Por José Carlos de Assis

ESCRAVIZAÇÃO DO PAÍS NO ALTAR DA GEOPOLÍTICA.

A elite política e militar brasileira nos está condenando à escravização pelos Estados Unidos. É que estamos no centro de um conflito geopolítico entre norte-americanos e russos. Devido a uma visão entreguista dos golpistas e pós-golpistas de 2015, essas elites se revelaram como vassalos dos interesses norte-americanos e incapazes de ver estrategicamente as vantagens de uma neutralidade entre as duas superpotências militares. Vendem-nos como os chefes negros vendiam seus próprios irmãos ao branco escravagista, no tempo da escravatura. Com isso nos estão consolidando na posição de subordinados políticos e econômicos de um dos lados em detrimento do desenvolvimento nacional e da consolidação de um Estado de bem-estar social.

Essa espécie de leilão dos valores brasileiros remete à recuperação russa da desagregação da União Soviética e da consolidação econômica da China como a maior força econômica do mundo em termos dinâmicos. O império norte-americano, que se imaginava em situação absolutamente hegemônica no mundo, perdeu a possibilidade prática e ideológica de apresentar-se como dono da terra. A aliança estratégica entre a Rússia, em paridade nuclear com os Estados Unidos, e a China, em virtual superioridade econômica, contrariou a expectativa de prolongamento do conflito sino-soviético para além do fim da Guerra Fria. De fato, esses países acabaram por articular o núcleo de um poder econômico-militar que não pode ser vencido pela guerra frontal, ou mesmo pela força econômica norte-americana, sem retaliações inaceitáveis.

A saída dos Estados Unidos diante desse impasse, a partir da ideologia dominante ocidental, ocorreu progressivamente mediante ações “pacíficas”. Para isso reivindicaram uma superioridade política e moral na construção de um círculo de aliados em torno dos próprios interesses a fim de, no mesmo movimento, conter a Rússia, acusada injustificadamente de expansionista. Politicamente o argumento tem sido promover a democracia; moralmente, a defesa dos Direitos Humanos e o combate à corrupção. Na era nuclear, como observado, não se pode conquistar a hegemonia absoluta pela guerra. A alternativa foi dominar países periféricos por mobilizações controladas de dentro, convertendo ao regime ocidental sobretudo os potenciais parceiros da Rússia, mediante expedientes de desestabilização de governos locais.

Inicialmente, já nos primeiros anos pós-soviéticos e aproveitando-se da fraqueza militar, moral e política da Rússia, o Império ocidental, no momento incontestado, avançou “pacificamente”, pelo braço da OTAN, sobre o Leste europeu, contrariando compromissos verbais com os russos de não posicionar mísseis nos países anteriormente aliados de Moscou. Em pouco tempo dez países que de alguma forma eram ressentidos com a antiga dominação soviética foram engolidos pacificamente pelos Estados Unidos/OTAN: primeiro, República Checa, Hungria e Polônia foram incorporados; em seguida, em 2004, Bulgária, Estônia, Latvia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia. Os russos protestaram acremente, mas em vão.

De acordo com a insuspeita revista norte-americana “Foreign Affairs”, durante a campanha da OTAN contra os sérvios-bósnios o presidente russo, Boris Yeltsin, declarou peremptoriamente: “Este é o primeiro sinal do que poderia acontecer caso a OTAN avançasse sobre as bordas da Federação Russa… A chama da guerra poderia explodir através de toda a Europa”. Entretanto, na ocasião, os russos eram muito fracos para se contrapor a esse avanço para o Leste. Este, de qualquer modo, não parecia aos russos significativamente ameaçador, desde que nenhum desses países médios tinha fronteiras com a Rússia, exceto os pequenos países bálticos.

A OTAN, contudo, não se contentou. Na sua cúpula de 2008, a aliança discutiu pela primeira vez a admissão de Geórgia e Ucrânia, ambas na fronteira com a Rússia. A administração Bush deu suporte a isso, mas França e Alemanha se opuseram com receio de que esse movimento antagonizasse os russos. Os membros da aliança chegaram então a uma solução de compromisso: não seria iniciado um processo formal de filiação, mas foi feita uma declaração endossando as aspirações de Georgia e Ucrânia, anunciada solenemente: “Estes países se tornarão membros da OTAN”.

A pressão norte-americana sobre o Leste se intensificou. Passou à forma de estímulos a rebeliões internas a pretexto de promover a democracia. A primeira investida foi na própria Geórgia. Entretanto, nessa altura, o poder na Rússia mudara de mãos em favor de Vladmir Putin, e a força militar fora gradualmente restaurada. Quando a OTAN instigou uma guerra civil no país, que levaria à anexação de duas províncias russófilas pela Geórgia, Putin reagiu militarmente e liquidou as pretensões do presidente do país, francamente pró-incorporação na OTAN. Oportunamente, seria destituído, o que assinalou a primeira derrota da aliança em seu avanço sobre as fronteiras da Rússia.

