Por Luiz Carlos Prestes Filho –
Em entrevista exclusiva ao jornal Tribuna da imprensa Livre, Ronaldo Miranda, afirmou: “O Brasil não é reconhecido internacionalmente por sua música de concerto, como é pela sua música popular. Infelizmente, pois temos grandes compositores, do Padre José Maurício aos dias de hoje. Com exceção de Villa-Lobos, que realmente é gravado e executado no mundo inteiro, pelas grandes orquestras e os grandes intérpretes, nossos destaques são casos isolados. Existe algum reconhecimento, mas não na proporção merecida.” Para o compositor:
“São Paulo é um dos estados brasileiros que mais disponibiliza recursos para a música de concerto, mas, mesmo ele, tem reduzido seus projetos e suas verbas para a cultura. Fica difícil traçar perspectivas para os próximos anos.”
Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música clássica?
Ronaldo Miranda: Prefiro Música de Concerto. Mas não descarto música erudita.
Prestes Filho: Beber na fonte da cultura brasileira foi importante para o surgimento da sua linguagem própria? O seu primeiro instrumento foi o acordeão, este colaborou para que você estruturasse a sua maneira de ouvir e escrever música? Facilitou seu futuro domínio do piano?
Ronaldo Miranda: A influência da música brasileira – erudita ou popular – foi intensa
na minha formação. Ela se mesclou aos clássicos do repertório internacional, que
estudei na minha Graduação em Piano (concluída em 1970) ou conheci nos discos e
nas salas de concerto. Sim, o acordeão foi o meu primeiro instrumento, embora o
piano em casa já fosse fonte das minhas abordagens auto-didatas. Adiantei-me
bastante nos estudos teóricos com a Profa. Maria José Pinchus, enquanto estudava
acordeão com Romilda Veronese, na Academia Mário Mascarenhas. Tanto que quando
quis entrar para a Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
(Curso Preparatório), fui escalado para o 4º ano de Teoria Musical (o último),
estudando com a excelente professora Hilda Reis. Jorge Antunes e Marcilda Clis foram
meus colegas nessa turma de teoria. E aí não pude continuar os estudos teóricos
(Harmonia e Análise) porque não tocava Piano ou outro instrumento adotado na
Escola. Tive então que fazer todo um trabalho de automatização da mão esquerda,
que no acordeão apenas apertava botões. Precisei também me acostumar a ler
simultaneamente na clave de sol e na clave de fá, enquanto fortalecia a mão esquerda
no teclado. Preparado pela Profa. Ruth Cerrone, passei em segundo lugar na prova de
seleção para o 2º ano Preparatório em Piano, na Escola de Música da UFRJ. O ano era
1963 e eu cursava paralelamente o Curso Clássico do Colégio Santo Inácio. Foi aí que
comecei a estudar piano com a Profa. Dulce de Saules, uma mestra maravilhosa. Com
ela ingressei no curso universitário, em 1966, e com ela continuei até o final da minha
Graduação (1970), passando a fazer eventuais aulas particulares mesmo depois de
graduado. Em 1968, por insistência de meu professor de Harmonia e Análise Musical,
Hélcio Benevides Soares, entrei para o Curso de Composição da mesma escola.
Henrique Morelenbaum era o professor de Harmonia, Contraponto e Fuga (1968, 1969
e 1970). Em 1971, eu deveria finalmente começar a disciplina Composição com José
Siqueira. Não aconteceu: Siqueira foi aposentado pelo regime militar. Henrique
Morelenbaum foi designado professor de Composição, acumulando as disciplinas que
já ministrava. Sendo ele um regente, de intensa atuação na cena musical, levava seus
alunos para assistirem aos ensaios de importantes manifestações da criação
contemporânea: as obras dos Festivais da Guanabara (criados por Edino Krieger em
1969), Peter Grimes de Britten, Dies Irae de Penderecki, Concerto para Orquestra de
Lutoslawski e muitas outras. Morelenbaum teve o mérito de não impor nenhuma
linguagem ou corrente estética aos seus alunos. Deixava que cada um expressasse a
sua linguagem pessoal. Apenas orientava a forma, a orquestração, a adequação da
escrita musical. Com Morelenbaum, fiz meu Mestrado, na década de 1980, na própria
UFRJ. Meu Doutorado foi feito na USP. Não havia na época (1992) Doutorado em
Música no Brasil e eu não quis viajar para o exterior. Cursei então o Doutorado em
Artes da USP, com especialização em Teatro.
