Por Lincoln Penna

Já é tempo de nos darmos conta do quadro político brasileiro a revelar a sua mais reveladora identidade.

Vivemos de uns tempos para cá com uma manifestação política que se encontrava até então adormecida. Envergonhada de sua existência, dado o receio de se expor com toda a sua intensidade manteve-se mascarada. Estou a falar do fenômeno político que melhor traduz a nossa história cruenta, violenta, de cunho escravocrata, intolerante e profundamente reacionária, expressa mais recentemente no bolsonarismo que galgou a esfera do governo e ameaça a frágil democracia que temos.

Em nossa história política republicana não faltaram exemplares filiados a essa tendência reacionária. Não me reporto aos conservadores que cultivavam o espírito democrático, mas aqueles que representaram uma direita avessa a toda e qualquer mudança, tementes que eram e são de qualquer transformação que venha a afetar os seus interesses e aos seus valores tradicionais. E essa ideologia própria das classes dominantes brasileiras se tornou dominante como sói acontecer com as ideologias das classes dominantes.

Mas, o que se tem presentemente no cenário político a partir especialmente da ascensão de Bolsonaro e seus mais fervorosos adeptos é algo que anuncia que dias piores teremos pela frente, pois é a mais nova expressão da fornalha fascista que precisa ser reconhecida pelos democratas. O termo fascismo não é um adjetivo para qualificar a irrupção desse animal político mais recente. É um fato do qual não se pode mais silenciar se quisermos manter vivo os valores civilizatórios.

A história do Brasil não conheceu extensas guerras civis e tampouco revoluções a provocar profundas rupturas, senão poucas mudanças progressistas e muitas regressistas, sem, no entanto, alterar radicalmente as estruturas em vigor. A contemporização e a prática contumaz da conciliação têm se mantido como um legado atravessando gerações, não obstante o surgimento de lideranças populares em meio à mesmice de sempre e a ocorrência de insurgências populares que tem resistido à opressão a sua maneira.

No momento em que escrevo essas linhas estão sendo constituídas no Legislativo comissões parlamentares de inquéritos para tratar dos mais diferentes objetos a serem investigados nas casas legislativas, Câmara e Senado. Em paralelo a votação do novo marco fiscal, o já conhecido projeto do governo do Arcabouço a suscitar críticas de dentro e de fora do governo. Se as CPIs são prerrogativas do Poder Legislativo a proliferação dessas iniciativas – direito das oposições – tem, no entanto, um único objetivo: a paralisia do governo. E num caso específico com indisfarçável teor ideológico, a do MST.

A tão propalada democracia que lhes interessa a ponto de alguns dos membros da oposição bolsonarista designar os golpistas de manifestantes com direito ao exercício da liberdade de expressão, no caso das ocupações do MST que encontram amparo nos termos da Constituição são consideradas invasões injustificáveis e, portanto, sujeitas a serem enquadradas como crimes contra o patrimônio particular. Discurso que encontra guarida na mídia que reproduz essa narrativa. Quanto aos grileiros, estes sim invasores, nada se fala, seja por ignorância ou por não interessar que esses personagens venham à tona nos noticiários politizados.

O que deve nos alertar para o expediente de uma oposição centrada unicamente em acusações pueris, sacadas de um balaio constituído de afirmações sem fundamento na realidade dos fatos é exatamente estarmos diante de um quadro moldado para reafirmar o conteúdo ideológico de seus acusadores. Escorados em mentiras fabricadas ou distorcidas criam o ambiente favorável para reacender o golpe, única possibilidade que enxergam para impedir ou turvar o governo Lula desde o seu início de mandato.

Porém, o alerta se estende a termos a percepção de que há os ideólogos do caos que são precisamente os engenheiros encarregados de introduzirem os alicerces de uma nova experiência do fascismo. A quantidade de pequenas organizações nazifascistas no território brasileiro pode ser vista com algo alegórico, mas foi desta maneira que os regimes na Itália e na Alemanha, nas décadas de 1920 e 1930, irromperam embalados pela descrença na política e nas instituições abaladas pela Grande Guerra de 1914 -1918.

Ter clareza dos intuitos dos que integram essas forças antidemocráticas que iludem a boa-fé de muita gente é tão necessário quanto o ar que respiramos. Isto me faz de novo recordar o educador Paulo Freire para quem a educação enquanto formação de cidadania incomoda aos que não tem interesse em promover o bem-estar do povo porque para isso teriam de ceder os seus imensos privilégios patrimoniais.

Nós não conhecemos guerras que tivessem devastado o nosso país de modo a rebaixar a autoestima de nosso povo. Todavia, temos conhecido processos de exclusão social regulares suficientes para abalar as esperanças de amplas parcelas do povo, situação a gerar combustível para ser aproveitado por falsos patriotas que agem com o intuito de arrebanhar os incautos para a implantação de um regime que se abastece dos métodos e práticas similares às do nazifascismo. Por isso vale uma breve digressão sobre presença desse animal político entre nós. Voltemo-nos à política.