A invasão militar deixou clara a posição de Putin em oposição à entrada na OTAN da própria Geórgia e da Ucrânia. Não obstante, o que realmente despertava o apetite norte-americano era justamente a Ucrânia, por seu tamanho, nível de desenvolvimento e por sua posição estratégica “sobre as costas da Rússia”. Começou então a operação de conquista da sociedade civil do país. O governo norte-americano bancou mais de 60 projetos da fundação privada “Compromisso Nacional pela Democracia”, NED em inglês, cujo presidente, Carl Gershmann, classificaria o país como “o prêmio maior” por seus serviços, segundo Foreign Affairs.

Mas não pararia ali. Os russos viram os movimentos de engenharia social e soft power como uma ameaça direta, e na verdade tinham razão. Segundo o presidente da NED, “a escolha ucraniana de aderir à Europa iria acelerar o desapontamento da ideologia do imperialismo russo que Putin representa”. E acrescentou, numa entrevista ao Washington Post: “Os russos, também, se defrontam com uma escolha, e Putin deve se confrontar com uma perda final não apenas na fronteira, mas dentro da própria Rússia”. Era uma ameaça direta e frontal de um potentado norte-americano à integridade nacional da Rússia.

Os russos mantiveram suas advertências. Um jornal russo reportou que Putin, num telefonema a Bush, disse de forma “muito transparente que se a Ucrânia fosse aceita na OTAN ela cessaria de existir”. Contudo, manobrando com forças internas sociais e militarizadas, inclusive neofascistas, mediante ajuda de ONGs ativistas como a NED e a Open Society do bilionário George Soros, tentaram dar um golpe completo no governo democraticamente eleito da Ucrânia. Putin reagiu, reduzindo o golpe à metade. Apoiou militarmente os russófilos do leste, dividiu virtualmente o país e incorporou a Criméia, acendendo as chamas de uma guerra que dura vários anos. Foi uma derrota para os Estados Unidos. Reagiram com embargos comerciais e insultos, antecipando o momento em que o governo norte-americano apontou a Rússia e a China, no governo Trump, abertamente, como inimigos.

Onde os russos não quiseram ou não tiveram condições de reagir, a força destrutiva norte-americana implantou sua guerra assimétrica, usando quintas-colunas do sistema político e judiciário em nome da democracia ou da luta contra a corrupção, sempre visando a derrubar governos tradicionais com algum nível de proximidade com a Rússia. Assim aconteceu com a Líbia, virtualmente destruída no curso da chamada Primavera Árabe, e do próprio Egito, nesse caso manobrando interesses radicais próprios da Irmandade Muçulmana, embora o país tenha sobrevivido e enfim salvo por militares nacionalistas – o que infelizmente falta no Brasil.

No começo desse processo, o maior nível de audácia dessa política norte-americana, um pouco anterior ao fim da União Soviética, foi a tentativa de desestabilizar a China, também em nome da democracia. Estudantes instigados pelo Departamento de Estado ocuparam a Praça da Paz Celestial reivindicando liberdade, no mesmo tom que seria usado nas demais intervenções posteriores. Os Estados Unidos perderam, mas a atual insurgência em Hong Kong indica que não desistiram. E, como sempre, no Ocidente, ganham a batalha da publicidade: sem qualquer evidência, a mídia ocidental controlada por Washington sustentou que houve a morte de centenas de manifestantes no que chamaram de “massacre da Praça da Paz Celestial”. Na verdade, não morreu ali um único manifestante. Morreram cerca de 30 nas cercanias em confronto com o Exército – novamente segundo “Foreign Affairs” numa edição datada de dez anos depois.

O modelo ucraniano de guerra assimétrica aplicado em Kiev pelos Estados Unidos se estendeu a outras partes do mundo, inclusive na chamada Primavera Árabe na África, instigada pelos Clinton e sancionada por Obama. Levou, como mencionado, à destruição da Líbia como Estado nacional integrado e à maior torrente emigratória para a Europa em tempos contemporâneos. A Síria enfrentaria mobilizações “democráticas” similares que também resultaram em guerra civil, só não sucumbindo, como a Líbia, pelo aberto apoio russo ao governo de Assad. Na Turquia, uma tentativa de golpe “democrático” pró-americano comandado por um clérigo milionário que vive nos Estados Unidos foi fulminada por um contra-golpe do governo Erdogan, neste caso já com claro apoio da inteligência russa devido a interesses estratégicos, como aconteceu com a Síria.

Esses casos ilustram a disposição russa de enfrentar em terceiro país o poderio norte-americano em favor de seus aliados reais ou potenciais. E exibiu outra face da guerra assimétrica de interesse direto para o Brasil: a mobilização interna da grande mídia e da guerra legal, a lawfare, revelada na reação turca que determinou a prisão de milhares de juízes, promotores e advogados envolvidos com a tentativa de golpe mascarada pela defesa da “democracia”. Em outro plano, seguindo mencionados passos anteriores dos democratas, Donald Trump intenta enfraquecer a aliança Rússia-China através de guerra comercial contra os chineses, só limitada devido a interesses norte-americanos presentes fisicamente na China.

