Redação

Procurador-geral da República pede condenação de fazendeiros que deram carne estragada e deixaram trabalhadores sem banheiro no Pará; TRF-1 absolveu réus por considerar que flagrantes ‘devem ser vistos dentro da realidade rural brasileira’.

Está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF) decidir se é aceitável que um trabalhador rural brasileiro seja obrigado a comer carne apodrecida, beber água do rio ou ter que pagar por seus instrumentos de trabalho se ele estiver no interior do país. A corte deve analisar em breve um recurso do Ministério Público Federal (MPF) contra decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), que absolveu dois réus acusados de aliciamento e redução de pessoas à condição análoga à de escravo.

No caso, mais de 50 trabalhadores de três fazendas no Pará conviviam com a situação descrita no início deste texto, mas os desembargadores do TRF-1 entenderam que a falta de condições sanitárias mínimas e o endividamento dos trabalhadores seriam reflexo da realidade no interior do Brasil e, por isso, insuficientes para comprovar o crime de escravidão contemporânea. Os réus foram absolvidos.

A decisão do Supremo neste julgamento terá repercussão geral, ou seja, valerá para todos os processos similares.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, defende que não podem haver critérios diferentes para julgar crime de escravidão contemporânea no interior ou em áreas urbanas do país. Na última quinta-feira, 24 de fevereiro, ele enviou parecer ao STF pedindo a inconstitucionalidade da “diferenciação regional” do trabalho degradante, argumentando que o artigo 149 do Código Penal, que versa sobre o tema, deve ser aplicado da mesma forma em todo o território nacional, “independentemente de onde nasçam e laborem” os trabalhadores.

O caso julgado pelo TRF-1 envolveu três fazendas no Pará. De acordo com a denúncia, entre abril de 2004 e maio de 2005, mais de 50 trabalhadores foram submetidos a condições de trabalho indignas nessas propriedades. Os auditores fiscais do Trabalho que participaram da ação relataram ter encontrado “carnes podres para consumo” e “alojamentos coletivos sem instalações sanitárias”. A água utilizada para o cozimento, higiene e consumo “era de rio”, enquanto a alimentação era descontada do salário. Os trabalhadores também arcavam com os custos das botinas que eventualmente usavam.

O voto pela absolvição dos acusados, no entanto, afirma que tais elementos “devem ser vistos dentro da realidade rural brasileira” e, “na hipótese, não se vislumbra a gravidade intensa que implique a submissão dos trabalhadores a constrangimentos econômicos e pessoais (morais) inaceitáveis”.

Decisão terá repercussão geral e valerá como regra para outros casos. (Crédito: Sérgio Carvalho/MTE)

Essas tentativas de flexibilizar o entendimento do que seriam condições dignas para o trabalhador são antigas. “Não é incomum que os patrões tentem justificar e normalizar as condições precárias que oferecem aos trabalhadores, justificar a miséria pela miséria. Quantas vezes já ouvi dizerem: ‘Estou trabalhando com miseráveis, então estou elevando as condições deles’”, afirma o frei Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Mas a decisão do TRF-1, caso mantida, poderia agravar a situação. “É uma porta fantástica para que esse tipo de argumento prospere e se enraíze. Isso é muito perigoso. Imagina essa tese aplicada ao mundo dos aplicativos, por exemplo: ‘É assim que se vive hoje, está tudo bem’”, diz Plassat.

Distorções como essa já foram feitas pelo presidente Jair Bolsonaro e por seu antecessor, Michel Temer. Em dezembro de 2021, Bolsonaro criticou o combate ao trabalho escravo durante evento da Confederação Nacional da Indústria. “Olha as normas regulamentadoras, como era difícil ser um grande empresário. […] A altura da pia, maciez do papel higiênico, tudo isso era motivo de multa. Ele [o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho] acabou com milhares de itens que atrapalhavam a vida de vocês”, afirmou o mandatário. Em 2017, Michel Temer omitiu dados relevantes de uma ação de fiscalização para criticar a atuação dos auditores. “Se você não tiver a saboneteira no lugar certo significa trabalho escravo”, disse em uma entrevista, na época, deixando de informar que havia também registro de não pagamento de salários, alojamentos superlotados e condições inadequadas de higiene no flagrante que citou.

Aras, que já havia se manifestado de forma contrária à decisão do TRF-1 em maio de 2021, também criticou em seu parecer o que chamou de “avaliação seletiva ou subjetiva” das provas nos casos de trabalho escravo. “A desconsideração parcial dos elementos […] se torna notadamente problemática quando os depoimentos dos auditores se fazem acompanhar de outros elementos de documentação que reforçam o quadro [de trabalho escravo] encontrado, como fotografias, materiais indicativos das más condições encontradas e de processos de endividamento sistêmico, bem como depoimentos assinados dos trabalhadores resgatados.” O procurador-geral afirmou que os juízes precisam dar embasamento técnico e padronizado quando optam por descartar determinada prova em um processo. Neste caso, parte dos testemunhos colhidos pelos fiscais foram desconsiderados pelos magistrados, sob a alegação de que “a prova produzida não suporta o juízo condenatório” e que os fatos não ficaram “devidamente provados”.

Por fim, o procurador-geral classificou como “preocupante” o cenário do combate ao trabalho escravo no país, citando dados levantados pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. O estudo mostra que, no período de 2008 a 2019, 2.625 réus foram denunciados por exploração de trabalho escravo, dos quais apenas 111 (4,2%) foram condenados de forma definitiva. Em 2021 o Brasil fechou o ano com 1.937 resgatados da escravidão, a maior soma desde 2013.

Fonte: Repórter Brasil


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