Por Antonio Veronese –
As empregadas, em crescente bisbilhotice, espreitavam pelas frestas de portas e janelas e, por vezes, surpreendiam o padre em atitudes que pareciam mais ser a de um pai amoroso a repreender a filha.
Maria Déa era mulher indulgente e “moderna”, como se dizia então. Nas vezes em que o comendador impunha restrições às atividades de Bentinho, sempre fora ela a defendê-lo, procurando fazer da vida do menino a mais livre e feliz. Mais do que isso, nas recepções ou idas ao teatro, insistia em chamar-lhe a atenção para o viço das raparigas.
Dizia, cobrando dele maior iniciativa:
-És um guapo menino, não percas tempo. Bota nos olhos o fogo de que as meninas gostam.
Quando o comendador intervinha ressaltando ser Bentinho ainda uma criança, ela sentenciava:
-A vida é curta, a vida é muito curta!, meu velho marido.
Se Bentinho vestia-se para uma ocasião especial, era ela a exigir que tudo estivesse corretíssimo: o nó da gravata, o lenço de seda no bolso, o vinco das calças, o lustro dos sapatos…
-Tenha especial atenção com os sapatos, ressaltava. Mulher sempre repara nos sapatos!
– E coloques sempre um cheiro atrás da orelha e nas mãos!
E, com o olhar deixando escapar um flagrante de malícia, colocava as mãos junto às narinas antes de completar:
-É bom sentir o perfume que alguém nos deixa nas mãos depois que partiu…
Maria Déa deliciava-se em estimular e orientar seu menino na mais deliciosa das contentas, aquela que nos vai acompanhar por toda a vida.
No entanto, de uma hora a outra, como não tardaram a reparar as criadas, sua atitude mudou radicalmente. Antes que estimulá-lo nas suas tímidas investidas em direção ao sexo oposto, passou a ralhar e a implicar com coisas sem importância, chegando mesmo a ironizar suas parcas iniciativas.
Ainda mais revelador dessa nova atitude foi seu surpreendente desdém com o crescente interesse de Bentinho pela bela menina da casa da frente.
– Bobagem, dizia Maria Déa; cuida de teus estudos e deixa em paz a rapariga!
Mais estranho ainda: passou a controlar todos os passos do rapaz, coisa que nunca antes fizera.
– Onde vais? Já fizestes tuas lições da escola? Por que te atrasastes hoje?
Tornou-se, simultaneamente, mais irritada e exigente com as criadas, inçada de desconfianças, implicando com detalhes sem nenhuma importância, papagueando uma ladainha de reprimendas.
Dasdô, agora, esgueirava-se pelos cantos da casa depois de sofrer desproporcional descompostura por um colarinho de Bentinho mal passado e dona Lourdes, na cozinha, penava para agradar o apetite sempre insatisfeito da patroa a reclamar do sal e do tempo de cozimento e do tempero das saladas e da qualidade do peixe…
Foi um longo processo de que aqui trato aqui superficialmente para não enfastiar o leitor, em que se substituíram seus característicos bom humor e contagiante alegria de viver por uma taciturna introspecção.
Passava o dia metida em pijamas e subjugada por inusitado ronceirismo e, quando não obrigada por um compromisso incontornável, horas e horas trancada em seu quarto, impondo-se um ritual penitencial na recitação do confiteor.
Mais que isso, pela primeira vez começou a tomar remédios para dormir sem, no entanto, conseguir vencer a recorrente insônia, surpreendendo o comendador com suas constantes ausências no leito em altas da noite, trancada a sete chaves no banheiro:
– Maria Déa, estás bem?, perguntava à porta o preocupado marido.
– Estou, Álvaro, deixe-me em paz. Estou bem! Vá dormir .
Nas tardes, quando ausente o marido, vestia e desvestia os mesmos vestidos numa insatisfação sem fim com a própria aparência, terminando por deixar um ror deles atirados ao chão num canto do quarto, o que obrigava Dasdô a lavar e repassar roupas que nem tinham sido usadas.
Saía pela manhã bem cedo, sozinha, e voltava carregada de sacolas de bugigangas que levava diretamente ao quarto, aguçando a curiosidade das empregadas. Despendia fortunas em cremes e geleias milagrosas, com as quais untava o corpo e lambuzava o rosto para, depois, meter-se novamente nos pesados pijamas de flanela.
Num desses dias, Dasdô entrou inadvertidamente no quarto do casal para trocar a roupa de cama e tomou um susto dos infernos: deu de cara com a patroa sentada no chão, vestida de um estranho vestido rosa e portanto pantufas, tendo o rosto empastelado por um creme negro que só fazia expor o brancor dos dentes e olhos.
