Redação

Maior reserva indígena do Brasil, o território Yanomami, localizado entre os estados do Amazonas e de Roraima, tem sido palco de uma tragédia humanitária que coloca em risco a sobrevivência dos povos originários que lá habitam. Segundo o Ministério dos Povos Indígenas, em 2022 ao menos 570 crianças morreram por desnutrição, fome e contaminação pelo mercúrio.

A terra indígena sofre com o garimpo ilegal, atividade que leva à contaminação dos rios e cria escavações no solo que geram proliferação de mosquitos, ocasionando o aumento nos casos de malária, que chegaram a 11.530 em 2022.

A presença de garimpeiros tem causado desorganização social e gerado problemas de segurança, dificultando o acesso de equipes de saúde às regiões onde há pessoas doentes.

O número de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami passou de 20 mil em 2022, quase o tamanho da população de 28 mil povos originários da região.

Conselho denuncia adoções irregulares

Outra denúncia grave é a de que diversas crianças Yanomami foram retiradas de seus pais e encaminhadas para adoção, segundo o Conselho Indígena de Roraima – CIR. A organização acionou entidades como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai, o Ministério Público – MP, Vara da Infância, secretarias de Saúde e do Trabalho de Roraima e o Conselho Tutelar do Estado.

Diante da denúncia, a Secretaria Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania iniciou apuração das possíveis adoções ilegais e de exploração sexual infantil em território Yanomami.

Além disso, o Ministério da Saúde declarou emergência de saúde pública e criou o Comitê de Coordenação Nacional para discutir e adotar medidas em articulação entre os poderes para prestar atendimento à população local.

Na quarta-feira (1º/2), a Força Aérea Brasileira – FAB iniciou o controle do espaço aéreo do território indígena como forma de combater o garimpo ilegal. As aeronaves que descumprirem as regras estabelecidas pela FAB estarão sujeitas às Medidas de Proteção do Espaço Aéreo – MPEA.

Crise sanitária atinge maior reserva indígena do Brasil. (Reprodução / URIHI – Associação Yanomami)

Direitos fundamentais previstos na Constituição

A tragédia humanitária que assola os Yanomami traz à luz uma série de violações a direitos fundamentais que estão inscritos no capítulo da Constituição da República que trata da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso, como explica o advogado Marcos Alves da Silva, vice-presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da Família do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.

“Em relação às crianças e idosos do povo Yanomami, os mais vulneráveis e atingidos pela fome e pela desnutrição, há flagrante violação de direitos. É evidente que o Estado brasileiro faltou gravemente ao dever constitucional com essa população de crianças, adolescentes e jovens. Não há dúvida de que não ocorreu tratamento prioritário para assegurar o direito à vida, à saúde, à alimentação de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, como preceitua o artigo 227 da Constituição”, afirma.

Segundo ele, o artigo imputa ao Estado o dever de promover programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, o que não foi cumprido nos últimos anos. “Em lugar de prestigiar a dignidade das pessoas que integram os povos originários, o Estado optou por apoiar e associar-se a um projeto de exploração econômica de minérios em terras indígenas.”

Cabe representação

O advogado comenta que cabe representação do Ministério Público – MP contra as ações que ocasionaram a tragédia em território Yanomami. Para ele, o órgão “deve ser o protagonista das ações e das medidas judiciais nos termos de suas incumbências constitucionais”.

“O artigo 129 da Constituição estabelece expressamente que é função institucional do Ministério Público defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas. Todavia, se houver negligência deste importante órgão incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, é certo que outras organizações da sociedade civil podem e devem tomar iniciativa perante o Poder Judiciário e até perante Tribunais internacionais”, explica.

Já está em curso o inquérito que irá apurar a tragédia humanitária. Marcos Alves da Silva avalia que há diversos níveis de responsabilidade no caso.

“Há aqueles que atuaram e seguem atuando diretamente provocando o dano ambiental e social. Há os que negligenciaram o dever em relação à vigilância do garimpo ilegal. Há os que negligenciaram o dever em relação à saúde indígena. Há os que tramaram e orquestraram a subversão da ordem e a violação frontal da Constituição e de diversas Leis”, pontua.

“Estas pessoas todas devem ser investigadas. Observado o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa que são esteios da Democracia, todos esses partícipes e autores desses crimes desumanos contra o povo Yanomami devem ser punidos.”

O direito das crianças Yanomami

Ponta mais frágil da crise que assola os povos Yanomami, as crianças também são cidadãs brasileiras, portanto, recaem sobre elas as proteções previstas pela Constituição Federal, sobretudo as do artigo 227, que institui o princípio do melhor interesse e a necessidade de proteção integral através das regras presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

“A criança indígena, posta em vulnerabilidade, tem direito a toda proteção do Estado com a garantia do respeito à sua cultura. Trata-se de um tipo de proteção delicadamente oferecida, sem invasão ou destruição, mas colocando ela a salvo de qualquer dano que possa ameaçar sua vida, sua saúde, sua felicidade e os direitos que estão instituídos na Constituição”, defende o Procurador de Justiça Sávio Bittencourt, presidente da Comissão da Infância e Juventude do IBDFAM.