Aproveitei minha ópera sobre “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, com libreto de Orlando Codá, e fiz uma Tese sobre a teatralização do romance machadiano através da música, sob a orientação de Eudinyr Fraga.
Prestes Filho: Primeiro surgiu o Ronaldo Miranda crítico de música, depois o Ronaldo Miranda compositor. Como se deu esta passagem? Qual sua opinião sobre a crítica da música contemporânea no Brasil? Quem são aqueles críticos que realizam um trabalho que merece reconhecimento no campo da música contemporânea no Brasil e no exterior?
Ronaldo Miranda: Ronaldo Miranda, crítico de música, surgiu em 1974. Eu trabalhava,
desde 1966, na Gerência de Relações Públicas do Jornal do Brasil e, sempre que podia,
fazia um estágio no Caderno B pois adorava escrever. Entre a minha Graduação em
Piano (1970) e a Graduação em Composição (1976), fiz o Curso de Jornalismo, na
própria UFRJ. Por isso, meu Curso de Composição demorou oito anos para ser
concluído. Eu era bom aluno, mas as exigências eram severas. Então, para dar conta
de tudo, trabalho e estudos, tive que trancar a matrícula do Curso de Composição,
cursar o Jornalismo e depois voltar ao curso composicional. Entrei como crítico do
Jornal do Brasil (acumulando o trabalho no setor de RP) em 1974, por indicação de
Edino Krieger. Mais tarde, dividi essa tarefa com Luiz Paulo Horta. O próprio Edino
também atuava como crítico e, assim, podíamos nos revezar e cobrir a maioria dos
concertos, recitais e óperas. Atuei regularmente como crítico titular do Jornal do Brasil
até o ano de 1982. Depois escrevi, eventualmente, até 1984, desligando-me do jornal
no início de 1985. Apareceu então Edino Krieger, sempre um querido mentor em
minha vida, me oferecendo um cargo de Assessor Técnico na FUNARTE, onde logo me
tornei Coordenador de Música Brasileira e Vice-Diretor do Instituto Nacional de
Música. Em 1990, saí da Funarte e pedi dedicação exclusiva na UFRJ, onde eu já atuava
como Professor de Composição (20 horas). Fui me tornando irreversivelmente músico!
Pedi licença para cursar o Doutorado em Artes na USP (1992) com bolsa PICD da
CAPES, e depois fiquei indo e vindo a São Paulo, até concluir minha tese, em 1997. Em
1993, voltei a escrever no Jornal do Brasil como crítico de música, mas apenas como
colaborador. Em janeiro de 1995, fui convidado a dirigir a Sala Cecília Meireles, cargo
que ocupei até o início de 2004: 9 anos. Aposentado da UFRJ, substituí Mário Ficarelli
como Professor de Composição da ECA-Universidade de São Paulo (2004-2020).
Tornei-me um músico por completo. No mundo inteiro, os compositores de música de
concerto sobrevivem exercendo três atividades: ou são regentes; ou são professores
de uma universidade; ou são administradores musicais. Eu nunca fui regente, mas fui
professor universitário e administrador musical. Sobre a crítica de música atualmente,
no Brasil, o panorama é desolador. No Rio de Janeiro, não há mais críticos. Em São
Paulo, existe um núcleo respeitável na Revista Concerto. Mas, nos grandes jornais, a
atividade crítica é muito esporádica: não há continuidade. Vivi uma realidade bem
diferente nos anos sessenta. Como compositor, recebi críticas boas e ruins no decorrer
da minha carreira.
No exterior, as melhores foram as de Joan Chissel (The Times, Londres, 1980), Anthony Tomasini (New York Times, 1996) e Franceso Biraghi (Il Fronimo, Milão, 2002).
Prestes Filho: Cite nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Também, aqueles que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras que tiveram importância estruturante na sua formação.
Ronaldo Miranda: Gosto de boa música. Posso citar Villa-Lobos, Stravinsky, Bartók. São alguns entre muitos. Obras como as “Bachianas Brasileiras” número 4 e o Choros número 6 (Villa-Lobos), a “Sagração da Primavera” e “Pássaro de Fogo” (Stravinsky), Música para Cordas, Percussão e Celesta e todos os quartetos de cordas (Bartók) são monumentos do século XX e ainda mobilizam todos os jovens compositores. Há mais autores e mais obras a citar, mas a lista é infindável. Chegando mais próximo, eu apontaria Messiaen, Ligeti, Berio, Xenakis, Lutoslawski, Penderecki, Guerra Peixe, Santoro, Krieger, entre tantos outros.