O processo chegou à América Latina através da Venezuela bolivariana. A presença física russa suscitada pelo nacionalismo interno contra os Estados Unidos, inclusive dos militares, veio para o primeiro plano da cena, obviamente interessados em preservar interesses econômicos significativo em torno do petróleo. De qualquer modo a aliança com Moscou viria a ser decisiva no contra-ataque à tentativa de golpe norte-americano comandada no plano doméstico pelo títere Guaidó – no qual o governo estreante de Bolsonaro tentou irresponsavelmente se envolver, sendo contido por militares realistas de seu círculo.

A Bolívia não teve a mesma sorte. Detentor da maior reserva de lítio do mundo, um material raro e estratégico da era eletrônica, o país tentou ingenuamente obter uma parceria com os russos na sua exploração, desconhecendo os condicionantes geopolíticos. Mobilizando, mais uma vez, forças internas entreguistas e literalmente comprando militares, os Estados Unidos derrubaram um governo legítimo, com forte representação da maioria índia, desencadeando verdadeiros massacres de populares inconformados com o golpe. O braço legitimador da intervenção foi a Organização dos Estados Americanos, OEA, a serviço dos Estados Unidos, que questionou os resultados eleitorais pelos quais o presidente Evo Morales estaria eleito. Nesse caso, não tinha havido tempo para os russos consolidarem uma aliança mais decisiva com La Paz, pelo que o conjunto da América do Sul, com exceção da Venezuela, se tornou um quintal livre para o desenvolvimento de suas políticas neoliberais e de financeirização da economia.

ATAQUE AO BRASIL

No Brasil o sistema jurídico montado através da Lava Jato, com total apoio da TV Globo e da grande imprensa, serviu como braço direto do lawfare norte-americano para liquidar com a política externa independente de Lula. O país cometeu o atrevimento de integrar os BRICS, tornando-se associado indireto de Rússia e China; organizou a Unasul, à margem do controle dos Estados Unidos; reforçou o Mercosul e rejeitou a ALCA, em direto desafio a Washington. Era demais. Promoveu-se então uma espécie de pseudo-insurgência em 2013, com objetivos pouco entendidos até hoje, mas enfim desvendados como expressões da influência dos Estados Unidos através da mídia cooptada.

Na realidade, como não se podia, no caso brasileiro, usar o pretexto da luta pela democracia para a mudança de regime internacional e local, usaram-se, com outros pretextos, os instrumentos da democracia em pleno funcionamento para desmontar a política externa vista como favorável a Moscou e Pequim. Em conseqüência, diante de uma presidente fraca, começou a ser liquidado o legado de independência externa do governo Lula através da Lava Jato, cujos magistrados e promotores se haviam tornado freqüentadores assíduos do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. A única ponta que sobrou dos fios da autonomia externa brasileira foram os interesses materiais ligados à China e Rússia, através do agronegócio, pragmaticamente mantidos por Xi Jinpin e Putin a despeito das bravatas ideológicas de Jair Bolsonaro.

Esse breve relato, em sua maior parte baseado numa revista norte-americana de credibilidade mundial, visa a três objetivos: primeiro, evidenciar o caráter intervencionista agressivo dos Estados Unidos mediante esse cerco à Rússia e à China, como aliada estratégica, as quais se tem movido sobretudo defensivamente; segundo, a subserviência total da mídia e dos militares brasileiros instruídos por ela às histórias produzidas pelo Departamento de Estado e Departamento de Justiça dos Estados Unidos, com parcialidade absoluta a favor dos interesses norte-americanos; terceiro, a identificação nesse emaranhado geopolítico de qual é o espaço reservado ao Brasil no futuro, se é que temos um fora da órbita hegemônica norte-americana.

Note-se que a continuidade da Guerra Fria sob a forma de Guerra Geopolítica está sob o mesmo protocolo de dissuasão nuclear que prevalecia antes. Entretanto, há um segundo nível de dissuasão representado por recursos militares de destruição em massa que podem ser usados em conflitos internos, estimulados de fora. Na Líbia, próxima da Rússia, houve, como dito acima, a virtual destruição do país por forças internas sublevadas pelos Estados Unidos, e a Síria só não teve o mesmo destino devido à intervenção russa que defende seu território. Aliás, isso parece estar acontecendo também na Venezuela, a despeito das mobilizações internas contra Maduro e seus aliados cubanos e russos.

De qualquer modo, a guerra civil já não é, em geral, instrumento de ação política eficaz por forças opositoras aos regimes anti-nacionais, alienantes da soberania, sem risco da desintegração do país. A oposição seria esmagada sem piedade, como acontece na Bolívia e no Peru, com franco apoio norte-americano, ação policial interna e cobertura jurídica, lançando inclusive as Forças Armadas contra o povo e o aparato legal contra inimigos seletivos como Lula – o que, no Peru, levou ao suicídio do ex-presidente Alan García acusado de corrupção por uma farsa. É que o governo Bolsonaro já se prepara para enfrentar rebeliões populares, inclusive com o aparato legal do princípio “excludente de ilicitude”, em discussão no Congresso, que é uma espécie de “licença para matar” manifestantes contrários ao regime politicamente contestado.

