Por Lincoln Penna

A ordem desses fatores não altera o diagnóstico do governo que sai.

É uma demonstração cabal de como a passagem de Bolsonaro pela presidência desordenou a máquina pública federal. A declaração do vice-presidente eleito e nomeado, Geraldo Alckmin, ao dizer ter ficado chocado com o que foi apurado pela equipe de transição é reveladora da natureza de quem integrou o mandato que ora se finda.

Segundo Alckmin, “(A) impressão que se tinha é de que não havia gestão e que tudo era decidido aleatoriamente”. Para quem se deteve na trajetória política de quem encerra no último dia do ano o mais despreparado governo da República não se surpreende com tamanho acinte aos preceitos básicos da governança republicana. E isto tem uma origem. E esse desempenho uma lógica.

A origem se encontra na ação continuada de reativação dos fundamentos que deram lugar ao golpe de 64, portanto, integra o curso do que se designa de golpe continuado. Seus autores são os eternos conspiradores, alguns dos quais nasceram nos tempos ditatoriais e hoje buscam reintroduzi-los. Ganharam corpo quando mercê de uma articulação engenhosa cujo desfecho foi à criminalização de políticos do PT e da esquerda em geral encontraram alguém para encarnar a represália contra os vitoriosos do processo de derrota do regime ditatorial.

Bolsonaro sai do governo depois de tentar cumprir a missão de resgatar aqueles tempos supostamente incorruptíveis, sob o mando executivo dos militares. Razão para que sua turma exija uma nova intervenção militar, preferencialmente através da reeleição não importando os meios para alcançá-la. Tudo feito de acordo com o figurino dessa gente disposta a reintroduzir as condições que haviam permitido o golpe daquele ano que durou quase uma geração.

A formação militar de Jair Messias Bolsonaro ajudara a exercer esse papel de questionador da ordem constitucional formalizada pela Constituição de 1988.

Afinal, logo após seu desligamento do exército tomou para si o compromisso de defender o legado da ditadura, inclusive aquele referente às ações tenebrosas da gentalha do porão, especializada nas torturas a cidadãos que se opunham à permanência do regime instaurado em 64 e reforçado em seus objetivos em 68 com o A.I-5.

Ao longo de seu mandato de deputado federal, Jair não fez outra coisa senão proferir discursos em homenagens aos mais duros momentos daquele regime neles citando o nome de um oficial militar, coronel Brilhante Ustra, que se destacou pelo uso sistemático da tortura, a quem fez questão de mencionar em sua fala por ocasião da votação nominal do impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Bolsonaro sugere livro do sanguinário Ustra a professora — Conversa Afiada

Assim, o coronel Ustra, citado na ocasião, e relembrado constantemente por ele, em nada pesou para que viesse a ser o “mito” do eleitor desinformado ou então adepto dessa cultura política antidemocrática. Neste caso, para surpresa de muita gente despontou finalmente a extrema direita brasileira até então recolhida e que aguardava uma oportunidade para se manifestar, como sói acontecer às vésperas das ascensões de regimes de cunho fascista.

Se a razão está aí, não deveria estranhar que o cerne da coisa tem muito mais a ver com a perspectiva, ainda que tardia, de um ajuste de contas com esse passado aterrador da ditadura, jamais levado em conta pelas forças democráticas. Talvez, fruto de nossa eterna prática política da conciliação. Daí, a necessidade desses grupos que rodeiam o atual ainda presidente em adotar uma política de desmonte do Estado e, com isso, a arrastar tudo que venha a impedir o trabalho de sua reconstrução. O objetivo é eliminar a ameaça de eventual punição aos que tripudiaram da legalidade e da democracia, seja no passado remoto ou no recente.

Acresce a isso o descaso criminoso da memória nacional, quando um governo não preserva dados relativos às decisões e direcionamento das políticas públicas ou destroem outros tantos em virtude de vinditas e temores de possíveis ações políticas e judiciais. Neste caso, combina o prazer de dificultar o ordenamento da transição governamental com a mais exibicionista demonstração de incapacidade no trato da gestão, indispensável para o interesse público.

A surpresa de Alckmin, que também admitiu nunca ter visto algo assim, ou seja, tamanho despreparo e desleixo na organização de dados que pertencem ao direito da cidadania acessá-los, é tão somente um iceberg, que como tal esconde submerso um imenso oceano de tenebrosas transações nada republicanas. Mas, não basta lamentar essa desarrumação promovida pela desídia, imperícia e ao mesmo tempo desejo incontido de dificultar a arrumação da coisa pública.

É preciso que se denuncie esse estado de coisa desde logo. E isto pode e deve ser feito através de um comunicado via rede nacional para que todos os cidadãos tenham a exata situação em que encontraremos o país, que certamente vai precisar do apoio a medidas de alguma austeridade para sanar esse enorme passivo presente em várias áreas da administração pública.

Nada, rigorosamente nada, deve ser escondido, mascarado, ou mesmo minimizado. Basta de bom mocinho para acobertar mal feitos, muitos dos quais intencionalmente produzidos, com vistas a criar armadilhas de todo tipo para os novos governantes. Para isso, também convém dar a transparência possível ao trabalho realizado pela equipe da transição.

A memória nacional agradece.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


PATROCÍNIO


Tribuna recomenda!