Prestes Filho: A Música Contemporânea abraça o seu ambiente de trabalho. Você acompanha quais movimentos de Música Contemporânea? Quais poderia destacar?
Ronaldo Miranda: Não sou muito chegado a abraçar um determinado movimento.
Alguns teóricos da música, na Europa, afirmam que a criação musical atual se divide
entre a nova simplicidade e a nova complexidade. Os minimalistas americanos e os
neo-românticos europeus seriam novos simples. Autores como Brian Ferneyhough ou
Tristan Murail seriam novos complexos. Essa divisão existe, mas não é rígida. Estilos e
linguagens interferem e se interpolam uns nos outros. Na minha música, eu uso
características dos diversos movimentos como recurso técnico e não como linguagem
padrão. Por isso, posso eventualmente adotar procedimentos do minimalismo, do
serialismo, do pontilhismo, do néo-tonalismo, etc, etc.
A padronização da linguagem num só procedimento ou movimento estético torna a música de um compositor bastante limitada.
Prestes Filho: Você considera a “Sinfonia 2000” uma obra que inaugurou uma nova fase de sua trajetória? Nesta você buscou sintetizar a História musical dos 500 anos do Brasil? Você buscou um diálogo com as obras de compositores de diferentes períodos?
Ronaldo Miranda: Não, a “Sinfonia 2000” não inaugura uma nova fase em minha
trajetória. Divido a minha produção musical em quatro fases. A primeira é a fase
estudantil (modal-brasileira), que se estende até 1976 e inclui algumas canções
“Retrato” (Cecília Meireles); “Soneto da Separação” (Vinicius de Moraes); “Cantares”
(Walter Mariani); “Segredo” (Carlos Drummond de Andrade), a “Suite nº 3” para piano
(editada pela Vitale na Coleção Obras Selecionadas por Guerra Peixe) e um quarteto de
madeiras bem simples. Vem em seguida a fase livremente atonal, entre 1977 e 1983,
que se inicia com “Trajetória” (sobre texto de Orlando Codá), obra premiada no
Concurso de Composição para a II Bienal de Música Brasileira Contemporânea, na
categoria de música de câmera. Escrita para soprano e pequeno conjunto, “Trajetória”
foi apresentada na Sala Cecília Meireles por nada menos que Maria Lúcia Godoy. O
conjunto instrumental incluía Miguel Proença (piano), Norton Morozowicz (flauta),
Paulo Sérgio Santos (clarineta), Jacques Morelenbaum (violoncelo) e Joe Lizama (xilo e
vibrafone), todos sob a regência de John Neschling. Tive muita sorte em obter esse
prêmio e receber uma performance com intérpretes de tamanha qualidade! Um ano
antes, em 1976, Morelenbaum se despediu de mim no último ano da minha
Graduação em Composição me dizendo com sua sabedoria judaica: “Deus dá os
talentos mas cobra a sua utilização. Você é muito talentoso mas não está utilizando os
talentos que Deus lhe deu”. Fiquei com esse conselho na cabeça, tomei coragem e, aos
29 anos, em 1977, realmente comecei uma carreira profissional de compositor, com
esse prêmio-participação na II Bienal. Comecei tarde mas – antes – ninguém queria
tocar as minhas obras. Parecia que eu necessitava de um aval crítico. E, descobrindo
que isso poderia ser obtido através dos concursos de Composição, participei de vários
outros em que fui premiado também (não necessariamente com o 1º lugar).
