Por Lincoln Penna

Neste ano de 2021, registram-se os 150 anos da publicação do livro completo de Charles Darwin, A Origem das espécies, cuja primeira parte saíra em 1859.

Vale sempre à pena lembrar-se desta efeméride em razão de sua eterna atualidade. Qual foi a origem dos hominídeos? Bem, os cientistas entendem que os seres humanos ramificaram-se de seu ancestral comum com os chimpanzés – o único outro hominídeo vivo – entre cinco e sete milhões de anos. Diversas outras espécies desapareceram.

O título dessa Crônica, no entanto, é de autoria de um jogador de futebol. Expressa uma revolta e uma verdade, e nos reconduz as nossas origens. Isto porque o ser humano e os macacos possuem essa ancestralidade comum. As muitas análises comparativas entre os macacos, baseadas em dados morfológicos e nas seqüências de DNA, mostram que humanos e chimpanzés são parentes próximos. Dito isso, vamos ao que nos levou a situar essas nossas origens comuns.

Se voltarmos para a evolução em escala de nosso passado mais remoto, vamos verificar que a primeira espécie original do gênero Homo foi o Homo habilis, cuja progressão ao longo do tempo chegou ao Homo sapiens. Desse tronco restou o Homo sapiens sapiens (duas vezes sapiens), cuja repetição sugere evolução. São os primatas. E desta origem surgiu o ser humano que somos.

Temos o hábito de associar o passado a ideia de atraso. Faz parte do impulso que experimentamos pela tenacidade de procurarmos sempre e insistentemente evoluirmos de modo a nos superarmos a cada etapa do desafio vencido. Das primeiras ferramentas tecnológicas até hoje nada nos contenta definitivamente. A ânsia na descoberta e inovação tem nos conduzido e nos conduzirá a enxergarmos novos futuros sempre a serem alcançados. Mas não custa nada nos lembrarmos de nossas origens. Elas devem nos estimular jamais nos envergonhar.

O jogador de futebol franco-senegalês, Patrice Evra, criticou as premiações de melhor do mundo, e de melhor goleiro de cada posição, entre outras posições geralmente escolhidas ao término de um ano, e também comuns em outras modalidades, sobretudo nos esportes coletivos

É a individualidade sobrepondo-se à coletividade a reproduzir o que assistimos nas relações sociais dos sistemas em vigor nos quais a competitividade é incentivada numa corrida desenfreada e frenética da concorrência, seja de empregos ou de colocações mais vantajosas. E isso em todos os campos de atividade.

Mas o que está nas entrelinhas dessa declaração é a repulsa do racismo, e da prática a envolver a participação de equipes, além da ideia de que existem pessoas melhores do que as outras, nada tendo a ver com a questão de desempenho esportivo ou de qualquer outra forma de expressão. Afinal, existem mestres de diversos ofícios que são mais habilidosos do que outros, mas não são necessariamente superiores. Executam com mais maestria do que todos os outros.

Na verdade, essa declaração de Evra nos leva a retomar a discussão sobre as nossas origens, sem cair nas explicações teológicas, religiosas, que sugerem uma paternidade originária divina. A rigor, quando o jogador da seleção do Senegal afirma que todos nós, africanos ou não, somos macacos, o que diz é a mais pura verdade, pois viemos do elo perdido que fez surgir os hominídeos derivados do mesmo tronco comum dos símios.

Diante dessa tese jamais inteiramente refutada pela ciência, surgiu a atitude de repulsa pelo fato de muitos considerarem como impróprio esse parentesco.

Dessa atitude surgiu historicamente o racismo, que tem permeado os nossos preconceitos de todo dia. E a cada manifestação dessa natureza é inevitável que se remonte aos nossos tempos pretéritos, quando nos constituímos como humanos.

O jogador Evra sem querer reaver uma recorrente questão a envolver as nossas origens pôs na pauta dos debates a nossa identidade. Aliás, se somos filhos de Deus, de qualquer forma que Ele se apresente para as suas diversas crenças e filiações, então temos uma origem consagrada pelas várias religiões monoteístas que a legitimam. Por que não nos originarmos senão de um tronco comum?

E esse tronco do qual todos os humanos se originaram nada tem a ver com as raças, a cor da pele, a linguagem e os inúmeros costumes e crenças, pois essas diferenças são próprias de uma espécie. E isso em nada diminui cada uma das suas representações. Ao contrário, só a enriquecem.

Não é de todo desconhecido que as hordas que deram lugar bem mais tarde as primeiras formas de comunidades sedentárias disputavam territórios. Eram por isso mesmo, coletividades que se irmanavam na defesa e na conquista de áreas mais próprias para a coleta de recursos naturais. E ao se defrontarem com hordas que buscavam os mesmos objetivos para se saciarem adotavam atitudes agressivas dando origem às primeiras modalidades de combate pelo território.

Dessa tradição de pertencimento a grupos que praticavam uma espécie de autodefesa para sobreviverem surgiram diferenciações que levariam à formação das primeiras divisões sociais dentro dessas formas de sociabilidade. E delas derivaram as classes sociais, com a apropriação de áreas territoriais e de bens por parte de certos grupos que passaram a exercer a dominação sobre os demais membros.

Junto a esse processo vale lembrar a progressiva constituição de visões parciais de mundo e de realidades concretas que deram origem às ideologias por parte de quem precisava justificar esse domínio sobre os demais membros das coletividades a essa altura já divididas por interesses concretos, exemplificada pela propriedade privada. Daí, a tal situação se estender para toda forma de conflito, inclusive de grupos passionais tão comuns na prática futebolística, e esportiva em geral, aferrados a interesses e crenças justificadores desse domínio, isto é, de um poder que passa a impor-se como legítimo.

Há certas sentenças decorrentes de situações específicas ou localizadas que acabam ganhando uma dimensão maior do que aparentemente elas possuem. Todavia, essa dimensão maior encontra amparo nas nossas mais origens de competitividades e desigualdades. E este é o caso do jogador Evra.

Sem desejar inventariar as nossas origens ele foi cirúrgico e definitivo ao dizer que somos todos macacos. Chamamento que é oportuno lembrar em tempos dos que defendem a desigualdade e rejeitam a diversidade, tão própria de nossas vidas originárias.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.