Por Antonio Veronese –
Minha crítica é uma forma extremada de amar.
Estou fora do Brasil, ausente do meu Rio, há dezoito anos. Não porque não goste de meu país, ou porque o tenha esquecido. Mesmo tendo dupla nacionalidade, italiana e brasileira, a terra brasilis é como a tatuagem de um ex-amor que se revê a cada manhã no espelho do toucador…
Caipira do interior de SP, mudei-me para o Rio de Janeiro quando tinha apenas 17 anos, em 1971. Eu já era louco pelo Rio à distância! Aluguei em Copacabana um «já-vi-tudo», como se dizia à época, num «balança-mas-não-cai» que tinha duas portarias: uma dando para a rua Prado Jr. 48 e outra para avenida Princesa Isabel 7. Foi nesses 30m2, com vista lateral para o mar, com a saudosa Mônica à tiracolo, que eu descobri o Rio que pulsava em torno de mim… O Rio da Banda do Leme, onde acabei tocando surdo (acreditem se quiserem), o Rio dos ensaios na quadra da Portela, o Rio da Boate Erótica com suas meninas de «boa família», o Rio do Jardim Botânico e da Lagoa, o Rio de Santa Tereza, do Cosme Velho e da velha Lapa… o Rio do Lamas onde eu ia comer o contra filé a Oswaldo Aranha e tomar cerveja gelada…
À época eu queria ser compositor e cheguei mesmo a gravar um compacto duplo que guardo escondido no fundo de uma gaveta, como escondido pra sempre ficou o sonho de fazer música.
Um dia, de dentro do ônibus em que eu ia para o Leblon, vislumbrei sentado à varanda do antigo Bar Veloso, que hoje se chama Garota de Ipanema, ninguém menos do que Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Eu, que tocava um violãozinho assim assim por causa dele, considerava o maestro o homem mais importante vivo sobre a face da terra! Saltei do ônibus, aproximei-me de sua mesa sem acreditar no que via, boquiaberto como quem diante de uma «aparição» da Virgem. Tom, conhecido por sua gentileza e afetuosidade, perguntou se eu queria tomar um chope e foi assim que, pela primeira vez na minha vida, bebi álcool…
A embriaguez do primeiro chope, somada à produzida por dividir uma mesa com Tom, foi a minha “debutância” na efervescência cultural do Rio de então, onde jantar no Antonio’s do saudoso Manolo, no Leblon, era a possibilidade de «côtoyer» Tom, Vinicius, Chico, Ronaldo Bôscoli, Tarso de Castro…
Eu, ainda quase menino, ficava de «aluno ouvinte», degustando a verve dessas feras inesquecíveis.
Depois veio o Plataforma de Alberico Campana, onde eu sempre dava um jeito de sentar-me à “boa mesa” e almoçar ao lado de Tom, José Lewgoy, Miguelzinho Faria, Aluísio de Oliveira… e testemunhar cenas como aquela em que Tom interpelou Luma de Oliveira, que vinha de ser escolhida pela revista Playboy «a mulher da década». Não concordo com isso, disse-lhe Tom. Você não é a mulher da década, você é a mulher do século!, o que fez brotar um sorriso orgástico no rosto da linda mulher.
Era um Rio em que se podia, sem correr risco de morte, andar pelas madrugadas de Copacabana e encontrar, num fim de noite, o grande Orlando Silva comendo um hambúrguer numa lanchonete do Lido. Mais do que isso, o Rio era a cidade musa da Bossa Nova, essa música que atravessou a galope todas as fronteiras do planeta, sinônimo de sofisticação e genialidade, e que mudou para sempre a imagem do Brasil aos olhos do mundo: «Rio que mora no mar, sorrio pro meu Rio que tem no seu mar, lindas flores que nascem morenas em jardins de sal» escrevia o genial Ronaldo Bôscoli, uma panfletagem estética definitiva do Rio, com um vanguardismo de Señoritas de la Calle de Avingon e a leveza d’um móbile de Calder.
Este Rio não mais existe. Começou a morrer nos anos 70/80 , como preconizou Vinicius, na sua famosa Carta a Tom, escreveu:
“Lembra que tempo feliz?