Concorria-se sob pseudônimo (o que era ótimo, pois o resultado era sempre surpresa)
e em geral os prêmios incluíam gravação e edição da obra contemplada. Fui me
tornando conhecido como compositor. Essa fase livremente atonal, que se inicia em
1977, com “Trajetória”, vai até 1983, incluindo o “Prólogo”, “Discurso” e “Reflexão” e
a “Toccata”, para piano solo; o “Recitativo”, “Variações” e “Fuga” (violino e piano);
“Lúdica I”, para clarineta solo; Imagens, para clarineta e percussão; o trio de flautas
“Oriens III”; “Variações Sinfônicas” e o “Concerto para Piano e Orquestra”. Em 1984,
começo a fase néo-tonal, que se estende por doze anos. A primeira produção dessa
fase foi a Fantasia para sax alto e piano, dedicada a Paulo Moura e Clara Sverner que a
registraram em duas gravações (Kurarup e Emi-Odeon). Seguiram-se “Estrela
Brilhante” (para piano solo) e o “Concertino” para Piano e Orquestra de Cordas , obra
que passou pelas mãos de muitos pianistas e regentes brasileiros, com as mais diversas
orquestras de cordas, de grupos pequenos (como I Virtuosi di Praga e Orpheus de
Nova Iorque) aos grandes naipes de cordas da OSESP, OSB, OSPA e Petrobrás Sinfônica.
A fase néo-tonal inclui ainda a “Appassionata” para violão solo, o “Tango” (para piano
a quatro mãos) e as “Variações Sérias” (sobre um tema de Anacleto de Medeiros),
originalmente escrita para quinteto de sopros. Obra estreada pelo Quinteto Villa-Lobos, essas “Variações” são talvez minha peça mais executada, sendo incluída no
repertório de quintetos de sopro do mundo inteiro (Inglaterra, França, Alemanha,
Áustria, Turquia, Dinamarca, Japão e USA, até onde me lembro). A peça existe também
transcrita para piano a quatro mãos (transcrição feita por mim mesmo) e transcrita
para quarteto de violões (transcrição feita por Paul Galbraith). Várias outras obras se
incluem nessa fase, até que , em 1997, com o trio Alternâncias (para piano, violino e
violoncelo), eu inicio a fase livre (eclética). Nessa fase, que perdura até hoje, eu me
dou a liberdade de escrever o que eu quero com a linguagem que me convém no
momento da criação, seja ela atonal, tonal ou estilisticamente mutante. A Sinfonia
2000, composta em 1999 por encomenda do MinC (para comemorar os 500 anos do
Brasil), é uma peça que pertence a esse período livre. No primeiro movimento, Solene
e Lírico, a “Sinfonia 2000” começa com uma Introdução dramática literalmente atonal,
passando em seguida a um claro neo-tonalismo que perpassa a obra inteira. O
segundo movimento, Lúdico, apresenta motivos de caráter afro-brasileiro em
tratamento minimalista, valorizando metais e percussão. Já o terceiro movimento,
Tema e Variações, exibe uma série de variações a partir da canção folclórica Na Mão
Direita, citando ao final, na Coda, um pequenino trecho do Hino à Bandeira, de
Francisco Braga. Foi a minha maneira de homenagear o meu país, nesse momento de
celebração. Ainda hoje, me considero nessa fase livre, onde me permito ser
extremamente contemporâneo (como em 2001 nas “Três Micro-Peças” para piano
solo) ou completamente tradicional e tonal (como na “Valsa Só”, escrita em 2004 para
os jovens candidatos – 10 a 13 anos – ao Concurso de Piano de Ituiutaba, versão 2005).
Prestes Filho: Você é autor das óperas “Dom Casmurro”, baseada na obra do escritor Machado de Assis; “A Tempestade”, baseada na peça teatral de Willian Shakespeare; “O Menino e a Liberdade”, com libreto do historiador e jornalista, Jorge Coli. Estas obras demonstram seu permanente interesse pela palavra escrita. A palavra inspira a sua música ou a música vem antes da palavra? Como é identificar nas palavras de um Fernando Pessoa, de uma Cecília Meirelles, de um Vinícius de Morais, de um Carlos Drummond de Andrade, entre outros, as melodias escondidas?
Ronaldo Miranda: A palavra vem antes da música. Sempre ou quase sempre. Eu vejo
música, ou melodias escondidas, por exemplo, nos textos de Cecília Meireles , Manuel
Bandeira e Fernando Pessoa. Não todos, mas na maioria dos poemas. Já Carlos
Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto não são tão adequados à música,
falando genericamente. Os poemas deles tem uma finalidade literária em si mesmos.
