Redação

“Fiquei muito feliz com a decisão, principalmente pelo reconhecimento do gênero não-binário. Essa pauta não é nova, mas só agora está sendo ouvida pelas pessoas. Precisamos muito que a Justiça brasileira entenda as nossas pautas e as nossas necessidades. Acredito que a sentença tenha sido um importante passo.”

O depoimento é de Céu, de 23 anos, que conquistou, na semana passada, o direito à retificação de prenome e alteração do marcador de gênero em registro civil para não-binário. A decisão proferida na Comarca de Corrente (PI) é a terceira do tipo no país e a primeira em todo o Nordeste, de acordo com a Defensoria Pública do Estado do Piauí – DPE-PI.

Desde a pré-adolescência, Céu percebeu que não se identificada com seu sexo biológico, feminino. A partir dos 14 anos, passou definitivamente a usar roupas masculinas. Entende-se, então, como pertencente ao gênero não-binário, ou seja, que não se identifica como homem ou como mulher.

Constrangimento no dia a dia

Na Justiça, Céu sustentou que o nome feminino registrado em sua certidão de nascimento e carteira de identidade provocava grandes transtornos, já que não condiz com sua atual aparência. Buscou a Defensoria do Piauí após negativa do cartório para alteração de nome e gênero em registro.

Em entrevista ao Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, Céu conta que a ação foi motivada pelo constrangimento do dia a dia ao apresentar carteira de identidade com o nome antigo e gênero que não lhe representa. Também pretende passar pela mastectomia masculinizadora e precisa dos documentos retificados para apresentar ao plano de saúde.

“O mundo é binário, foi construído de forma binária. Até se entender como não-binário é complicado”, comenta. A satisfação ao receber a resolução favorável na Justiça do Piauí foi a de quem finalmente teve sua voz ouvida. “Espero que a decisão consiga ajudar mais pessoas não-binárias a retificar tanto o prenome quanto o gênero.”

Perspectiva contemporânea de gênero

Em sua análise do caso, o juiz Igor Rafael Carvalho de Alencar observou: “Segundo a perspectiva contemporânea de gênero, a questão de ser homem ou mulher não mais se restringe a uma característica genética ou genital, não se limita a ser ou não natural; relaciona-se mais estritamente à persona que o indivíduo adota no seu contexto social e na cultura”.

Para o magistrado, restou comprovado que a alteração do prenome não objetiva descumprimento de obrigações. A incompatibilidade do que consta em registro gerava situações públicas constrangedoras, a exemplo do tratamento como mulher nas relações profissionais e comerciais.

A modificação do nome e prenome é admitida em casos excepcionais, como no caso em tela, em que ficou evidente o sofrimento causado. “O Direito não pode permitir que a dignidade da pessoa humana seja violada sempre que ostentar documentos que não condizem com sua realidade física e psíquica.”

Igualdade e dignidade

A ação foi ajuizada quando o defensor público Eduardo Ferreira Lopes era titular da Defensoria Regional de Corrente, no Piauí. Hoje, é titular da 4ª Defensoria Pública de Floriano, no mesmo estado. Em entrevista, ele comemora a decisão conquistada como um importante passo para lutas contemporâneas.

“A importância dessa decisão é que segue como um grande avanço no combate à agressões à comunidade LGBT, reforçando o princípio da igualdade e dignidade da pessoa humana”, afirma Eduardo. Segundo ele, a retificação de registro civil em casos como esse já deveriam ocorrer pela via extrajudicial, uma vez que existem resoluções do Conselho Nacional de Justiça – CNJ regulamentando o assunto.

Precedente de destaque

A defensora pública Sheila Andrade, membro da diretoria do IBDFAM Piauí, também comenta a decisão. “O reconhecimento do nome social é um direito daqueles que lutam, dentre outras coisas, contra o constrangimento de ser chamado pelo nome que representa um gênero com o qual a pessoa não se identifica”, ressalta Sheila.

Para a defensora pública, foi gerado um precedente de destaque, especialmente pelo fato de que não foi preciso recorrer ao Tribunal de Justiça do Piauí – TJPI. “A decisão mostrou que cada vez mais os juízes de primeiro grau estão sensíveis e atentos às questões de gênero. Não mais se precisa recorrer necessariamente às instâncias superiores para conseguir sagrar-se vitorioso em suas demandas.”

O respeito à diversidade é um caminho que tem sido seguido no ordenamento jurídico brasileiro, segundo Sheila. “Cada vez mais percebemos que os estudiosos do Direito das Famílias se mostram sensíveis e atentos aos valores e princípios mais importantes do Direito Civil Constitucional, tais como: dignidade da pessoa humana, direito à felicidade, direito à livre determinação sexual, isonomia, entre outros.”

“É impossível julgar uma demanda dessa natureza sem considerar a multiplicidade de pluralidade das condições de gênero e o seu correlato respeito e proteção legal. Situação que vem sendo cada vez mais consolidada deixando as decisões ultrapassadas fora do contexto e até mesmo alvo de recurso aos Tribunais Superiores que tendem a serem bem mais vanguardistas”, assinala.

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM (com informações da DPE-PI)


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