Por Lincoln Penna

Chegamos a mais um Natal e o próximo ano se aproxima.

A tradição nos convida a celebrar tais datas e o fazemos como parte de um hábito a glorificar um dos mais relevantes episódios de nossa história apreendida, compreendida e interpretada de diferentes maneiras. Daí, o significado que encerram essas manifestações de glorificação do nascimento de Jesus de Nazaré e sua identidade santificada, a de Cristo, que no grego tem o sentido de ungido ou enviado por Deus. Contudo, nem sempre estamos a refletir sobre o tempo em que tais festejos acontecem, da mesma forma que também não nos ocupamos em saber como aconteceu o momento histórico que celebrou essa tradição.

Costuma-se dizer que os ritos da tradição superam todos os momentos de mal-estar porque esses ritos vencem toda e qualquer adversidade que se tem pela frente. Haja vista o que se conhece quando das grandes guerras mundiais e outros tantos conflitos nos quais os soldados envolvidos não deixam de comemorar a passagem desses festejos, mesmo sob bombardeio sem trégua. A tradição se impõe.

Estamos na semana que separa os encontros natalinos entre familiares e amigos. A esperança se renova ao aguardarmos o novo ano, sempre a alimentar o desejo de que o novo irá proporcionar as realizações que o velho não chegou a fazê-lo, pelo menos dentro de uma expectativa mais comedida. Ao contrário, a esperança foi apanhada por uma tempestade de intolerância incomum nesses momentos, tanto no campo político quanto no religioso a se espraiar por outras áreas do convívio humano.

Se os embates são inerentes em sociedades antagonizadas e dominadas por poderes instalados pela força das armas, a intolerância passa a ocupar um papel destruidor no campo das ideias, das crenças e convicções que possam vir a atentar contra esses poderes. Quando prevalece a intolerância o ódio passa a ser o instrumento dos que detém o poder. Jesus foi sacrificado por afrontar o poder da época representado pelos áulicos do Império Romano na região da Galileia.

Ao lavar suas mãos, Pôncio Pilatos não assumiu sua responsabilidade pela exclusão e pela opressão. (Divulgação)

Apesar disso, os votos de boas festas, feliz natal e um próspero ano novo continuam a ser enviados a todas e a todos que nos são gratos, seja pelo hábito de assim se proceder ou pela singela capacidade de preservarmos o mínimo de apreço, afeto e amor a quem nos faz bem. Não há, portanto, adversidade que nos impeça de manter viva a tradição dos festejos. Eles podem estar afetados pelas perspectivas nada alvissareiras, mas as pessoas não renunciam às mensagens enviadas como sempre tem sido feito.

Não há ideologias que alterem significativamente esses gestos de confraternização não importa se são emitidos sinceramente ou formalmente em razão do peso da tradição, o fato é que sejam cristãos ou vinculados a outras religiosidades, incluídos também os não religiosos como os ateus e agnósticos, todos são portadores de alguma expressão de engajamento nesses dois momentos próximos um do outro, ou seja, o Natal e o réveillon a juntar variadas fés que se harmonizam no espírito de uma aposta comum.

Nessas datas de fim de ano e começo de outro existem motivos para que expressemos desejos que devem e podem ser compartilhados independentemente de crenças de qualquer espécie, isto porque estamos a viver uma situação que atingiu um grau mais agudo de apreensão. Afinal, nos aproximamos de um ano de uma guerra inacabada e sem fim a envolver direta ou indiretamente as grandes nações e poderosos estados e seus arsenais bélicos.

A par disso, começamos a experimentar a multiplicação de catástrofes decorrentes dos males que temos produzido em nossa relação com a natureza e com consequências imprevisíveis em médio espaço de tempo.

No âmbito das relações sociais e internacionais cresce o contingente de indivíduos desamparados e famintos, sem eira nem beira porquanto além de desassistidos pelas autoridades públicas têm sido objeto de toda sorte de exploração. São, na verdade, vítimas resultantes de um sistema econômico e político que tem engordado as grandes fortunas e mantido na pobreza e na miséria um número enorme de seres humanos.

Atentar para esse cenário em momentos como o do Natal e o da travessia do nosso calendário anual pode parecer impróprio, mas deveria ser justamente o oposto. Não se pode ser feliz ou buscar de alguma maneira desfrutar os dias e as horas a saudar essas datas deixando de lado esse contencioso dramático e ao mesmo tempo trágico que vivemos, simplesmente para cumprir essas ditas obrigações cobradas por conta do costume. Mas, essa tradição ao ser atropelada pela incúria e a violação de vidas deixadas ao leu não parece ser razoável.

Nesse momento em que ainda nos encontramos sob uma pandemia não totalmente superada, com uma totalização não desprezível de óbitos decorrentes dos efeitos nefastos dessa crise sanitária, não é mais tolerável superarmos essa devastadora ação virótica e nos humanizar um pouco mais. Somos e devemos ter cada vez mais consciência de nossas fragilidades como seres em construção. Eliminar a arrogância para criarmos uma sociedade fraterna e justa.

CEI Professora “Lilian Márcia Dias” realiza projeto “Natal da Esperança” trabalhando amor e solidariedade com as mais de 180 crianças – Prefeitura Três Lagoas

O bom espírito natalino a nos embalar para um novo ano precisa estar representado na compaixão, na doação que possamos dar aos nossos semelhantes, de modo a criarmos as condições para a edificação de um mundo não apenas mais seguro, mas em condições de contemplar os sonhos genuínos que conseguirmos idealizar.

Sonhos que são utopias no sentido de um caminho a ser trilhado em direção ao reino da felicidade, aquele que combina ideias e realizações, vontades coletivas e cooperação comum de maneira a beneficiar a comunidade de destino na qual somos instados a edificar para o bem de todos.

Portanto, uma utopia do vir a ser, que nos conduza a um mundo que verbalize e adote a solidariedade permanente a agrupar todas as tribos, todas as culturas e etnias e todos os seres em suas diferenças e desejos. E que essa comunhão permita encontrar a relação complementar com a natureza da qual somos parte e temos o dever de proteja-la porque só assim teremos futuro.

O feliz Natal e o Próspero Ano Novo só ganham o sentido da comunhão amorosa entre os seres humanos se sua expressão estiver alicerçada na forte convicção de que temos um desafio comum, o de fazer do mundo algo que satisfaça a humanidade sem agredir os demais seres da Terra e o seu meio já bastante saturado pelos crimes ambientais. Se conseguirmos fazer valer esse compromisso, essas consignas de fim de ano fazem sentido e devem ser manifestadas como um desejo comum.

Logo, preservar as tradições não impede que inovemos nos cultos que expressem os nossos sentimentos e com eles possamos, sem contradições, avançar na conquista de um mundo melhor.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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