Por Roberto Amaral –
Em 1894, o capitão Alfred Dreyfus, inocente, foi condenado por um tribunal militar à degradação e ao degredo perpétuo “em recinto fortificado”, isto é, as galés, enquanto o responsável pelo crime de espionagem, de que ele fora acusado, era declarado inocente. Não se tratava, porém, de erro judicial o escândalo que marcaria a Terceira República, mas de conjuração urdida pelos militares, da qual participaram todas as instâncias do poder francês, nomeadamente, além dos generais, o poder judiciário, o ministério da justiça e a imprensa, a quem coube, em conluio com os demais atores, o crucial papel de convencimento da opinião pública.
A França do final do século XIX vinha da derrota traumática na guerra franco-prussiana, da perda da Alsácia-Lorena (1871), da ocupação pelas tropas de Bismarck, e precisava recompor a fé nacionalista em frangalhos, a confiança perdida em suas forças armadas, e a esses objetivos serviam as mobilizações antissemitas e antirracistas de um modo geral, o ódio fomentado contra os alemães, que tentava reascender o patriotismo, a xenofobia e a intolerância. O capitão Alfred Dreyfus era judeu, nascera na Alsácia e falava alemão. O judiciário civil-militar não carecia de mais “provas” para condená-lo, eram suficientes as “razões de Estado” (ou “convicções” de seus adversários) que se sobrepunham às razões do direito, e antes da sentença do conselho de guerra já falara a opinião pública manipulada. A condenação seria aceita sem traumas e foram precisos quatro anos de resistência de seus advogados para que o tema voltasse à baila, mobilizando principalmente intelectuais, liderados por Anatole France e Émile Zola, que, na forma de carta ao presidente da República, Félix Faure, publica, em 1898, o libelo “J’accuse”. Denuncia o crime que a conspiração da caserna cometia contra o capitão, identifica seus responsáveis e qualifica o processo como o “abominável caso Dreyfus”. O capitão é afinal inocentado em 1906, pelo “Tribunal de Cassação”, reintegrado ao exército e lutaria na primeira guerra mundial. Zola seria processado e obrigado a asilar-se na Inglaterra, acusado do crime de difamação, por haver denunciado o general du Paty de Clam como principal articulador do processo militar e da urdidura infame.
Nesse texto, seminal, Zola desnuda a farsa, expediente político já de há muito conhecido da História e que se tornaria recorrente no Estado moderno. Denuncia como crime terem os patrocinadores dos processos contra Dreyfus mobilizado a imprensa para manipular a opinião pública e criar o clima favorável à condenação sem provas do crime, e os acusa de haver eles próprios, acusadores e julgadores associados no feito, tramado uma conspiração para condenar um inocente. Como se tivesse olhos voltados para nossa realidade, escreve o autor de O germinal: “É um crime confundir a opinião pública, utilizar para uma sentença fatal essa opinião pública que foi corrompida até o delírio. É um crime envenenar os pequenos e humildes, exasperar as paixões de reação e de intolerância (…). É um crime explorar o patriotismo para as obras do ódio; é um crime, por fim, fazer do sabre o deus moderno, quando toda a ciência humana está a serviço da obra iminente da verdade e da justiça”.
O “caso Dreyfus” – como ficou conhecida a manipulação do processo judicial para condenar um inocente – é considerado símbolo moderno de iniquidade política.
Mas trata-se de expediente de que sempre lançou mão o poder, a serviço das mais variadas propostas, desde puras e simples “razões de Estado” até devaneios messiânicos de salvação nacional, como livrar o país da corrupção, mesmo ao custo de corromper o direito. Os diretores do processo repressivo policial-judicial, nesse contexto, são alçados à condição de heróis nacionais, e dispensados dos deveres de observar a Constituição e o devido processo legal. Os crimes contra os direitos dos investigados – como tráfico de influência, manipulação de provas e depoimentos, seleção de testemunhas, o acumpliciamento entre julgador e acusador, delações e vazamentos selecionados – são pré-absolvidos pelas razões cívicas do objeto da repressão. Noutras palavras, a tortura pode se justificar pela necessidade da confissão, tanto quanto ao réu é cerceado o direito a julgamento justo – ponto inegociável do direito – simplesmente porque se trata de um réu previamente condenado.