São ótima literatura, sem sombra de dúvida, mas os versos não ficam confortáveis
quando cantados. Há exceções, logicamente. Muitos compositores musicaram
“Cidadezinha Qualquer”, de Drummond, e Chico Buarque pôs música em “Vida e
Morte Severina”, de João Cabral. Mas eu me delicioso com os versos de Cecília,
Bandeira e Pessoa. Compus “Noite” (para coro misto) a partir dos poemas “Noite e
Canção Excêntrica”, de Cecília. E ainda musiquei seus poemas “Retrato” e “Desenho
Leve”, para voz e piano. De Bandeira, compus para coro “Belo Belo”, “Canto de Natal”
e “Santa Clara, Clareai” (o título original do poema é “Oração para Aviadores”). De
Fernando Pessoa, musiquei para coro os versos de “Liberdade”, “Mistério do Vento”,
“Canção”, “Pobre Velha Música” e “Autopsicografia” (que ousadia, a minha!). As três
últimas peças fazem parte do ciclo “Três Cânticos Breves”. De Vinicius, musiquei em
1969 o “Soneto da Separação”, sem saber que Tom Jobim tinha tido a mesma ideia. Eu
era aluno de Composição e fiz essa peça como um dever de casa. Ainda hoje ela é
bastante executada. Assim também surgiu Segredo, sobre versos de Drummond.
Cantares, sobre poema de Walter Mariani, foi outra obra composta em 1969. Ficou
guardada 15 anos, saindo da gaveta em 1984 para o conjunto Quadro Cervantes, na
formação : voz, cravo, flauta-doce e viola-da-gamba. Logo em seguida fiz, a pedidos, a
versão de Cantares para voz e piano e o arranjo para coro misto a cappella. Muitas
obras foram escritas sobre textos de meu amigo Orlando Codá, que partiu muito
jovem na década de 1990, pouco depois da estreia de nosso Dom Casmurro. Colega da
Faculdade de Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), curso que eu
abandonei, mas ele se graduou, embora jamais tenha sido advogado, Codá foi meu
parceiro em “Três Canções Simples” (Visões, Noite e Dia, Cotidiano), na cantata “Terras
de Manirema” e nas já citadas “Trajetória” e “Dom Casmurro”. De Luiz Carlos Saroldi,
musiquei “Borba Gato”, para coro infantil. Com texto de Cora Rónai, compus em 1987
a cantata “Coração Concreto” e com Inês Cavalcanti escrevi em 2010 “Três Canções de
Inês” (O Rio, Inês sem Pedro e Fragmentos) – peça que existe no formato voz e violão e
voz e piano. Usei textos latinos em obras corais de caráter litúrgico – Ave Maria, Regina
Coeli, Aleluia – e na Missa Brevis (O Sagrado e o Profano em Celebração da Capela
Real). Encomendada pela Sala Cecília Meireles, em 2007, essa obra foi estreada em
2008 para comemorar os 200 anos da chegada ao Rio da corte portuguesa e Dom João
VI. Incluí canções folclóricas portuguesas (com textos espiritualizados) entre as partes
tradicionais da Missa: Kyrie, Glória, Sanctus e Agnus Dei. E chegamos às óperas. “Dom
Casmurro” foi um projeto contemplado com a Bolsa Vitae de Artes. Após a elaboração
do libreto, por Orlando Codá, levei quatro anos para escrever a música: três atos, duas
horas e quinze minutos de duração, 1.000 páginas de partitura orquestral. A bolsa
Vitae não incluía a encenação, mas a empresária Gaby Leib conseguiu que Emílio Kalil
acolhesse a estreia de Casmurro na temporada de 1992 do Theatro Municipal de São
Paulo. A encenação teve altos e baixos e fui voto vencido nas mudanças feitas durante
os ensaios. Mas fiquei feliz com o elenco, especialmente o Casmurro de Paulo Fortes e
a Capitú de Celina Imbert. Tive péssima crítica de Luiz Antônio Giron, na Folha de São
Paulo, e ótima crítica de Zito Baptista Filho, em O Globo, quando a ópera foi
transmitida na íntegra pela Rádio MEC (gravação original da Cultura-FM de São Paulo).
