inesperado. Como se houvéssemos combinado, instalou-se entre nós, um pequeno grupo de 8 brasileiros, um ciciar só produzido em igrejas. A tensão, se existia e certamente existia, ficou contida. Uma aparição de mais uma freira, que informava serem proibidas fotos durante a entrevista, anunciava a imediata chegada. Com efeito, um minuto depois, amparada por uma terceira freira de aparência chinesa, adentrou a sala a figura muito pequena e magra, encurvada e olhando para o chão como se acompanhasse seus próprios passos, firmes e decididos. Todos nos levantamos. Ela sentou-se em frente à sua mesa, ao mesmo tempo em que pediu que nos sentássemos, com um gesto de mão impaciente, mas cordial. Olhou-nos, então, um a um, com um firme olhar, emitido por dois olhinhos apertados, sinceros e claros. E nos disse: “Vocês, brasileiros, são muito bons e generosos. Eu sou muito grata por esta visita inesperada de vocês”.
As palavras iniciais nos emocionaram ainda mais e derreteram, de imediato, o gelo da solenidade que envolve um mito. Durante alguns minutos, Madre Teresa de Calcutá prosseguiu, sozinha, seu pequeno e terno discurso. Falou das dificuldades de sua obra, falou da miséria e do amor, falou, sobretudo, da importância da fé em fazer alguma coisa, quando se acredita naquilo que se faz.
Com certo ceticismo, pedi-lhe, ao final do pequeno sermão pouco formal que acabara de ouvir, que ela me resumisse o que ainda poderia ser feito pelos pobres de Calcutá, tal a desolação do quadro que tinha conhecido naquela manhã. Teresa me lançou um olhar fulminante, muito firme e muito profundo: “Enquanto houver um pobre, um só, que possa melhorar com um benefício qualquer, qualquer ajuda terá valido a pena. E quanto aos pobres, na enormidade do conjunto de Calcutá, eles nos merecem três coisas: lágrimas, algumas, trabalhos, muitos e persistentes; e dinheiro, todo o que puder chegar da caridade dos mais ricos”.
Agora me dou conta, tantos anos depois, de que o discurso de Madre Teresa teve um sabor de originalidade de que nem apercebi à época. Não que fosse nada excepcional, não que as imagens utilizadas fossem literalmente sedutoras, nada disso. A fala da freira, emitida por uma voz já debilitada, tinha uma força que emanava do seu interior.
É algo que não se explica muito bem, mas – perdoem-me o lugar comum – se sente com o coração. Ao menos foi o que eu intuí do inexplicável carisma daquele ser tão pequeno, tão frágil e tão magnético. Santo? Até pode ser. Como de fato foi consagrada pelo Papa há poucos anos.
Com isso a entrevista se encerrou. Ela levantou da cadeira e autorizou as fotos. O silêncio se transformou em alarido. Todos nos postamos ao seu lado, e durante mais de cinco minutos foram feitas as poses mais diversas, algumas até insistentes, quase recalcitrantes. Ela portou-se estoicamente, atendendo a todos com paciência e bom humor. Até que alguém teve a ideia de deixar uma nota de dinheiro na mesa. A freira olhou, tomou na mão e agradeceu. Foi um sinal sutil e mágico. Todos os que a envolvíamos em círculo abrimos atabalhoadamente carteiras, bolsas e sacolas. E a mesa se encheu de dinheiro, das rupias desvalorizadas da Índia. Madre Teresa juntou todas as notas, uma a uma, e finalizou: “Eu não disse, ao início, que os brasileiros eram generosos?” E, antes de tomar a direção da porta, por onde entrara, ainda pediu, em voz mais alta: “E não deixem de dizer às minhas irmãs do Brasil que vocês estiveram aqui”. Os olhinhos apertaram-se ainda mais e, jogando a mão direita à frente, como a nos abençoar, despediu-se: “Deus lhes pague, Jesus esteja com vocês, vão em paz”.
Saímos da salinha e logo deixamos a casa modesta. Demos de imediato com os pedintes e miseráveis de Calcutá. Só que ali, naquele momento, eu não senti a mesma opressão quando entrara. Ao olhar aqueles miseráveis, eles me pareceram protegidos.
Aquele par de olhinhos persistentes e severos, que ainda guardava comigo, certamente estava olhando por eles. Mesmo sem eles se darem conta.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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