A política enquanto intervenção nas questões que envolvem os membros de uma sociedade é operada pela visão de mundo que cada classe social possui necessariamente. Quanto à ideologia ela é a representação dessa visão de mundo por parte das classes dominantes que a impõe de certa forma ao conjunto das demais classes. Neutralizar essa imposição através do recurso da verbalização extremada é agir exclusivamente no âmbito do embate ideológico, que só interessa às classes dominantes, que o desqualifica a partir dos meios de comunicação sob o seu controle.

O emprego de um discurso baseado no que Marx denominava de fraseologia aplicado nos debates políticos só presta para reafirmar convicções, mas costuma estar desfocado da realidade em questão. Mesmo que tal atitude revele uma contundente negação da ordem política existente, ele não consegue congregar os que potencialmente podem vir a superá-la para que em seu lugar se implante um modo de vida que possa representar e traduzir a vontade geral de um povo.

A ideologia entendida como uma leitura pertinente a uma classe se encontra incorporada ao nosso ser. Em razão desse conceito a atribuir a cada classe uma dada ideologia, seja ela pertencente às classes dominantes ou as classes dominadas ou subalternas, o fato é que em ambos os casos ela formata a nossa visão de mundo, mesmo que não nos demos conta de sua existência como parte do que somos. No caso da política ela está presente porque estamos envoltos nas relações sociais que são de cunho político e nos faz integrar às atividades comunitárias ou societárias, e enfim no mundo.

A ideologia nesse sentido está entranhada de tal forma que não é possível desapegar dessa situação que carregamos em nossas vidas. Somos parte integrante de um universo que define a classe a que pertencemos. No mundo moderno esse fato se dá no mundo dos que detém os meios de produção ou dos que vendem a sua força de trabalho. E isto ocorre nas grandes metrópoles ou no campo.

Todavia, esse pertencimento às nossas origens sociais não é algo a reproduzir mecanicamente os valores que nele se fazem presentes. É possível com a leitura do mundo desenvolvermos uma perspectiva crítica e dele se desapegar mediante o conhecimento da realidade e o comprometimento com valores que nem sempre são cultivados pelos que integram aquele nosso universo de origem.

Ter essa compreensão é importante para que saibamos, penso eu, combinar ideologia e política. De tal maneira que as ações no âmbito da vida social se façam mediante o conhecimento das realidades concretas. Lançar mão de meras fraseologias doutrinárias para dar impulso às ações políticas é um contrassenso. Visam mais reforçar ideários assumidos do que interferir inteligentemente no mundo político.

O que é ideologia? | Politize!

Esse problema tem sido evitado por quem se situa no campo das esquerdas que são, como se sabe, vocacionadas para promoverem as grandes e necessárias transformações, mas que estas começam com a prática do exercício da autocrítica sem a qual os agentes dessas mudanças de profundidade não superam essas fragilidades, muitas das vezes tidas como virtudes de quem esposa uma convicção revolucionária.

A convicção ideológica é um elemento inerente à formação do cidadão consciente de seu papel na sociedade, mas a sua conduta no cotejo das disputas políticas não pode dispensar a leitura da dinâmica que preside os processos sociais e políticos a partir dos quais se deve interagir com os demais cidadãos igualmente portadores de suas visões de mundo oriundas de sua origem de classe e perseguir caminhos que nos levem à combater os nossos males de origem, geralmente perpetuados pela ideologia dominante.

Sim, se somos portadores do instinto político e trazemos conosco certos valores que configuram a nossa visão de mundo estamos sujeitos as intercorrências que se manifestam nas relações sociais. Isto não é um problema, todavia cabe refletir sobre situações embaraçosas diante das quais é preciso lançar mão de uma dose de racionalidade. Do contrário, essa carga que incorporamos pode vir a dificultar as soluções de impasses corriqueiros na vida em sociedade.

A formação de consensos em determinados momentos nada tem a ver com conciliação de classes. É uma imposição de situações que transcendem as conveniências de classe porque dizem respeito a contingências comuns a serem enfrentadas conjuntamente, sem prejuízo dos enfrentamentos futuros decorrentes da própria existência das contradições entre os que se batem na disputa pela hegemonia.

Se os conflitos sociais são inerentes em sociedades desiguais ou mesmo plurais do ponto de vista étnico-cultural, agir inteligentemente com base no que dita o nosso comportamento como seres políticos embasados em visões de mundo quase sempre distintas, senão divergentes, exige discernimento. Este nada mais significa do que ter a capacidade de negociar saídas que evitem os confrontos violentos, graus mais elevados dos conflitos que são comuns nesses casos. O confronto sistemático não está confinado ou recluso a uma só forma de luta. Por vezes a decisão de esgotar negociações pode vir a ser mais útil e válida do que a permanência saturada do enfrentamento pelo enfrentamento. Saturação esta que atinge mais diretamente as classes subalternas já profundamente atingidas pela violência diária.