As duas óperas seguintes surgiram por encomenda de pessoas e/ou instituições. A
Tempestade – com libreto meu a partir da peça de Shakespeare – foi-me encomendada
pelo maestro Abel Rocha e a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, estreando em
2006 no Theatro São Pedro. “O Menino e a Liberdade” – libreto de Jorge Coli a partir
de um conto de Paulo Bomfim – surgiu de um comissionamento da Sra. Béa Esteve
para a temporada de 2013, também, do Theatro São Pedro. Dessa vez, tive mais sorte
com as encenações, bem próximas do que eu realmente havia imaginado. Regida por
Abel Rocha e dirigida por William Pereira, “A Tempestade” teve um elenco estelar, em
que atuaram Homero Velho, Rosana Lamosa, Fernando Portari, Regina Elena Mesquita
e Sebastião Teixeira, entre muitos outros. Ganhei ótima crítica de Lauro Machado
Coelho, no Estado de São Paulo. “O Menino e a Liberdade” estreou com regência de
Roberto Duarte e encenação de Mauro Wrona, tendo no primeiro elenco Luciana
Bueno, Flavio Leite, Caroline de Comi, Inácio de Nonno, Sebastião Teixeira e Ivan
Marinho. Ganhei uma boa crítica de Irineu Franco Perpétuo, na Revista Concerto.
Pelas duas últimas óperas, recebi dois dos meus três Prêmios APCA: “A Tempestade”
(2006) e “O Menino e a Liberdade” (2013). O primeiro prêmio APCA devo a Eleazar de
Carvalho, que me encomendou e estreou em 1982 com a velha OSESP, no Teatro
Cultura Artística, minhas Variações Sinfônicas. Como fica evidente, grande parte da
minha carreira foi construída em terras paulistanas. Devo muito – e sou muito grato –
ao Estado de São Paulo. E nem citei ainda as várias encomendas da nova OSESP, que
incluíram um “Concerto para Violino”, as “Variações Temporais” (Beethoven
Revisitado) e “Seis Cantos de Lorca”, cantata baseada nos poemas galegos de Federico
Garcia Lorca.
Com essa obra, a OSESP homenageou-me por ocasião dos meus 70 anos, em 2018.
Prestes Filho: Qual tem sido a contribuição dos compositores brasileiros vivos de música contemporânea para com o desenvolvimento da técnica da escrita musical? Podemos identificar uma proposta brasileira? A nossa música contemporânea já conquistou a cena internacional?
Ronaldo Miranda: O Brasil não é reconhecido internacionalmente por sua música de
concerto, como o é pela sua música popular. Infelizmente, pois temos grandes
compositores, do Padre José Maurício aos dias de hoje. Com exceção de Villa-Lobos,
que realmente é gravado e executado no mundo inteiro, pelas grandes orquestras e os
grandes intérpretes, nossos destaques são casos isolados. Existe algum
reconhecimento, mas não na proporção merecida. Na verdade, há em certos casos um
tipo de preconceito mesmo contra os compositores latino-americanos. Percebi isso no
primeiro festival internacional do qual participei em 1983, o World Music Days em
Aarhus, Dinamarca. Fui selecionado pelo júri internacional desse evento com meu trio
de flautas “Oriens III” e estive presente na Assembléia Geral que a ISCM (International
Society for Contemporary Music) promoveu paralelamente. Lá presenciei uma total
desvalorização da produção musical latino-americana, incluindo um protesto da
argentina Alicia Terzian contra a pouca representatividade do continente naquele
Festival. Além da minha desconhecida figura, nos meus 35 anos, representando o
Brasil, havia apenas um autor venezuelano. Em 1986, fui selecionado de novo para o
World Music Days, dessa vez em Budapest, Hungria, com a obra “Imagens”, para
clarineta e percussão. Percebendo que os húngaros gostaram da minha música, resolvi
me inscrever no Concurso Internacional de Composição de Budapest. A premiação foi
feita em 1986, mas os vencedores receberam seus prêmios em 1987, no Festival de
Primavera da capital húngara. Sabendo da implicância com os latinos do outro lado do
Atlântico, coloquei o título da peça concorrente em francês. Assim, meus “Três
Momentos para Violoncelo Solo” viraram “Trois Moments pour Violoncelle Seul”. E os
três movimentos (Elegia, Entreato e Jogo) foram traduzidos para Elegie, Entracte et
Jeu. Para o pseudônimo escolhi a palavra Syrinx, título de uma conhecida obra de
Debussy para flauta solo. Deu certo: recebi o terceiro prêmio, sendo que não houve
segundo e o primeiro foi outorgado ao jovem compositor russo Oleg Kotskosik.
Prestes Filho: A Academia Brasileira de Música (ABM) desempenha papel importante na difusão da música brasileira. Você entende que o compositor deve participar de associações e sindicatos para encaminhar reivindicações e participar ativamente das lutas populares?