Ai, que saudade
Ipanema era só felicidade
Era como se o amor doesse em paz
Nossa famosa garota nem sabia
A que ponto a cidade turvaria
Esse Rio de amor, que se perdeu”
Esse Rio de amor que se perdeu! Em reação a essa dolorosa degradação, fiz, em 1990, na antiga Galeria IDEA de Anita Schwartz, a minha primeira exposição individual que se chamou «Tensão no Rio»; uma tentativa de denunciar o drama que se instalara na antiga capital federal, a nossa cidade maravilhosa. O catálogo desta exposição, que o tempo transformou em documento, foi escrito por ninguém menos que o próprio Tom (quem diria ?!), talvez a primeira pessoa a entender o que eu estava tentando dizer com minha pintura e, mais do que isso, o que o Rio estava a sofrer. Escreveu o maestro:
Rio de Janeiro, a parte que Deus fez continua linda, mas a parte dos homens vai mal. A pintura de Veronese é um registro disso, dessa tensão que se respira nas ruas. É uma apaixonada reação civil à situação em que se encontra a cidade que ele ama, que nos amamos. O Rio é a inspiração de Veronese e, mais do que isso, é a provocação da qual resulta sua pintura. Nela há os rostos que protagonizam o que Veronese chama de «guerra civil carioca» Mas há também mulheres bonitas que eu, fosse um rapaz solteiro, gostaria de namorar (Tom Jobim, Rio 1990).
Por causa deste texto, costumo dizer que meu titulo de cidadão carioca foi concedido por ninguém menos que Tom Jobim!
Mas o tempo passou e o inimaginável aconteceu. Brutalizado pela violência e a truculência policial, submisso à milícia e subjugado pelo medo, entorpecido pela miséria, esquecido de sua glória, desatento à sua tradição, empobrecido sistematicamente pela influência negativa da televisão, que impôs mediocridades como essa «sertanejictite» com seus ídolos chinfrins movidos a jabaculê e sem a elegância da antiga tribo joão-gilberteana, o Rio esqueceu-se de si mesmo e hoje é sombra de «um passado que foi tão feliz», como diria Dolores Duran, um espectro do que foi um dia, terra de cultura e poesia, centro do pensamento nacional.
Por isso parti, como quem abandona amando ainda, o coração apertado e a saudade de um Rio que já não há.
ANTONIO VERONESE – Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre, representante e correspondente internacional em Paris, França; Pintor brasileiro auto-didata com uma obra considerável, realizou centenas de exposições individuais, tem obras expostas em numerosos museus, coleções públicas e privadas nos Estados Unidos, Suíça, França, Japão, Chile e Brasil. Radicado na França desde 2004, antes de deixar o Brasil deu aulas de arte para menores infratores nos Institutos João Luiz Alves, Padre Severino e Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e no Caje de Brasília. Utilizou a pintura como forma de reabilitação psico-pedagógica dos adolescentes entre 12 e 18 anos com a bandeira” estética é remédio!”. Alguns dos trabalhos produzidos pelos jovens foram expostos em Genebra (Suíça), no Salão Negro do Congresso Nacional, em Brasília, e na Universidade de San Francisco, nos Estados Unidos. Em 1998, representando o Brasil no Encontro de Esposas de Chefes de Estado, cobrou da então primeira-dama, Ruth Cardoso, medidas para tirar das ruas crianças abandonadas, tendo recebido o apoio de Hilary Clinton. Pela denúncia da violência contra menores no Rio de Janeiro, que faz através de sua pintura e de engajamento constante deste 1986, Veronese foi convidado à Comissão de Direitos Humanos da ONU – em Genebra, para proferir palestra, lá causou grande indignação ao apresentar fotografias de 160 crianças, marcadas por cicatrizes massivas decorrentes da violência urbana, doméstica e policial.
Antonio Veronese, Italian-Brazilian painter, lives in France since 2004. He is the author of « Save the Children« , symbol of th e 50th anniversary of the United Nations, and « Just Kids » symbol of UNICEF. As well of « La Marche », exhibited in the Parliament of Brazil since 1995, and « Famine« , exhibited since 1994 at the Food Agriculture Organization for United Nations (FAO) in Rome. antonioveronese.over-blog.com
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