Redação

Uma portaria editada nesta terça-feira (17/3) pelos ministérios da Justiça e da Saúde prevê que o descumprimento de algumas medidas para evitar a proliferação do coronavírus será considerado conduta tipificada em artigos do Código Penal.

Como a tipificação está sendo feita por ato normativo secundário — inclusive com emprego de força policial —, a ConJur ouviu a opinião de juristas acerca de eventuais problemas na portaria.

Condutas tipificadas
Tais medidas são: isolamento, quarentena e determinação e realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos.

Elas constam da Lei 13.979/20, editada justamente para enfrentar a situação de emergência em saúde pública decorrente da pandemia. Segundo o diploma, a providência de isolamento se refere a pessoas que já estão contaminadas por coronavírus, o que a difere da quarentena, aplicada a quem está com suspeita de contaminação.

Mas a lei não menciona “crime”; seu parágrafo 4º do artigo 3º apenas prevê que o descumprimento das medidas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei.

Coube à portaria, então, a previsão de que o descumprimento dessas medidas configuram as condutas tipificadas pelos artigos 268 e 330 do Código Penal. Que versam, respectivamente, sobre “infração de medida sanitária preventiva” (detenção, de um mês a um ano, e multa) e “desobediência a ordem de funcionário público” (detenção, de 15 dias a seis meses, e multa).

Norma penal em branco
No Direito Penal, a maioria das normas são “completas”, pois descrevem condutas típicas e possuem preceitos e sanções. Assim, podem ser aplicadas independentemente de serem complementadas por outras. Mas há exceções, conhecidas como “normas penais em branco”. Elas contêm preceitos genéricos, indeterminados; portanto, não podem prescindir de complementação por outras normas. A discussão, portanto, é se os artigos 268 e 300 do CP sem enquadram nessa exceção.

Para Thiago Bottino, professor da FGV Direito Rio, a portaria prevê uma pena para quem desrespeitar medidas sanitárias já existentes desde 1940, quando o Código Penal atual foi criado. Segundo ele, então, a portaria complementa os tipos do CP. Ela não estaria criando um crime, mas apenas estabelecendo uma medida sanitária. “Não há nada de errado no texto”, diz.

Já para o advogado criminalista Alberto Zacharias Toron, a portaria apresenta problemas, pois jamais poderia criminalizar, ela mesma, o descumprimento do que quer que seja. Assim, o ato normativo, para ele, viola o princípio da legalidade, previsto pelo inciso XXXIX da Constituição. “Como consequência, a polícia só poderia ser empregada se houvesse crime; nunca em virtude do descumprimento de regras médico-sanitárias”, afirma.

“A lei não fala em crime. Norma penal em branco existe quando a lei remete a uma portaria ou outro dispositivo administrativo, como a lei de drogas, que se vale de uma lista elaborada por órgão administrativo”, acrescenta.

Para o criminalista Matheus Rodrigues Correa da Silva, existe uma violação ao postulado da taxatividade. Afinal, a portaria não se limita a definir o que é “ordem legal de funcionário público” (art. 330 do CP) ou “determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa” (art. 268 do CP), chegando a determinar a incursão em um dada sanção penal.

A constitucionalista Vera Chamin discorda. Para ela, a portaria apenas disciplina a lei. “Portanto, na verdade não é ela [a portaria] que criminaliza, e sim a Lei 13.979/20, que, por sua vez, se compatibiliza com o artigo 268 do Código Penal”, afirma.

Outros crimes
Sylvia Urquiza, especialista em Direito Penal e sócia do Urquiza, Pimentel e Fonti Advogados, afirma que o Código Penal brasileiro traz também outros dois crimes que devem ser observados: o perigo de contágio de moléstia grave e o perigo para a vida ou saúde de outra pessoa.

“O primeiro, que tem pena de reclusão de um a quatro anos e multa, criminaliza qualquer ato que tenha como intenção o fim de transmitir a terceiro moléstia grave de que está contaminado. Já o segundo,
com pena de três meses a um ano, dispensa a intenção e criminaliza qualquer ato que, por si só, coloque a vida ou a saúde de outra pessoa a perigo direto e iminente”, explica.

Incômodo constitucional
Segundo Matheus Rodrigues, há ainda um problema de ordem política. Isso porque o PL 23/2020, que resultou na Lei nº 13.979/2020, foi de iniciativa da Presidência da República, e não continha nenhuma referência à penalização das condutas. “Ocorre que o mesmo Poder Executivo Federal optou por editar a portaria que penalizava as condutas. Ou seja, optou-se por criar uma norma penal em branco em sentido estrito (que remete a um ato administrativo) quando se poderia ter feito uma norma penal em branco em sentido amplo (que remete a uma outra lei formal), o que geraria muito menos incômodo sob o ponto de vista constitucional”, afirma.

Política pública
Independentemente da legalidade e constitucionalidade da portaria, Bottino entende que a portaria tende a ser inócua, pois as pessoas não podem ser presas. “Elas serão levadas a uma delegacia, para assinar um termo circunstanciado de comprometendo a comparecer a um juizado especial criminal futuramente, em que no máximo haverá uma multa, prestação de serviço, cesta básica”, explica.

“Acho que tem um efeito mais político e simbólico do que jurídico. A campanha de informação para as pessoas ficarem em casa é muito mais pertinente do que uma medida de natureza penal. Até porque sabemos que será muito pouco eficaz”, complementa.

O criminalista e mestre em Direito Penal e Processual Penal, Daniel Gerber, avalia que o descumprimento das medidas gera a possibilidade de prisão em flagrante. Para ele, fica sem dúvida alguma a autoridade policial autorizada pela própria lei a interceder da forma correta, prender o cidadão e dar-lhe o encaminhamento devido”.


Fonte: ConJur