Em outro tempo, no caso brasileiro, era de se esperar uma ação nacionalista por parte dos militares que poderiam pesar a favor de interesses nacionais, como aconteceu na ditadura com Geisel. Já não existe essa possibilidade. Os altos oficiais brasileiros são formados em escolas norte-americanas e doutrinados no pensamento neoliberal, apresentando uma visão tosca da história e da realidade do país, como tem demonstrado os discursos de generais como Vilas Boas, patrocinador no Exército da eleição de Jair Bolsonaro, e Hamilton Mourão, vice-presidente da República. Ao contrário de uma ação positiva em favor do povo, eles se acomodam na posição de guardiães da lei e da ordem ditada do exterior enquanto ameaçam os cidadãos internos.

A ampla operação de manipulação de massas contra as forças progressistas na eleição de 2018 articulou uma maioria inédita do governo no Congresso, e as campanhas eleitorais da Lava Jato favoreceram esse resultado, assim como intimidaram o próprio Judiciário que se tornou uma âncora do Executivo francamente autoritário. Assim, num mesmo movimento, Executivo, Judiciário, Congresso, Procuradoria Geral da República, Polícia Federal se alinham todos contra o resto desbaratado das forças nacionalistas do país. Sem guerra civil, sem maiores conflitos, quase sem resistência, o Brasil se subjugou aos interesses norte-americanos conduzido por suas elites financeiras e políticas – os novos mercadores de escravos.

ALTERNATIVAS

Entretanto, seria tão ruim assim ser um aliado explícito dos Estados Unidos, como quer o sistema Bolsonaro, tendo em vista experiências como Japão e Alemanha do pós-guerra? A resposta exige uma consideração sobre os movimentos estratégicos norte-americanos no pós-guerra. Eles estavam voltados para conter a aspiração ideológica do socialismo no mundo, em contraposição às relações entre Geopolítica e Neoliberalismo atuais. Essas duas instâncias andam juntas. O neoliberalismo pregado em Davos responde a uma estratégia do capital mundial sob liderança norte-americana que procura se contrapor aos “exageros” do Estado de bem-estar social, que teriam levado a redução da eficiência e da produtividade das economias nacionais européias. Na prática, isso se traduziu numa revanche contra a ordem social progressista, que levou à quase completa financeirização da economia mundial sob o rótulo de globalização, e que pretende ter um mundo sem fronteiras para o capital financeiro.

O mecanismo de transferência de renda do setor produtivo para o setor financeiro se faz via taxas de juros que, mesmo em níveis baixos por causa da concorrência, se expandem horizontalmente através da bancarização dos pobres. Em países emergentes como o Brasil, as taxas de juros absurdamente elevadas representam uma oportunidade de aprofundamento ainda maior da extração da mais valia em favor do setor financeiro, em escala sem precedentes. Pressionados pela base social, de um lado, e pelo apetite financeiro, de outro, mesmo os Estados mais avançados da Europa são condenados pelas agências internacionais comandadas pelo governo norte-americano, como Banco Mundial e FMI, e, na Europa, pelo BCE e Comissão Européia, a recorreram a crescentes ajustes fiscais internos que sancionem a sangria da renda produtiva e degradam a vida social. Curiosamente, o único país da Europa Ocidental que tem escapado do cerco neoliberal é o pequenino Portugal, mediante uma política expansiva que deu certo. No plano mundial, a mais categorizada voz que se levantou contra os excessos da financeirização foi a do Papa Francisco, num documento demolidor.

O governo Lula avançou numa política social e econômica nacionalista sem maior consciência dos condicionamentos geopolíticos, mas teve resultados espetaculares nas duas esferas. Às voltas com a crise mundial, o governo Obama estimulou no seu próprio interesse políticas keynesianas de retomada da demanda no mundo, o que incluiu o Brasil. O governo Lula injetou 200 bilhões de reais na economia em 2009 e 2010, mediante financiamento do Tesouro ao BNDES, para financiamento de empresas por parte deste último, manteve a política social de valorização do salário mínimo e o combate à fome, eventualmente na contramão das políticas neoliberais convencionais de ajuste fiscal e contração da demanda.

Em resposta, a economia que havia sofrido uma contração em 2009 de quase -2% apresentou um surpreendente crescimento de 7,5% em 2010. Parecia uma vitória contra o neoliberalismo, mas foi quimérica. O fato é que a equipe neoliberal do governo acabou voltando ao leito tradicional da política econômica restritiva. Talvez assustado com o próprio sucesso, o governo deu uma travada na economia em 2010, derrubando a taxa de crescimento nos anos seguintes para os níveis medíocres devidos aos ajustes fiscais permanentes, via superávits primários.

Esse breve momento na política brasileira provou ser possível uma política econômica e social bem sucedida desde que sob uma liderança competente e informada. A distribuição de renda melhorou e, pela primeira vez em décadas, a concentração de renda diminuiu. O país estava pacificado, os trabalhadores e as próprias elites financeiras aparentemente satisfeitos. Contudo, isso contrariava diretamente os interesses do capital. Novos ajustes fiscais – notadamente, a política de geração de superávits primários – continuaram a alimentar o processo de transferência de renda para o setor financeiro pelo mecanismo do serviço da dívida pública. Posteriormente, isso foi reforçado pela reforma trabalhista de Temer e a reforma previdenciária de Bolsonaro, voltadas para extrair mais valia diretamente dos trabalhadores do setor produtivo em favor dos bancos.