A virtual cassação dos direitos políticos de Lula e seu encarceramento não se devem a erro judicial, posto que resultam de bem urdida conspiração da melhor cepa do poder dominante: o poder judiciário em todas as suas instâncias, desde juízes de piso à Suprema Corte, o Ministério Público Federal, as forças armadas (relembre-se a intervenção do general Villas Bôas, então comandante do exército, acuando o débil STF), as forças da repressão (polícia federal e similares), o grande capital financeiro nacional-internacional, e, principal porta-voz da casa-grande, a imprensa, manipulando versões segundo os interesses dos aprendizes de Torquemadas de Curitiba, onde se instalou uma verdadeira trupe de assaltantes do direito, chefiadas por essa figura sem escrúpulos jurídicos que é o ex-juiz e ex-ministro de Bolsonaro (agora advogado de interesses privados bem remunerados), na verdade o chefe do conluio, comandando procuradores e policiais na caça às bruxas que a loucura comum selecionava para o pelourinho judicial. Repete-se a história. Contra Dreyfus, o inescrupuloso general du Paty de Clam conduzia as investigações e o julgamento; na infâmia contra Lula, o ex-juiz Sergio Moro dirigiu os passos dos procuradores, orientou investigações e inquéritos e ditou a acusação do Ministério Público, para ele mesmo julgar, condenando o acusado, que era acusado antes da apuração dos fatos, e condenado antes do inquérito e dos procedimentos processuais. Porque, no caso de Lula, o inquérito e o processo judicial tiveram apenas valia formal, a de dar aparência de honestidade a uma sentença condenatória desde sempre viciada porque lavrada por um juiz sem condições éticas de exercer a magistratura. O “processo” e a sentença, no piso e no tribunal regional, constituem uma só operação política, ao arrepio da mais comezinha ideia de direito, mandado às favas, como diria o coronel Passarinho.
O impedimento inconstitucional da posse de Lula na chefia da Casa Civil da presidente Dilma, levada a cabo por ação que começa com Moro e termina com o inefável ministro Gilmar Mendes, e, na sequência, o impedimento de sua candidatura à presidência da República, atendiam ao reclamo da casa-grande decidida a impedir, primeiro a continuidade do governo petista, e, por fim, o retorno do partido ao poder pelas mãos da soberania popular. Foram etapas do processo mais profundo e mais radical de demonização do PT e do ex-presidente, processo ainda hoje mantido de pé pela idiossincrasia reacionária da grande imprensa. Eram uma necessidade do sistema vigente. Correspondiam à aliança ideológica e fática da direita com a socialdemocracia, representavam um realinhamento das forças reacionárias e conservadoras.
Mas, como já observado por Mino Carta (Carta Capital. 10/2/2021), se Moro é o chefe da operação, não é o cabeça, pois lhe faltam para isso estatura política e autonomia da vontade. Seu papel é similar ao de Ronnie Lessa no assassinato de Marielle Franco: é preciso identificar o mandante, quem, de perto ou de longe conduzia as peças desse jogo de marinetas. É preciso saber quem está atrás do falso Catão dando-lhe, como foi dada, força e certeza de impunidade para pisar e pisotear os fundamentos da democracia constitucional, desmoralizar o poder judiciário já de si tão carente de respeito pela sociedade, negando ao acusado o direito inalienável a um julgamento justo. Ora, o ex-juiz jactava de não cuidar da imparcialidade, e seu ajudante de operações, o procurador-chefe, sempre se viu como a versão tropical de um Eliot Ness; sem provas e nem um pouco interessado em apurá-las, porquanto pleno de convicções, como os néscios e fanáticos de todo tipo. Juntos, numa associação delinquente, promíscua, apoiados na omissão cúmplice do Supremo e na solidariedade corporativa dos Conselhos da Magistratura e do Ministério público, juízes e procuradores patrocinaram um julgamento de exceção, interferiram no processo democrático eleitoral de 2018, retirando da disputa o candidato que liderava as pesquisas de intenção de votos, e condenaram ao cárcere um inocente. Uma operação política até aqui coroada de êxito e vantagens pessoais. Um crime irreparável contra um inocente, contra o direito, contra a Constituição e contra a República.
O “caso Dreyfus”, foi cunhado como “símbolo moderno e universal da iniquidade”. Como ficarão registrados pela História os crimes de Moro e seus cúmplices?
ROBERTO AMARAL – Escritor, jornalista, cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em 2015, foi nomeado conselheiro da Itaipu Binacional, foi presidente do Partido Socialista Brasileiro.
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