-Salve minha Nossa Senhora de Aparecida!- , gritou a negrinha, antes de evadir-se escada abaixo como se tivesse visto alma penada.
E Maria Déa passou a reclamar da comida, e reclamava, e reclamava… E devolvia tudo à cozinha… nada mais a satisfazia! E por estar assim tão inapetente, começou a perder peso a olhos vistos; vincaram-se as linhas do rosto, abateu-se o semblante, abandonou-a de vez o luminoso sorriso.
Dona Lourdes, zelosa de suas obrigações e assustada com o desagrado da patroa, passou a campear toda sorte de novidades. Ia cedo ao mercado de onde trazia peixe fresco e camarão, siris e caranguejos, mariscos e ostras, as melhores peças de bacalhau e uma profusão de temperos exóticos na tentativa de seduzir o paladar da patroa. Sem sucesso! A mulher não comia e não queria comer, enfastiada de tudo.
Nos meados do terceiro mês da crise que insistia em ficar, Maria Déa passou a ter uma coceira que não a deixava dormir e, por consequência, não dormia também o comendador com os solavancos e esfrega-esfrega noturnos da mulher. Comichão dos infernos!
Apontou-se hora no dermatologista que, depois de examinar a massiva escamação, recomendou uma bateria de exames para identificar o agente causador de tão aguda alergia… Em vão; a padecente não era alérgica a nada; a absolutamente nada!
Então, vaticinou o ínclito especialista por detrás d’um dourado “pincenê”:
– Emocional!! É somente uma coceira de fundo emocional!
– Mas como emocional se me coço a quase sangrar, doutor?, desesperou-se a mulher.
– Apenas emocional, reiterou o médico. Algo que lhe aflige o espírito, minha senhora…- repetiu-lhe do alto de sua douta carranca.
A mulher não se satisfez e voltou para a casa maldizendo a empáfia do especialista.
– Emocional!? Emocional uma ova, leirão dos infernos!!
E, num acesso de fúria, exigiu que as criadas recolhessem toda a roupa da casa:
– Quero tudo fervido e refervido!! Deixem longamente nos caldeirões!! Longamente!!!
E encheram-se os caldeirões de toda a rouparia … lençóis, fronhas, toalhas, toalhinhas, meias e mais toda sorte de roupas íntimas a desnudar toda a sorte de intimidades.
Depois, levadas ao sol para quarar, cobriu-se o gramado verde com a palheta multicor de todos os segredos familiares desfraldados.
Mas Maria Déa ainda não sossegava; pôs-se a perscrutar insondáveis bactérias, passando a cuidar pessoalmente da limpeza e desinfecção dos banheiros, coisa que nunca fizera antes. Comprou uma coleção de desinfetantes e robustos perfumantes, e esfregava o chão demoradamente, ciosa de cada detalhe, enrolando chumaços de algodão em palitos de fósforo com os quais limpava minuciosamente cada fresta dos ladrilhos como que, mais que andar, quisesse comer sobre eles.
Desleixada da própria aparência, o que era especialmente grave nela que gostava de citar Balzac dizendo que “desleixo ao vestir-se é falta moral”, passou a portar desairosos roupões de banho de Álvaro, a expor os cabelos enrolados por esvoaçantes tiras de papel, a arrastar surradas chinelas como um soturno espantalho a vagar pela casa.
Não bastassem os acessos de coceira em meio às madrugadas, teve ainda uma crise de urticária que lhe subiu pelo pescoço, sabe-se lá se pelas intoxicações emocionais, como vaticinara o doutor, ou por alguma reação alérgica à profusão de cremes e unguentos com os quais insistia em empastelar o corpo todo.
Na busca desesperada de por um fim ao seu martírio e desdenhando o diagnóstico do especialista, passou a receber, duas vezes por semana, uma velha benzedeira do Mangue, conhecida por seus milagrosos banhos de ervas medicinais, capazes de resolver até os problemas recorrentes das suas vizinhas de vida fácil….
Com a velha pajé passava horas e horas reclusa no banheiro, metida dentro de banheira preparada com folhas e flores, óleos e sal grosso. Em vão!