Poucos compreendem como se manifesta na prática esse processo de transferência de renda. No mundo desenvolvido, a resistência social é relativamente forte e o Estado de bem estar social consome parte significativa da renda nacional. Isso limita a fatia dos bancos, embora esta não se reduz de forma absoluta, sobretudo no caso dos bancos internacionais e de seus correspondentes que exploram a mais valia em escala global. No mundo em desenvolvimento, a resistência social é fraca, os assalariados são mais vulneráveis politicamente e o Estado de bem estar social é limitado. Em contrapartida de sua virtual escravização, sobra uma fatia crescente de mais valia específica e social em favor dos bancos e do conjunto do setor financeiro.

Nos países emergentes da órbita ocidental, a cavalaria avançada do sistema é a bancarização. Uma vez alistados em seus cadastros os correntistas pobres, os bancos passam a pressionar imediatamente a que tomem empréstimos baseados, por exemplo, em crédito consignado, paguem tarifas altíssimas, façam aplicações financeiras em sistemas previdenciários privados, comprem seguros, usem cartões de crédito e empréstimos especiais com juros altíssimos de emergência, e se sujeitem (no caso brasileiro) à invasão de sua privacidade através dos cadastros positivos para assegurar maior segurança e redução de custos na captação de clientela. Para se ter uma idéia do que isso significa, nos maiores bancos brasileiros a receita de tarifas é igual ou maior que o custo total do pessoal. Essa renda financeira vem de algum lugar. E o lugar é a mais valia produzida pelos trabalhadores num sistema que a elite dominante brasileira está forçando rumo ao Estado mínimo.

É justamente no contexto da busca do Estado mínimo que deve ser entendido o programa de privatização das estatais, inclusive as estratégicas Petrobrás e Eletrobrás. Não estão em jogo preços mínimos ou reservas políticas como a golden share; o objetivo é despir completamente o Estado de seus componentes produtivos. Numa escala ainda mais entreguista, o governo pôs à venda partes substanciais do pré-sal, o que não se cumpriu, por enquanto, apenas pelo desinteresse das petrolíferas internacionais no modelo de produção que já está sendo adaptado ao gosto delas. São entidades estratégicas, sem qualquer dúvida. Sua privatização deveria incomodar os militares. Eles, contudo, os defensores da Pátria, estão numa posição de vergonhoso silêncio e aceitação da destruição do patrimônio físico nacional.

LIMITES DE ALTERNATIVAS

Está dada a resposta, portanto, à pergunta acima: por causa da financeirização, não há a mais remota possibilidade para o Brasil de ter nos Estados Unidos um aliado benigno. É contra a natureza deles. E são estreitas, no atual registro de política econômica, nossas possibilidades de desenvolvimento autônomo. Tradicionalmente, a política externa norte-americana visava à penetração de suas empresas industriais no mercado mundial, ou pelo menos na metade não socialista. Isso era uma forma de exploração, porém com efeitos positivos na industrialização da periferia, inclusive no Brasil.

Getúlio se aproveitou da situação para instalar a infraestrutura industrial brasileira, inclusive Petrobrás, Eletrobrás e Vale do Rio Doce, enquanto Geisel criou as empresas tripartites, colando o empresariado nacional a sócios estrangeiros. Ambos tiveram sucesso. Agora, porém, quem está no comando é Wall Street. E Wall Street, através de alianças bancárias na periferia, é um extrator mais poderoso de mais valia do que o sistema industrial. Por isso não cederá na promoção da financeirização em nome da competitividade pela renda do oligopólio bancário mundial, incluindo o Brasil.

Para ilustrar o poderio do capital financeiro norte-americano, quando aplicado em favor de si mesmo, basta considerar os efeitos devastadores da débâcle de 2008 e a forma como acabou sendo contornada. O presidente Obama teve de enterrar recursos equivalentes a um déficit fiscal de 7,5 trilhões na economia, de 2009 a 2014, e o FED estendeu ao sistema bancário empréstimos a custo zero em montante de mais de o dobro disso para estabilizar o sistema. No entanto, não conseguiu fazer passar no Congresso um projeto para restaurar o princípio de separação entre banco comercial e banco de investimento de maneira a evitar outras crises futuras. Para Wall Street, isso reduziria a competitividade bancária norte-americana no mundo. A vingança histórica eventualmente acabará acontecendo na forma de uma crise devastadora na medida em que a inadimplência generalizada, implícita nas contradições do sistema – redução da renda individual e familiar, e tendência à inadimplência dos pobres e das classes médias – desencadear um processo quebras em cadeia no âmbito das finanças.

O Brasil, portanto, tem uma perspectiva difícil nesse contexto mundial, sobretudo pelo caráter entreguista de suas elites políticas e militares. As possibilidades de retomada do desenvolvimento são praticamente nulas, se não houver uma mudança política profunda. A política econômica radical imposta pela equipe econômica vai em sentido oposto a um programa desenvolvimentista de fundamento keynesiano, o único que possibilitaria crescimento significativo da economia e do emprego. Dos Estados Unidos nada se pode esperar, portanto, exceto “conselhos” neoliberais através do Banco Mundial e do FMI. Paralelo a isso, a investida do capital financeiro manterá a pressão por mais juros reais e menos salários – uma contradição que, como dito, poderá fazer abortar todo o processo pelo desequilíbrio global que isso tende a representar.

