Por Jeferson Miola

A privatização não é apenas uma escolha político-ideológica de economistas e governantes neoliberais/ultraliberais que conseguem impor esta opção ruinosa e lesiva ao interesse público por meio da tirania de maiorias constituídas no Congresso Nacional e nos legislativos estaduais.

Privatizar é, também, um modo de se criar oportunidades de negócios super lucrativos para grupos privados e as finanças.

Em regra, as transações envolvendo bens, serviços e patrimônios públicos são concretizadas em contextos de opacidade, sigilo, negociatas e direcionamentos. E, claro, muita corrupção.

Em A privataria tucana, de 2011, o jornalista Amaury Ribeiro Filho registrou o extenso trabalho de investigação das irregularidades nas privatizações promovidas durante os governos tucanos do Fernando Henrique Cardoso/PSDB [1995/2002].

No livro, Amaury reúne robusta documentação com indícios de práticas ilícitas de políticos, correligionários e familiares que movimentaram milhões de dólares, lavaram dinheiro em paraísos fiscais e receberam propinas e favores pessoais de empresários e de grupos beneficiários das privatizações.

O processo de privatização da CORSAN, a Companhia Riograndense de Saneamento, empresa superavitária e em excelente saúde econômico-financeira que atende 2/3 dos municípios do Rio Grande do Sul, também não foge à esta regra.

Como em outras privatizações tucanas, a entrega da CORSAN ao grupo AEGEA também está envolta em suspeitas de corrupção, desvios e ilegalidades.

Na sessão do Tribunal de Contas do Estado de 20 de julho de 2023, a conselheira Ana Moraes provou que o governo optou por uma metodologia inadequada de avaliação do valor da CORSAN para deliberadamente entregá-la à AEGEA por uma diferença que pode significar alguns bilhões de reais a menos que o valor real que a Companhia de fato vale no mercado.

A essas alturas, com tudo o que já foi descoberto apesar do sigilo imposto pelo governo tucano ao processo, seria pueril acreditar em “mero erro de cálculo” das consultorias privadas contratadas a peso de ouro e sem licitação para modelarem a venda da CORSAN.

Se trata, na realidade, de dolo; do propósito efetivo de lesionar o Estado para beneficiar o grupo AEGEA.

A conselheira Ana Moraes deixou isso muito evidente. Ela destacou que o governo Leite já conhecia o desempenho financeiro real da CORSAN pelo menos desde outubro de 2022, com base no balanço do 3º trimestre daquele ano, então já publicado.

Mesmo assim, no entanto, o governo publicou o edital do leilão em 29 de novembro de 2022 – portanto, mais de um mês depois de conhecer a real situação econômico-financeira da CORSAN – “sem as correções das projeções das modelagens para fixar o valuation e o preço de referência para a formação de lances no leilão”. Decerto por isso a conselheira tenha recomendado a investigação do escândalo também pela Polícia Civil, além de outros órgãos.

Um escândalo de proporções bilionárias como a privatização da CORSAN não se concretiza sem associações indecorosas do público com o privado e sem a existência de uma engrenagem midiática, tecnocrática e institucional viciada por objetivos financeiro-empresariais.

A privatização da CORSAN é um roteiro de cinema sobre a corrupção intrínseca a processos de privatização, com seus negócios obscenos e ligações indecorosas.

Começa com a ilegalidade do único grupo disputante – AEGEA – participar do leilão, pois como participante de parceria público-privada com a CORSAN, detinha informações privilegiadas.

As consultorias contratadas para subavaliarem o valor de venda da CORSAN são um capítulo relevante. A Alvarez & Marsal [A&M], por exemplo, na qual trabalhou o ex-juiz suspeito e ainda senador Sérgio Moro, prestou serviços simultaneamente para a CORSAN e para a AEGEA. Outro caso escabroso é o do sócio fundador de uma consultoria privada, que ganhou R$ 5 milhões, e que é irmão de um diretor da AEGEA.

No roteiro deste escândalo cinematográfico não poderia faltar, claro, o envolvimento de certos procuradores. No caso concreto, trata-se de suspeitas em relação ao procurador que foi chefe do Ministério Público Estadual no período em que, segundo o SINDIÁGUAS, foram arquivados todos questionamentos sobre a venda da CORSAN.

Sintomaticamente, o então procurador Fabiano Dallazen comunicou sua exoneração do MP em 7 de dezembro de 2022 e, duas semanas depois, quando do leilão da CORSAN em 22 de dezembro, ele já tinha passado pela porta giratória em modo automático para figurar no seleto clube de “barões do saneamento”, ou seja, Diretor da AEGEA.

O presidente do TCE fecharia o filme mostrando uma dimensão miserável da política. O irmão gêmeo dele é Diretor do BANRISUL, o banco controlado pelo governo estadual.

Apesar da dimensão cinematográfica do escândalo da CORSAN, é estarrecedor o déficit informacional causado pelos grupos dominantes da mídia, que escondem toda crítica ou denúncia sobre esta lesão bilionária causada ao erário.

A história do TCE/RS, assim como seu futuro, está em jogo.

Caso a maioria de conselheiros do TCE – formada por ex-deputados do MDB, PTB e PP –exerça a tirania da maioria e decida politicamente chancelar a privatização da CORSAN sem observar critérios técnicos e legais, o Tribunal estará espezinhando todos princípios da ética, probidade, legalidade e da moralidade pública e estará dando, também, um passo significativo rumo à sua absoluta inutilidade social, institucional e republicana.