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Portas Abertas – por Antonio Veronese
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Portas Abertas – por Antonio Veronese

Por Antonio Veronese –

No `Portas Abertas` o povão, aquele que muita vez não tem nem pra comer, encontraria sempre escancaradas as portas  do supermercado cultural!

A violência carioca é fruto de reiteradas incompetências, mas entre elas destaco a incapacidade crônica do Estado na distribuição de cultura. Quando observo o perfil predominante entre vítimas  e algozes da nossa guerrilha urbana, constato que a imensa maioria deles é de formação indigente. A violência é, sobretudo, uma patologia das ignorâncias.  

Tenho uma experiência comovente de como a cultura  pode resgatar meninos em situação de extremo risco: durante dez anos ensinei pintura a óleo e levei música de qualidade para o interior de presídios de menores no Rio e em Brasília. Oferecia, para esse segmento catastrófico da pirâmide social, produtos que normalmente são de consumo exclusivo das elites.  

A catarse que isso provocava era arrebatadora! Meninos  que tinham como fonte única de expressão o funk com suas temáticas de intolerância e violência, transformavam-se  como que por milagre em dedicados aprendizes de pintura a óleo, ouvindo  João Gilberto e Claude Debussy. 

Meninos durões, protagonistas de crimes graves, soldados do tráfico e assassinos,  pareciam arrebatados quando apresentados, por exemplo, à sala de pintura do século XIX do Museu Nacional de Belas Artes, ou ao balé Lago dos Cisnes no Teatro Municipal. E os resultados dessa imersão em atividades culturais, desse ´tratamento de choque´, eram  surpreendentes:   queda a zero da violência intergrupo,   aumento da auto estima revelado pela melhoria da higiene pessoal, diminuição das penas por reavaliação do risco social… Cultura resgata!

Quando falo em cultura, falo de cultura  humanista greco-romano-europeia, mas também das manifestações criativas dessa terra brasilis,  fonte inesgotável em  formar gente  e transformar destinos. Falo também do nosso primeiro time de compositores, pintores, poetas e escritores, músicos e cantores, não dos chinfrins sertanejos da televisão transformados por inércia do Estado e marketing impositivo em ídolos nacionais. 

Num país em que a escola para os pobres  deixa a desejar, a cultura pode atenuar as  sequelas de  uma geração inteira gravada por carência aguda na sua formação intelectual.  É um recurso emergencial, simplesmente porque é muito mais sedutora e exequível do que o resgate pela educação tardia… É mais fácil fazer um adolescente semianalfabeto interessar-se por Tom Jobim e Guimarães Rosa, do que  por raiz quadrada e análise sintática. Cultura, em situações extremas e pontuais, é a mais resgatadora  de todas as ferramentas sociais. 

Havia uma esperança que um governo do PT pudesse diagnosticar essa carência e prescrever tratamento adequado: distribuir não somente renda, mas também cultura! E ainda que sejam inquestionáveis  os extraordinários avanços da escola pública e do acesso às universidades sob os  governos do PT,  infelizmente, até onde chegamos, não se pode dizer o mesmo no acesso à cultura, e isso é uma expectativa que guardo em mim..

As elites  independem da proficiência do Minc para ter acesso à  cultura…As elites podem comprar um DVD de Nelson Freire, ver um balé russo no Municipal, o show de Chico no Canecão ou  Marieta Severo num teatro da zona sul. O povão, infelizmente, não pode! O povão consegue no máximo ter acesso à cultura popular, ao folhetinesco, ao circo macunaímico das manifestações espontâneas cada vez mais manipuladas pelo marketing e esvaziadas de autenticidade. Ou, o que é pior, fica restrito ao pastiche da televisão com seus falsos ídolos fomentados a jabaculê.. 

Para ter direito a um cardápio mais sofisticado, o povão depende de estratégias mais abrangentes que são função e responsabilidade do Estado, mesmo quando patrocinadas por recursos privados.  Um governo popular tem que priorizar o atendimento à imensidão de párias das comunidades carentes, como num pronto-socorro onde se prioriza o atendimento aos pacientes mais graves… Se os recursos são limitados, há que se atender primeiro a quem precisa mais! Socializar a distribuição!

Para não apenas criticar, trago aqui uma proposta  ao debate. Se  a violência urbana é subproduto da ignorância, e se as comunidades carentes  são  metástases deste mal, por que não invadi-las com cultura!? Cultura como política de segurança pública!! E isso, acreditem!,  pode ser feito sem se gastar muito. Por exemplo; há anos escuto que a Orquestra Filarmônica do Rio de Janeiro, (da qual tive a honra de  ser diretor nos anos 90),  tem dificuldades para custear seus ensaios. Por que não financiá-los desde que os ensaios  sejam feitos, por exemplo,  dentro da Rocinha?Apresentar Mozart a crianças subnutridas de música. Por que não pagar seus ensaios, desde que eles aproveitem a um segmento social tão carente? 

