Por Lincoln Penna

O termo “revolução” encerra uma ambigüidade… No sentido em que é ordinariamente usado, “revolução” quer dizer o emprego da força e da violência para a derrubada de governo e tomada do poder… Mas “revolução” tem também o significado de transformação do regime político- social que pode ser e em regra tem sido historicamente desencadeado ou estimulado por insurreições. (Caio Prado Jr. A Revolução Brasileira).

Caio quando escreveu este seu livro, já em plena ditadura implantada pelo golpe de 1964, nós vivíamos ainda na expectativa de uma revolução brasileira, que não só não houve como em seu lugar os golpistas daquela época intitularam a derrubada do governo do presidente João Goulart de “Revolução democrática”. Mesmo assim não faltou quem renovasse essa esperança. Hoje ao tratar dessa questão a conjuntura é bem distinta, mas penso que faz sentido retomar essa discussão.

Diferente da conjuntura da transição democrática, que encerrou uma fase do regime de 64, pois ele não se extinguiu inteiramente, precisamos não apenas a retomada das liberdades, mas avançar no terreno de uma real democracia social, e a revolução de que forma seja é o caminho.

Não foram poucos os autores e partidos políticos que se ocuparam da questão que dá título a este artigo. Caio foi um deles e abre uma interessante reflexão sobre as formas de revolução. Ao invocar o termo insurreições ele permite que a entendamos como todo tipo de resistência manifesta em seus legítimos direitos. Não vou entrar no mérito das várias análises resultantes de estudos e dos projetos com vistas ao encontro da revolução brasileira. Quero tão somente chamar a atenção para um aspecto que me parece justificar essas linhas.

Refiro-me ao único paralelo existente entre as revoluções contemporâneas que a história registra. Ele consiste no fato de que em todas elas, sejam as que foram de cunho burguês ou proletário, todas foram respostas a crises responsáveis pela desestabilização dos governos ou regimes então vigentes, sem falar da brutalidade que se abateu sobre o povo. Basta que o leitor interessado inventarie as origens dessas revoluções e constatará o que digo.

Na história do Brasil situações de tendência revolucionárias existiram no passado, mas as forças sociais capazes de promoverem as mudanças substantivas e profundas ou não reuniam ainda as condições necessárias para a execução de tais mudanças ou, em geral em face dessa impotência acabaram por adotarem a conciliação de classes, e com isso não lograram alcançar os objetivos originais que se propunham.

Se tomarmos ao pé da letra a premissa segundo a qual uma revolução ao instaurar uma nova estrutura social produz uma alternância de classes, no Brasil nenhuma mudança, de fato, ocorreu nesse sentido. O término da escravidão formalmente abolido em 1888 não determinou nenhuma revolução nos extratos de baixo de uma sociedade que manteve e ainda mantém uma cultura escravocrata.

E nos escalões de cima as classes dominantes de antanho permanecem no poder de mando indiferente à sorte das classes subalternas e do próprio país, pois não têm nenhum compromisso com os destinos de uma sociedade que para elas só tem sentido se mantiverem donas daquilo que herdaram como patrimônio como herdeiros da Casa Grande. Levianos e arredios a toda e qualquer mudança mínima que seja, pois temerosos de perderem parte do grande quinhão que possuem, são capazes de infelicitar ainda mais as grandes massas de brasileiros excluídos que são das condições dignas de existência.

E nessa louca e desvairada atitude de se recusarem a reconhecer a imperiosa necessidade de atender aos reclamos de uma imensa população desassistida, acabam por apostar até mesmo em alternativas destituídas de bom senso, como o apoio ao tresloucado capitão da reserva Jair Messias Bolsonaro e o levá-lo arrastando parte considerável de brasileiros desiludidos à presidência de um país que pode estar às portas de mudanças de grande porte. Portanto, da possibilidade real de entrar em cena as condições revolucionárias, porque a antessala das revoluções costuma conhecer como pré requisito situações de abuso das classes dominantes em franco processo de decadência dada a incapacidade de continuar gerindo seu egoísmo.

Não estou a propor que algo nesse sentido está prestes à acontecer, porquanto não depende exclusivamente de dados que estou a apresentar, muito menos de vontade. Até porque as revoluções não obedecem muito a conjecturas, mesmo quando existem evidências que permitam anunciar seu desabrochar. Mas não nos afastemos dessa possibilidade haja vista o entulho histórico que nos remete a identificar como única saída emergencial dessa situação que beira à dramaticidade o advento da revolução.

A grande questão é saber como ela se desenhará e quais os reais protagonistas desse evento cuja tarefa é passar a limpo uma sociedade sistematicamente marcada pela injustiça social e sua reprodução em todos os níveis. Não deve ser uma revolução seguramente similar as grandes revoluções do século XX. Neste sentido, fica descartado o assalto ao poder e a ditadura de um único partido.

Essa revolução tende a ter como pressuposto básico o exercício de uma democracia social, de modo a incorporar todas as possíveis comunidades de interesse de origem popular, de maneira a constituir um poderoso poder popular em condições de implantar a autêntica democracia idealizada pelos mais sensíveis e ardorosos defensores das populações hoje entregues à própria sorte.

Mas, para que essa nova realidade venha a existir é preciso atacar de forma vigorosa a cultura política que presentemente nos governa. Não me refiro apenas ao governo Bolsonaro ou a outros que o venham a substituir com os mesmos propósitos, mas à densa névoa política que com os recursos midiáticos operam para criar a sensação de que o país possa vir a estar ameaçado pelo comunismo. Esta velha narrativa que assusta a comportada classe média, que reage a tudo sob a alegação de que não se interessa por política, porém sempre na expectativa de que um dia possa chegar ao topo de uma pirâmide social fundada na discriminação de todo tipo. Daí, estar a contemporizar os desmandos e a absolver as taras de governos a serviço de interesses contrários ao da soberania nacional e popular.

Com essa atitude de desprezo aos clamores populares, pode ela esperar que o sentido alternativo apontado pelo historiador Caio Prado Jr venha a se transformar numa imensa insurreição a remover de uma vez por toda um passado que insiste em se tornar vivo de modo a manter os que labutam pela sobrevivência em permanente exclusão cristalizada até hoje.


LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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