As lutas de classes não devem ser entendidas como um embate com vistas ao expurgo de quem não comunga com ideários dos quais nos valemos, e nem pode fazê-lo porque têm valores que não se coadunam com outros. Trata-se de um embate que se processa no campo das ideias. Em certas etapas dessas lutas, dado o estágio em que se encontram esses confrontos de maneira a atingir fases mais agudas, o emprego de recursos mais violentos acaba ocorrendo. Contudo, é possível conviver com graus acentuados de disputas dentro de determinados padrões de coexistência, de modo a priorizar a argumentação e a força da persuasão.

E essa possibilidade de conduzir as lutas de classes dentro de um mínimo de civilidade é um desafio ainda não alcançado e, segundo os mais céticos ou sectários, jamais chegaremos a essa situação. O próprio aprofundamento das contradições num mundo cada vez mais desigual e excludente para a maioria dos seres humanos, tende a impedir objetivamente que essa possibilidade venha a presidir as futuras disputas enquanto as sociedades de classes entravarem a superação de nossa pré-história.

O sectarismo e a intolerância maculam a ação política e servem apenas para a reafirmação das convicções de quem as praticam. As duas atitudes radicalizam não os seus fundamentos, mas acabam por implementar o extremismo como meio de reafirmação de seus propósitos. Daí, a diferença entre radicais e extremistas geralmente tidos como semelhantes. Essas duplas atitudes empobrecem os valores que seu portador julga sustentar nas polêmicas travadas por vezes em troca de ofensas que acabam sendo mais pessoais do que doutrinárias ou filosóficas.

Mas, atenção! Há certos momentos em que o imperativo da racionalidade dá lugar às transformações que derivam de um processo social a exigir uma tomada de posição. Vejamos no caso das revoluções ou mais precisamente em suas etapas pré-revolucionárias. A racionalidade aparece para dar o rumo certo visando sua realização de maneira a admitir avanços mais decisivos bem como recuos que venham a garantir o êxito do processo revolucionários.

E isso se aplica independentemente das formas assumidas por uma revolução, seja ela responsável pela remoção de estruturas arcaicas, sejam científicas ou tecnológicas, o que importa é todas elas passam pela ação política. Contudo, as primeiras ao superarem as estruturas e a darem lugar ao socialismo, por exemplo, têm um caráter necessariamente revolucionário diante dos obstáculos interpostos pelas classes dominantes da esfera capitalista. E cada um dos exemplos acima citados enfrenta obstáculos que vão do preconceito a fórmulas inovadoras no tratamento de enfermidades e reações virulentas diante da aceitação de comportamentos sociais tidos como desviantes.

Os protagonistas dos embates políticos e ideológicos que buscam compreender a cultura política em vigor têm mais aptidão para um desempenho mais bem-sucedido no confronto com os seus oponentes no campo das ideias. Ignorar essa referência torna a querela das ideias ainda mais alienante. Nestes casos, evade-se da realidade sobre a qual devem ser travados os enfrentamentos e toda a discussão acaba evocando realidades outras em face de meras citações calcadas em argumentos de autoridade. Este tem a finalidade de legitimar as pregações de quem tem a necessidade de reforçar as suas fundamentações, sobretudo quando elas não estão escoradas na realidade da qual se deve ter como base sobre a qual se discutem as teses e proposições direcionadas para saídas em face de impasses que nos atormentam.

No espectro da direita, os argumentos se voltam para as sociedades que se julgam superiores e, por isso mesmo, modelos para serem tomados como referência, da mesma forma que o passado é cultuado para fazer valer o imobilismo e suscitar a necessidade de se conter os processos transformadores. Já no que se refere à esquerda o apelo a ícones revolucionários por vezes está escorada na incapacidade de apreensão das realidades de seu tempo. Daí a evocação aos grandes protagonistas das revoluções contemporâneas, como se essa evocação significasse a reprodução de situações que projetaram tais celebridades de experimentos revolucionários que não existem mais.

Já a extrema-direita não tem como referenciar, porque se vale da violência para inibir qualquer processo contraditório de ideias. É o caso do fascismo, sua mais completa expressão. Não há como dialogar com quem se recusa a aceitar opiniões que contestem as suas crenças absolutas e reativas a toda e qualquer crítica. Desse modo, essa digressão evidentemente não se aplica a esse fenômeno político que reduz a política a um manto sagrado porque suas concepções são julgadas superiores e, portanto, do ponto de vista deles incontestáveis.

Vivemos no Brasil um momento político no qual a preservação do espaço democrático assim entendido como o lugar da prática do contraditório entre as forças políticas deve ser o objetivo de quem deseja dotar os embates da prevalência do diálogo, mesmo por vezes impertinentes. E ter claro que com o fascismo não há como se dialogar, uma vez que o fascismo é a própria negação da política. E é no jogo das contradições políticas que se afirmam ou não os princípios normativos de cunho propositivo.

Seus métodos de ação e suas práticas supostamente políticas visam destruir os nossos valores civilizatórios, que estão a essa altura acima das classes sociais, mesmo que cada qual tenha uma avaliação distinta com vistas à preservação desses valores. O fascismo é destruidor e faz desse impulso a sua razão de ser.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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