Por que não financiar dentro da comunidade,  concomitantemente,  o aprendizado de instrumentos sinfônicos, coordenado pelos próprios músicos da Filarmônica? A possibilidade de ensaiar e ensinar tendo um suporte financeiro mensal daria aos músicos uma tranquilidade que  se refletiria na própria qualidade da orquestra. 

A esse projeto, que  poderia chamar-se   “Portas Abertas” ,  toda a comunidade  teria acesso, livremente… Derrubar as portas que separam os pequeninos da Rocinha ( e de outras comunidades) de Mozart, Debussy, Villa Lobos, Guarnieri, Carlos Gomes, Chiquinha Gonzaga, Guerra Peixe, Francisco Mignone ..Escancarar as portas para oxigenar sítios urbanos intoxicados pelo tráfico, a violência e a exclusão…

Porque não financiar também, dentro dessas comunidades, ensaios de teatro?  O custo disso é mínimo!  Por que não expor as entranhas de um ensaio teatral, com toda sua complexidade e beleza, à gente humilde do morro que não tem acesso aos  teatros da zona sul? Imaginem que extraordinária utopia dar aos meninos da Maré, como programa de fim de tarde,  Fernanda Montenegro dirigida por Gerald Thomas? A expertise aí reunida é insuperável e, hoje em dia,  absolutamente inacessível  a esses pequeninos… E que experiência única para os artistas!!

O Portas Abertas estaria aberto também à difusão da literatura entre os mais carentes. Escritores, com cachês pagos pelo Estado, poderiam apresentar e discutir ali seus livros… Imaginem se João Ubaldo pudesse ter ido Pavão Pavãozinho  dividir sua  inteligência e criatividade. Imaginem  esse cardápio de iguarias acrescentado ao  repasto frugal cotidiano da nossa  escola pública!

No Portas Abertas o povão, aquele que muita vez não tem nem pra comer, encontraria sempre escancaradas as portas do supermercado cultural ! Esse projeto poderia ser financiado pelo Minc, pela Petrobrás,  ou pela iniciativa privada. Alô Coca-Cola…Tenho certeza que uma iniciativa deste tipo, em dez anos, se refletiria nos gráficos censitários da violência e que meninos alimentados por esse substancioso ragú cultural, seriam menos agentes e vítimas da violência.

Que maravilha ainda, se os personagens brutalizados do tráfico,  hoje únicos heróis disponíveis para pequeninos das comunidades carentes , passassem a sofrer concorrência de gente da  pesada como Ariano Suassuna, Francis Hime, João Gilberto, Arnaldo Cohen, Rodrigo Pederneiras, Ana Botafogo, Manoel de Barros, Adélia Prado, Sérgio Brito,  Machado de Assis, Monteiro Lobato…

Eu tenho esse sonho. E, apesar de tudo, ainda ouso sonhar.

ANTONIO VERONESE – Pintor brasileiro autodidata com uma obra considerável, realizou centenas de exposições individuais, tem obras expostas em numerosos museus, coleções públicas e privadas nos Estados Unidos, Suíça, França, Japão, Chile e Brasil. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre, representante e correspondente internacional em Paris, França; Radicado na França desde 2004, antes de deixar o Brasil deu aulas de arte para menores infratores nos Institutos João Luiz Alves, Padre Severino e Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e no Caje de Brasília. Utilizou a pintura como forma de reabilitação psico-pedagógica dos adolescentes entre 12 e 18 anos com a bandeira” estética é remédio!”. Alguns dos trabalhos produzidos pelos jovens foram expostos em Genebra (Suíça), no Salão Negro do Congresso Nacional, em Brasília, e na Universidade de San Francisco, nos Estados Unidos. Em 1998, representando o Brasil no Encontro de Esposas de Chefes de Estado, cobrou da então primeira-dama, Ruth Cardoso, medidas para tirar das ruas crianças abandonadas, tendo recebido o apoio de Hilary Clinton. Pela denúncia da violência contra menores no Rio de Janeiro, que faz através de sua pintura e de engajamento constante deste 1986, Veronese foi convidado à Comissão de Direitos Humanos da ONU – em Genebra, para proferir palestra, lá causou grande indignação ao apresentar fotografias de 160 crianças, marcadas por cicatrizes massivas decorrentes da violência urbana, doméstica e policial.

www.antonioveronese.com

Antonio Veronese, Italian-Brazilian painter, lives in France since 2004. He is the author of «Save the Children», symbol of th e 50th anniversary of the United Nations, and «Just Kids» symbol of UNICEF. As well of «La Marche», exhibited in the Parliament of Brazil since 1995, and «Famine», exhibited since 1994 at the Food Agriculture Organization for United Nations (FAO) in Rome.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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