Por Antonio Veronese –
Nesses tempos de desemprego e dificuldades, tive uma ideia que pode ser muito lucrativa e estou procurando sócios para a empreitada; quero montar uma grande distribuição de entorpecentes na zona sul do Rio de Janeiro.
Não em cima de um morro mas cá embaixo, na parte maravilhosa da cidade maravilhosa. De preferência em uma rua nobre, onde residam pessoas de alto poder aquisitivo. Estou pensando na rua Carlos Góis, no Leblon, naquele quarteirão entre a San Martin e a Ataulfo de Paiva. A presença dos cinemas e do Cliper garantem ali uma grande afluência de público. Lucro garantido!!
Uma vez escolhida a localização da nova “boca”, o resto é fácil. Nas duas esquinas próximas vou postar homens armados de fuzis de guerra. Afinal, se o endereço é rentável, é previsível que grupos rivais tentem “tomar” o ponto…
Espalhados pela vizinhança atuarão meninos fogueteiros, especialmente treinados para avisar se a polícia aparecer por lá…Naquela galeria comercial aos fundos dos cinemas, embaixo do prédio onde viveu o inesquecível João Gilberto, vou instalar o depósito do pó e o arsenal, armamento pesado pra garantir a segurança da empreitada.
Para a distribuição da “mercadoria” vou empregar meninos na faixa etária de oito a dezessete anos, residentes na própria área. Eles podem ser facilmente cooptados às portas dos Colégios Santo Agostinho e Saint Patrick. Serão adestrados e bem armados, devendo obediência cega ao chefe que, neste caso, serei eu. Seus rendimentos, vou assegurar, serão em muitas vezes maiores do que as mesadas que percebem dos pais; uma forma eficiente de transferir o pátrio poder para o chefe da “boca”, quer dizer, do negócio!
Ali vou mandar eu, com mão de ferro, o novo chefe da Carlos Gois, e quem ousar me contrariar será sumariamente eliminado.
Como decorrência natural desse poder, terei acesso irrestrito a todas as mulheres do quarteirão, independentemente se são casadas ou solteiras, maiores ou menores…Como contrapartida, distribuirei dez por cento do “faturamento” aos vizinhos, dedicando alguma atenção aos velhos e doentes da “comunidade”. Assistencialismo de ocasião!
Se o pessoal do 23° Batalhão quiser atrapalhar o negócio, tentarei subornar o seu probo comandante, propondo um pró-labore adicional à sua corajosa tropa que sobrevive com salários miseráveis. Sem esquecer o quinhão da milícia que não vai tardar a “aparecer”…Sem problema! Se este tipo de comércio funciona e dá lucro em áreas miseráveis da cidade, imaginem no Leblon…Vou ficar rico!!!
A você, que já está preocupado com a desvalorização dos imóveis da Carlos Gois, aviso que esses meus planos são, evidentemente, somente uma provocação. Imagine o primeiro telefonema que a Policia Militar receberia, cinco minutos após o meu início de atividades:
– Aqui é o doutor fulano de tal!!! Estão vendendo cocaína na porta da minha casa e eu EXIJO providências imediatas!!!!
Edições extraordinárias, no Rádio e na TV, revelariam que um grupo de traficantes cometeu a extrema ousadia de instalar uma distribuição de entorpecentes em plena zona sul, no seio de uma comunidade respeitável, onde vivem doutores, juízes, desembargadores…Em menos de vinte minutos haveria uma verdadeira blitzkrieg no Leblon: polícias militar, civil, federal, do exército… O secretário de segurança pública seria caçado pela imprensa e, ao vivo, em sucessivas edições extraordinárias, asseguraria todas as medidas imediatas de repressão, devolvendo rapidamente a paz à nossa respeitável Carlos Gois e poupando, por consequência, suas adoráveis crianças do trágico destino de transformarem-se em vapores de tráfico, e de engrossar a aviltante cifra de 600 menores assassinados por ano somente na cidade maravilhosa!!
Resta uma singela pergunta: e no Morro do Alemão, no Vidigal, na Rocinha, no São Carlos, no Borel, no Dona Marta, no Esqueleto, na Mineira, na Maré, no Encantado, no Pavão/Pavãozinho, no Cantagalo e em tantas outras comunidades carentes, pode? Sítios urbanos onde vivem trabalhadores, sítios urbanos com jurisdição própria onde o Estado, covardemente, está ausente!! Lá pode?
Por que a humilde população que reside nesses endereços, entre ela a honestíssima vovó vizinha da boca de fumo que vê seu neto ser irremediavelmente cooptado pelos traficantes, não pode simplesmente chamar a polícia??!!
Se os senhores governador e ministro da justiça quiserem, eu posso levantar 40 endereços nos quais, hoje à noite, o tráfico de entorpecentes vai funcionar a céu aberto, sem os inconvenientes da Carlos Gois, no Leblon.
O resto é conversa fiada e pose “solene” de um “presidente” que fala muito de Deus mas que é omisso como o diabo. Afinal, como ensinava Bertrand Russel, solenidade é, na maioria das vezes, somente um disfarce para a impostura.
ANTONIO VERONESE – Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre, representante e correspondente internacional em Paris, França; Pintor brasileiro auto-didata com uma obra considerável, realizou centenas de exposições individuais, tem obras expostas em numerosos museus, coleções públicas e privadas nos Estados Unidos, Suíça, França, Japão, Chile e Brasil. Radicado na França desde 2004, antes de deixar o Brasil deu aulas de arte para menores infratores nos Institutos João Luiz Alves, Padre Severino e Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e no Caje de Brasília. Utilizou a pintura como forma de reabilitação psico-pedagógica dos adolescentes entre 12 e 18 anos com a bandeira” estética é remédio!”. Alguns dos trabalhos produzidos pelos jovens foram expostos em Genebra (Suíça), no Salão Negro do Congresso Nacional, em Brasília, e na Universidade de San Francisco, nos Estados Unidos. Em 1998, representando o Brasil no Encontro de Esposas de Chefes de Estado, cobrou da então primeira-dama, Ruth Cardoso, medidas para tirar das ruas crianças abandonadas, tendo recebido o apoio de Hilary Clinton. Pela denúncia da violência contra menores no Rio de Janeiro, que faz através de sua pintura e de engajamento constante deste 1986, Veronese foi convidado à Comissão de Direitos Humanos da ONU – em Genebra, para proferir palestra, lá causou grande indignação ao apresentar fotografias de 160 crianças, marcadas por cicatrizes massivas decorrentes da violência urbana, doméstica e policial.
Antonio Veronese, Italian-Brazilian painter, lives in France since 2004. He is the author of «Save the Children», symbol of th e 50th anniversary of the United Nations, and «Just Kids» symbol of UNICEF. As well of «La Marche», exhibited in the Parliament of Brazil since 1995, and «Famine», exhibited since 1994 at the Food Agriculture Organization for United Nations (FAO) in Rome. antonioveronese.over-blog.com
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