A dramática transformação de Maria Déa, que já era motivo de grande preocupação de Bentinho e das criadas conseguiu, finalmente, sensibilizar o marido, costumeiramente distante e indiferente. Rápido emagrecimento, coceiras, crises de choro, reclusão, ausência constante à mesa nas refeições, total desinteresse por atividades sociais, cancelamento de jantares, proibição de qualquer comemoração no dia do seu aniversário…
Antes devota e engajada em atividades filantrópicas da igreja, agora parecia indiferente à sorte dos desafortunados, deixando mesmo de ir às missas pela primeira vez em toda a sua vida.
Como não recebesse nenhum tipo de resposta ou explicação às suas interpelações, o marido mandou chamar o Doutor Salustino, velho clínico da família, aposentado há anos. Depois de tomar o pulso e auscultar o peito, o médico prescreveu algumas vitaminas e ordenou repouso.
– Nada de grave, disse, apenas esfalfamento!
O comendador, desta vez, não se satisfez. Via diante dos seus olhos a mulher definhar. Alguma coisa havia que ser feita!
Mandou então chamar padre Ovídio, pessoa por quem Maria Déa tinha grande estima.
-Se a ciência não resolve, quem sabe a Igreja, filosofou.
E veio o sacerdote. Fechou-se com Álvaro longamente na biblioteca. Depois subiu o marido sozinho aos aposentos do casal, onde a mulher se encontrava trancada desde a manhã. Lá permaneceu por meia hora, enquanto o padre, pacientemente, aguardava no andar inferior. Depois mandou chamá-lo ao quarto, deixando-o a sós com a mulher. As empregadas, reclusas na cozinha e sem acesso ao que se passava no segundo andar, enlouqueciam da curiosidade impelida pelos semblantes carregados dos homens.
-Por que o padre teria sido chamado??!!- perguntavam-se.
Depois de servir um bule de café e sequilhos no quarto, Dasdô voltou à cozinha com as teses mais estapafúrdias, chegando a suspeitar que Maria Déa estivesse possuída por “alguma coisa ruim”…
-Cruz credo, menina. Te esconjuro!, reagiu dona Lourdes.
O pároco, depois de mais de duas horas trancado com Maria Déa, recolheu-se novamente com o comendador à privacidade do escritório. Caia já a noite quando ele finalmente partiu e tinha ainda o semblante saturado de preocupação.
Certas ou não as suspeitas de Dasdô, o fato é que, a partir desse dia, o pároco passou a cumprir rigorosa rotina, vindo todos os dias, sempre à mesma hora, às dez da manhã. Por vezes, simplesmente trancavam-se demoradamente no quarto; noutras, conversavam longamente andando pelos jardins da casa, junto à alameda de primaveras.
As empregadas, em crescente bisbilhotice, espreitavam pelas frestas de portas e janelas e, por vezes, surpreendiam o padre em atitudes que pareciam mais ser a de um pai amoroso a repreender a filha.
Por que será ?
(CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA)
ANTONIO VERONESE – Pintor brasileiro autodidata com uma obra considerável, realizou centenas de exposições individuais, tem obras expostas em numerosos museus, coleções públicas e privadas nos Estados Unidos, Suíça, França, Japão, Chile e Brasil. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre, representante e correspondente internacional em Paris, França; Radicado na França desde 2004, antes de deixar o Brasil deu aulas de arte para menores infratores nos Institutos João Luiz Alves, Padre Severino e Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e no Caje de Brasília. Utilizou a pintura como forma de reabilitação psico-pedagógica dos adolescentes entre 12 e 18 anos com a bandeira” estética é remédio!”. Alguns dos trabalhos produzidos pelos jovens foram expostos em Genebra (Suíça), no Salão Negro do Congresso Nacional, em Brasília, e na Universidade de San Francisco, nos Estados Unidos. Em 1998, representando o Brasil no Encontro de Esposas de Chefes de Estado, cobrou da então primeira-dama, Ruth Cardoso, medidas para tirar das ruas crianças abandonadas, tendo recebido o apoio de Hilary Clinton. Pela denúncia da violência contra menores no Rio de Janeiro, que faz através de sua pintura e de engajamento constante deste 1986, Veronese foi convidado à Comissão de Direitos Humanos da ONU – em Genebra, para proferir palestra, lá causou grande indignação ao apresentar fotografias de 160 crianças, marcadas por cicatrizes massivas decorrentes da violência urbana, doméstica e policial.
Antonio Veronese, Italian-Brazilian painter, lives in France since 2004. He is the author of «Save the Children», symbol of th e 50th anniversary of the United Nations, and «Just Kids» symbol of UNICEF. As well of «La Marche», exhibited in the Parliament of Brazil since 1995, and «Famine», exhibited since 1994 at the Food Agriculture Organization for United Nations (FAO) in Rome.
Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com
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