Por Lincoln Penna

Dia 7 de setembro de 2022 completará os 200 anos da independência do Brasil de Portugal.

É uma efeméride, que a exemplo de tantas outras passadas ou a serem registradas em nossa história requer uma reflexão. Têm sido usuais os termos comemoração e rememoração e se eles existem faz sentido explicá-los antes de se enveredar pelos caminhos da análise a dar significado a datas.

Ambos os termos têm a ver naturalmente com memória e a memória não se reduz a um mecanismo de interiorização que cada indivíduo exercita. Aplica-se, sobretudo, quando se investiga os processos sociais e históricos. É, assim, um fenômeno coletivo e como tal objeto das reflexões de quem lida com situações a evocar o uso de tais expressões.

Pode-se dizer de uma forma mais simplificada que enquanto a comemoração é uma construção coletiva a ganhar a benção em sociedades tanto tradicionais quanto mais complexas; a rememoração é originariamente um mecanismo de relembrança individualizada. Contudo, ela pode vir a ser uma releitura geracional de modo à ressignificar o que existe sem contestação.

No ano que precede ao bicentenário da independência vive-se um momento de tensão em face de ameaças veladas à continuidade do arranjo político instituído pela Constituição de 1988. E essas ameaças partem de quem deveria zelar pelo cumprimento da Carta Magna, ou seja, pelo presidente da República.

Acresce a isso o atual governo tem adotado políticas públicas e posturas que tornam o princípio da soberania nacional, pilar de um país independente, lesivas ao país. Fatos se acumulam no sentido de criar sérias implicações quanto ao futuro imediato e seus desdobramentos futuros no instante em que se registra a efeméride do segundo centenário da nação brasileira. Motivo maior de se renovar a preocupação pelo seu destino visando, sobretudo, as próximas gerações.

E mais pode ser acrescido se constatarmos que de parte do governo não há, pelo menos não se tem conhecimento público, nenhuma programação para o bicentenário.

Não fossem as iniciativas do poder legislativo, Senado e Câmara dos deputados em parcerias com entidades da sociedade civil e não teríamos rigorosamente nada para a celebração dessa data. Este é o verdadeiro ato falho de um governo voltado para se deslumbrar com os apetites imperialistas do Tio Sam.

Mesmo não se tendo maiores entusiasmos o fato da independência, sabidamente fruto de um acordo a arrastar uma dinastia que governava Portugal e o seu vice-reino do Brasil, mais do que nunca seria oportuno discutir o significado de nossa ruptura de maneira a nos tornarmos potencialmente livres ainda que formalmente do jugo colonialista. A isto se pode dar o nome de rememoração, fórmula que induz à reflexão e à revisão da memória histórica.

Há outro aspecto que merece discussão. Trata-se da designação da nação brasileira. Afinal, fomos formados enquanto povo a habitar o território atlântico da América do Sul por mais de uma nação. Basta lembrar os povos nativos (indígenas) e as várias nações africanas submetidas à escravidão. A independência trouxe consigo esse legado. Desprezar esse contingente social e tornar a independência coisa de branco de origem europeia é no mínimo uma negação da nossa história.

A independência não foi um ato único e soberano dos descendentes lusitanos. Ela foi marcada por lutas de libertação desses povos, algumas delas simbolicamente representadas pela resistência à exploração e opressão por parte dos escravocratas e desbravadores de comunidades indígenas. Essa realidade histórica só agora tem vindo à tona através de pesquisas e ensaios críticos contrapondo-se ao que já se denominou chamar de história oficial, a dos que não desejam tocar em nossas feridas.

Ao longo do ano que nos separa de um ato de rememoração urge que comecemos a discutir um legado de independência. Ele precisa ser repensado para dotar essas preliminares do bicentenário de elementos para construirmos os passos concretos com vistas a passar a limpo esses duzentos anos de passado escravocrata, de sujeição a interesses contrários aos do povo e das nações brasileiras, sem o que iremos naturalizar todo esse passivo como se não tivéssemos qualquer interesse em revisitá-lo.

Se nós queremos construir uma alternativa desbancando da esfera de poder os velhos mandatários de um Brasil arcaico e ao mesmo tempo moderno, daí a denominação correta de “modernização conservadora” se aplicar; é indispensável tornar clara essa eterna permanência a nos governar. A ruptura pode começar ao se rediscutir o nosso passado. Ele continua muito mais presente do que se pensa.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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