O pragmático Xi Jinping ofereceu crédito de 100 bilhões de dólares ao governo brasileiro, mas a efetividade disso é altamente duvidosa. Pode ser apenas uma inteligente jogada estratégica para manter Bolsonaro na rede de interesses chineses. Não se sabe como o Estado mínimo da equipe econômica poderá absorver esse financiamento, mesmo porque, por razões ideológicas, não absorveu os vultosos recursos do Fundo Amazonas financiado por Noruega e Alemanha . Os chineses quererão garantias do Estado, e não aceitarão que o dinheiro acabe no sistema bancário ocidental como capital financeiro especulativo. É preciso ter projetos e obras físicas com garantia soberana, sobretudo para projetos de infraestrutura. Mas o governo não parece interessado nisso pelo corte de sua política econômica, pois ele se empenha em cortar investimento público em lugar de expandi-lo. O mesmo acontece com as possibilidades de recursos do Novo Banco de Desenvolvimento, o banco do BRICS, não obstante o pragmatismo chinês-russo, o qual naturalmente tem limites.

Foi justamente a criação do Novo Banco de Desenvolvimento, um instrumento potencialmente poderoso de expansão das economias, que colocou o Brasil no meio do jogo geopolítico entre Estados Unidos e Rússia/China. A poderosa e lucrativa relação comercial com a China, no âmbito de commodities minerais e agrícolas, trouxe não só benesses particulares internas como a formação de reservas internacionais da ordem de 400 bilhões de dólares. Esses recursos teriam permitido uma arrancada continuada de desenvolvimento sem os riscos cambiais do passado. Entretanto, a equipe neoliberal de Lula não soube aproveitá-la, mas também não a desbaratou. Agora este parece ser o destino das reservas dada a vocação financeira da equipe econômica e a aversão ao desenvolvimento.

BUSCANDO SAÍDAS

As possibilidades de relaxamento das amarras políticas e econômicas do Brasil dependem de três fatores: da conjuntura internacional, da degradação continuada das relações sociais, e de algum nível de conscientização das massas em relação à situação brasileira objetiva. A conjuntura internacional é um fator aleatório: embora saibamos, por razões históricas e teóricas, que o sistema da liderança do capital financeiro tende a implodir, não sabemos quando. Na realidade, a situação está madura para a derrocada pois o nível de contradição entre a renda decrescente de pobres e classes médias, e os lucros pornográficos do sistema financeiro apontam contradições insanáveis no sistema.

A atual liderança brasileira não tem vocação para lidar com um problema dessa envergadura. Note-se que, em 2008 e 2009, o Grupo dos 20 atuou decididamente em favor de uma política de expansão da demanda de tipo keynesiano, da qual se aproveitou o Brasil com o beneplácito norte-americano. Foi a recaída neoliberal imposta posteriormente pela Alemanha à União Européia, assim como a recaída neoliberal do governo Lula, que resultaram, lá e cá, em retrocesso da economia e, finalmente, numa estagnação que ainda perdura. Enquanto estiver sob controle neoliberal, a política econômica brasileira, na hipótese de uma crise financeira mundial, não saberá por onde começar a reação.

A degradação social brasileira é um processo em andamento e também contém uma bomba relógio a explodir num tempo aleatório. Por enquanto a sociedade está intimidada em face da sequência de iniciativas retrógradas e agressivas do governo. Em algum momento essa bomba pode explodir de forma similar ao que acontece no Chile, França e Peru. O governo neoliberal provavelmente reagirá com violência e, no limite, lançará as Forças Armadas contra o povo, igual ao que acontece na Bolívia. As consequências seriam devastadoras, em face do apetite por carne humana “esquerdista” de Bolsonaro e seus asseclas.

Entretanto, isso ainda está no nível de conjecturas. Seria possível uma mudança de fundamentos na política atual numa direção progressista? São grandes as dúvidas. Voltemos ao início. Tornamo-nos peões num jogo geopolítico, o qual, interagindo com as forças financeiras, submeteu o mundo ocidental, desenvolvido e subdesenvolvido, aos mecanismos de financeirização sob o rótulo de globalização. Daí derivou o neoliberalismo. Isso implica transferências crescentes de renda do setor produtivo para o setor financeiro. Bolsonaro está encharcado dessa doutrina, o que se exprime, por exemplo, na declaração recorrente de que os trabalhadores tem que escolher entre emprego e direitos.