Diante das denúncias que mostram uma lesão grave aos direitos dessas crianças, Sávio defende que se tome providências em duas direções. A primeira delas diz respeito a soluções imediatas.

“É necessário que sejam oferecidas ações que garantam a proteção dessas crianças para a solução da situação famélica em que se encontram e promover esta ajuda de tal forma que o problema não volte a se produzir”, ele afirma.

Para o Procurador, essas ações imediatas devem ser, inclusive, implementadas de forma perene, além de serem fiscalizadas por instituições de apoio ao indígena e de controle como o Ministério Público Federal. “É fundamental que crises como essa sejam evitadas através da instituição de uma rede de proteção mais ampla em que vários órgãos tenham a capacidade de fiscalizar”, diz.

Investigar e responsabilizar

A segunda direção, segundo Sávio, está na investigação da responsabilidade daqueles que, de alguma forma, permitiram que a situação chegasse a tal ponto.

“A preocupação da Comissão de Infância e Juventude é que seja feita uma apuração dos fatos que não seja utilizada politicamente e que reflita com maior transparência e fidelidade aquilo que realmente acontece e quem são os responsáveis pela aplicação das sanções que sejam possíveis dentro do nosso ordenamento jurídico”, pontua.

Sávio Bittencourt explica que o principal caminho jurídico é a investigação criminal de quem tinha o dever legal de agir para que a tragédia em território Yanomami não acontecesse. “Há diversas punições no Código Penal que podem ser aplicadas, além de improbidade administrativa, que pode ser verificada. Também pode ser proposta uma ação civil pública, se for o caso, pelo Ministério Público Federal.”

Terras atraentes para o garimpo ilegal

Para a advogada Luiza Simonetti, membro do IBDFAM que atua em Manaus, no Amazonas, as terras Yanomami são atraentes para o garimpo ilegal. “A melhor forma de dominar esse espaço é extirpar dele a população que o protege”, ela afirma.

“Com o garimpo ilegal chegam, além de doenças, as quais os Yanomamis não têm defesa, a violência física contra seus homens e sexual contra suas mulheres, que quando têm filhos, eles são arrancados e levados pelos garimpeiros, principalmente com o objetivo de esconder seus feitos”, pontua.

Ela avalia que as atuais condições nas quais se encontram essa população não são uma fatalidade. “Tudo o que foi feito contra os Yanomami nos últimos anos tem o propósito de lhes enfraquecer até o extermínio para dominar o que lhes pertence. Negar alimento, saúde e limitar o espaço de ocupação, segregando um povo indígena ao mínimo território é sentença de morte para qualquer etnia.”

STF determina apuração de crimes contra indígenas

Na segunda-feira (30), o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal – STF, despachou a Petição – Pet 9585 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 709.

A primeira, que tramita em sigilo, determina a remessa às autoridades de documentos que, no entendimento do relator, “sugerem um quadro de absoluta insegurança dos povos indígenas envolvidos, bem como a ocorrência de ação ou omissão, parcial ou total, por parte de autoridades federais, agravando tal situação”.

Barroso citou como exemplos a publicação, no Diário Oficial, pelo então ministro da Justiça Anderson Torres, de data e local de realização de operação sigilosa de intervenção em terra indígena, além de indícios de alteração do planejamento no momento de realização da Operação Jacareacanga, pela Força Aérea Brasileira – FAB, resultando em alerta aos garimpeiros e quebra de sigilo, o que comprometeu a efetividade da medida.

A segunda reitera a ordem de retirada de todos os garimpos ilegais das Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Arariboia, Mundurucu e Trincheira Bacajá.

A ação trata da proteção aos povos indígenas durante a pandemia da COVID-19, a partir de pedido de providências apresentado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB.

O ministro também determinou que a Procuradoria-Geral da República – PGR , o Ministério Público Militar, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e a Superintendência Regional da Polícia Federal de Roraima apurem a possível participação de autoridades do governo Jair Bolsonaro na prática dos crimes de genocídio, desobediência, quebra de segredo de justiça, e de delitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurança de diversas comunidades indígenas.

O IBDFAM antecipou o debate sobre vulnerabilidade das famílias indígenas na última edição presencial do seu Congresso Nacional. Em palestra, a médica indígena Adana Omágua Cambeba (AM) abordou o tema e foi ovacionada pelo público após um momento emocionante. Assista na íntegra aqui.

Adana Omágua Cambeba em palestra no XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias do IBDFAM. (Foto: Danielle Chaves)

Leia maisYanomamis: Comissões do IBDFAM emitem nota sobre o caso

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM (com informações do G1, National Geographic Brasil e Um Só Planeta)

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