Ronaldo Miranda: De fato, a ABM desempenha um papel importantíssimo na difusão da música brasileira. A meu ver, seu principal projeto é o Banco de Partituras que hoje se chama Edições ABM. Tive pouco contato com a Ordem dos Músicos e o Sindicato. Mas participei, por um mandato, como Vice-Presidente, da Diretoria da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea.
Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?
Ronaldo Miranda: A criação do Ministério da Cultura em 1985 representou um grande ganho para os artistas brasileiros, neles se incluindo os músicos. Muitos projetos foram contemplados e criou-se a Lei Sarney, para o mecenato. Mais tarde, a Lei Sarney foi extinta. Criou-se a Lei Rouanet, que, de certa forma, substituiu a anterior. Hoje, a situação é triste. O MinC acabou e ao que parece a Lei Rouanet está agonizando. São Paulo é um dos estados brasileiros que mais disponibiliza recursos para a música de concerto, mas, mesmo ele, tem reduzido seus projetos e suas verbas para a cultura. Fica difícil traçar perspectivas para os próximos anos.
Prestes Filho: Quais são as orquestras brasileiras que você admira como compositor? Quais são os maestros que mais tem intimidade com sua obra?
Ronaldo Miranda: As principais orquestras brasileiras no momento são OSESP, Filarmônica de Minas Gerais, Filarmônica de Goiás, Petrobrás Sinfônica, OSPA e Orquestra Experimental de Repertório. Os regentes que dirigiram minhas obras são muitos. Dos que atuam ou atuaram no Brasil, posso citar Eleazar de Carvalho, Isaac Karabtchevsky, David Machado, Mário Tavares, Sìlvio Barbato, Carlos Veiga, Alberto Jaffé, José Pedro Boessio, Roberto Tibiriçá, Ligia Amadio, Marcelo Lehninger, Roberto Duarte, Henrique Morelenbaum, Carlos Moreno, John Neschling, Roberto Minczuk, Fábio Mechetti, Neil Thomson, Evandro Matté, Lutero Rodrigues, Abel Rocha, Tobias Volkmann, Aylton Escobar, Claudio Cruz, Thiago Santos, Norton Morozowicz, Ricardo Rocha, Emiliano Patarra, Manfredo Schmiedt, José Maria Florêncio, Ricardo Bologna, Tiago Pinheiro, John Boudler, Osman Gioia, André Cardoso, Ernani Aguiar, Carlos Prazeres, Marcos Arakaki, Luiz Gustavo Petri, João Maurício Galindo, Fábio Prado, Rodolfo Richter e Mara Campos, entre outros. Dos maestros estrangeiros, dentro e fora do Brasil, minhas obras passaram pelas mãos de Thomas Conlin, Miltiades Carides, Mendi Rodan, Zsolt Nagy, Lavard Skou Larsen, Armando Krieger, Darko Butorak, Odaline de la Martinez, Isabel Costes, Andrew Constantine, Gustav Frielinghaus e outros.
Não cito aqui os regentes corais – Brasil e exterior – que são incontáveis.
Prestes Filho: Como professor, você confirma que no Brasil está surgindo uma nova geração de compositores? Quem seriam eles? Entre estes, existem seus discípulos?
Ronaldo Miranda: Por incrível que pareça, sim. Mesmo com toda a dificuldade de inserção da música de concerto no mercado, ainda surgem muitos novos talentos na Composição erudita. Dos meus alunos na UFRJ, alguns ficaram famosos mas não são mais jovens, pois lá atuei na década de 1980 e início dos anos 90.
Eu citaria João Guilherme Ripper (talvez o mais destacado compositor brasileiro da geração seguinte à minha) e Caio Senna. Dos novíssimos compositores, que estudaram comigo na USP, eu destaco Yuri Prado, Marcos Lozano, Edson Santanna, Pedro Yugo Sano Mani e Hanon Guy. Na cena musical paulistana, uma menção especial para Alexandre Travassos Fracalanza, não tão jovem, mas um talento reluzente que já produziu um precioso conjunto de obras e orquestrações.
LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).
MAZOLA
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Mais uma necessária e bem realizada entrevista do mundo musical brasileiro.
No caso, com o Ronaldo Miranda, que, confesso, o talvez compositor atual que eu mais me identifique. Compartilhei nas redes por achar que deve ser divulgado o que é importante em nossa cultura e que a média das pessoas, mesmo mais ilustradas, ignoram, infelizmente.