Em outros tempos, com outra liderança, teríamos ter podido fazer o jogo similar ao de Getúlio entre a Alemanha e os Estados Unidos, na Segunda Guerra, do qual resultou a construção de nossa primeira siderúrgica estatal com apoio norte-americano e do Exército. A situação hoje é outra. Nossos altos oficiais são cultores de Hayek, o profeta do Estado mínimo, não industrialistas, alinhados à financeirização, e se simpatizam com as posições econômicas de seu associado Milton Friedmann, segundo as quais o Estado deve restringir-se em tudo, menos no financiamento generoso das Forças Armadas. Além disso, despojam-se na posição confortável de fazer carreirismo militar sem guerra externa, sob a “amigável” proteção das Forças Armadas norte-americanas, das quais se tornaram forças auxiliares inexpressivas porque não tem atrás de si uma indústria nacional de defesa. Sobram para elas, portanto, a posição de guardiães da potencialmente explosiva ordem interna. Isso lhes permitiria, em situações de crise, matar nas ruas cidadãos de seu próprio país, sem incorrer em crime, em sentido oposto ao que fizeram oficiais nacionalistas egípcios em reação à chamada Primavera Árabe.

É estreito, por outro lado, o espaço que sobra para efetivação de uma oposição eficaz ao regime de extrema direita brasileiro. Como não há unidade das oposições para se estabelecer um confronto, a única saída à vista é um processo de conscientização popular no médio prazo, que obviamente não contará com o apoio dos órgãos de comunicação empresariais embora podendo contar com a internet. A curto prazo não é provável que haverá condições para a mudança, mesmo com o desmanche da economia. Portanto, a perspectiva é longa e remete às eleições de 2022. Se não houver sobressaltos externos e internos -, e considerando que o único líder carismático, Lula, que poderia se opor ao sistema com algum grau de eficácia, certamente será mantido preso -, teremos eleições formalmente livres mas absolutamente controladas através da grande mídia cooptada pelo sistema financeiro.

Isso aponta para o imperativo de um processo de conscientização que venha a ser reforçado pela pedagogia da realidade. O desemprego continuará elevado. O PIB saltará da situação atual de vôo de galinha para retornar à estagnação. O expediente de liberação do FGTS, que teve pequeno efeito sobre a demanda porque foi sugado em parte pelos bancos, se esgotará ainda este ano. A concentração de renda puxada pelos lucros bancários prosseguirá. Os salários continuarão tendendo a cair. E trabalhadores e classes médias continuarão enredados em débitos no sistema bancário, em situação de virtual falência familiar. Essa é uma situação que dificilmente se reverterá, porque corresponde ao programa econômico neoliberal sob os auspícios da financeirização.

Com o sistema político de oposição dividido e neutralizado por querelas ideológicas, o processo de conscientização acima mencionado terá de ser uma tarefa no nível da sociedade civil, que pode vir a ser estimulado pela crise federativa. Os Estados, especialmente do Nordeste, estão virtualmente falidos. E o governo acena para eles com um novo pacto federativo infame, cujo único objetivo é acelerar a privatização de entes públicos nas esferas estaduais. Não há nos projetos a respeito enviados ao Congresso uma menção sequer à busca do aumento do emprego e do desenvolvimento. E o governo assumirá plenamente o controle das finanças estaduais liquidando concretamente a autonomia e soberania dos Estados.

A situação objetiva dos Estados pode levar a uma afinidade de objetivos com a sociedade civil, inclusive por parte do movimento contra a privatização das estatais e da defesa do serviço público. Isso dependerá de duas coisas: primeiro, da percepção estratégica dos governadores assumindo que não tem outra saída a não ser repelir o chamado pacto federativo nos termos do governo e encontrar uma alternativa política, via projeto de lei. Não é impossível, porque o Congresso, bem articulado, poderá lhes dar respaldo. Segundo, de algum nível de percepção das lideranças da sociedade civil, por cima de querelas ideológicas, reconhecendo na aliança com os governadores, contra a privatização e pelo serviço público, um meio de luta eficaz contra o governo que se confessa de extrema direita.

Quem tem o poder institucional governa o curso da história a curto prazo. Por isso, insista-se, a contraposição a ele requer uma agenda de médio prazo, a qual, no entanto, deveria ser colocada em prática imediatamente. O governo federal, por mais autoritário e militarizado que seja, não tem como impedir um processo de conscientização conduzido de forma inteligente por uma liderança coletiva na sociedade civil, capaz de reconhecer o contexto das restrições mundiais e locais. Este, porém, é o campo da tática. Não me deterei nele. Apenas manifesto a esperança de que se materialize o quanto antes, embora visando ao médio prazo.

UMA GRANDE ESTRATÉGIA PARA O BRASIL:

PLENO EMPREGO VIA NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO

Coube ao general Golbery do Couto e Silva, o ideólogo do período inicial do regime autoritário de 64, conceber o que se tornaria o principal texto sinalizador de uma grande estratégia nacional para o Brasil. Através do livro “Geopolítica do Brasil”, concebido no contexto da Guerra Fria, a história brasileira é vista como uma sucessão automática de “sísteles e diástoles”, períodos sucessivos de “fechamento” e de “aberturas”. Entretanto, ele desenvolveu sua tese geopolítica, como fundamentação de uma estratégia para o Brasil, com limitados recursos historiográficos e excessiva fundamentação ideológica no contexto da Guerra Fria. Ao final, era uma justificação do regime autoritário.

São raros os textos e documentos brasileiros sobre o tema da geopolítica, e, sobretudo, de uma “vontade” por trás de uma proposta geopolítica a ser implementada por uma estratégia nacional. Existem, sim, textos acadêmicos de valor, mas nenhum abrangendo essas questões conjuntamente. Contudo, o destino do país, desde que não assumido como sendo movido por forças exclusivamente automáticas, como concebido também pelo marxismo vulgar, depende de pessoas e de concepções. Essa é a relação pela qual, no âmbito da Aliança pelo Brasil, pretendemos discutir sumariamente os temas da geopolítica e da estratégia nacional, avançando, porém, nos processos de sua implementação.

Esse documento, na parte operacional, se desenvolve em três níveis. Em primeiro lugar, discute-se a política fiscal-monetária alternativa à doutrina neoliberal, a qual, na forma como se concebe aqui, é absolutamente essencial para uma política econômica de desenvolvimento. Em segundo lugar, discute-se a busca do pleno emprego como base histórica da democracia ocidental, essencial para a execução de uma política keynesiana de recuperação rápida da depressão econômica. Finalmente, associando política de emprego garantido ao trabalho aplicado, propõe-se um programa para reestruturação a curto prazo e amplo saneamento das favelas a fim de dar dignidade a seus habitantes e antes que se tornem focos descontrolados de doenças que ponham em risco toda a coletividade.

Nesta parte inicial, teórica, procura-se apontar os desafios postos à sociedade brasileira no contexto da economia e da geopolítica mundiais. O regime autoritário tinha, bem ou mal, uma estratégia consubstanciada nos dois Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND) que determinaram uma trajetória de crescimento econômico a altas taxas financiada basicamente pelo setor público com base em crédito externo. A democratização não produziu uma estratégia. A única tentativa nesse sentido foi o documento “Esperança e Mudança”, do MDB, o qual refletia o pensamento progressista de um grupo de intelectuais, mas que não se materializou em políticas, mesmo porque, já na abertura, o sistema partidário se fragmentou.

Conduzir o país das dimensões e da complexidade brasileiras sem uma estratégia que aponte os objetivos essenciais a serem perseguidos é como navegar sem bússola. E é justamente isso que aconteceu com o Brasil desde os anos 80. A Constituição se efetivou como carta de direitos concretos, não de princípios norteadores de ação. Ficou vulnerável. Ao longo dos poucos anos desde sua aprovação recebeu mais de cem emendas e ficou totalmente desfigurada, especialmente nos governos Fernando Henrique e Michel Temer. Nesse contexto, nenhuma estratégia nacional, mesmo que fosse proposta, se materializaria em ação. É isso que temos em mente quando, na qualidade de grupos da sociedade civil, oferecemos ao conjunto da sociedade e ao mundo político essa proposta de Grande Estratégia Nacional.

Fundamentos filosóficos

A defesa da propriedade privada é o fundamento básico da democracia em suas diferentes formas, desde a Revolução Americana às primeiras convenções da Revolução Francesa. É a base do que se convencionou chamar de revolução burguesa ou democracia burguesa. Em princípio, era uma forma política de se contrapor às prerrogativas dos monarcas de confiscarem propriedades privadas, sem indenização, ou com indenizações precárias. Assistimos isso, no Brasil, quando a família real portuguesa veio para sua principal colônia, se apossando sem resistência possível das propriedades e casas dos burgueses do Rio, a capital.

A primeira contestação filosófica ao direito de propriedade privada não veio de Marx, mas de Johan Fichte, um filósofo alemão do início do século XIX. Fichte não contestava diretamente a propriedade privada mas exigia seu complemento de alguma forma. Se você tem o direito à propriedade privada, raciocinava ele, e se eu devo respeitar seu direito, o que vou fazer se não tiver propriedade privada? Vou morrer de fome? Se isso for lembrado no contexto de uma sociedade que estava cercando terras públicas em favor de privilegiados, e “libertando” servos e escravos, qual era a saída para os trabalhadores?

A resposta de Marx, fundador da corrente do chamado socialismo científico, foi propor a expropriação do meios de produção privados para assegurar emprego universalmente. Ele não contestava a propriedade privada em geral. Nem colocava a propriedade privada dos meios de produção como um instrumento específico de geração do pleno emprego, isto é, de uma situação do mercado de trabalho em que todos os aptos e dispostos a trabalhar encontram ocupação remunerada. Sua proposta era mais radical pois supunha o fim do capitalismo devido a suas contradições internas e a libertação dos trabalhadores da escravização pelo trabalho, onde o próprio trabalho, visto em retrospectiva, era uma forma de alienação do trabalhador em favor do patrão ou da máquina.

Marx foi, porém, o sistematizador dos ciclos do capital, nos quais períodos de recessão se sucedem inexoravelmente a ciclos de ascensão da produção e do emprego. Daí ele derivou o conceito de “exército industrial de reserva”. De fato, se há ciclos alternativos de recessão e ascensão, os trabalhadores, desempregados na recessão, funcionam, na competição pelo emprego, como sujeitos da redução dos próprios salários. A queda dos salários implica redução da demanda, e a queda da demanda reforça a recessão, num processo que se replica ao longo das décadas até produzir, eventualmente, uma Grande Depressão.

A grande contribuição de Keynes, o maior economista do século XX, foi não só teórica mas normativa. Se Marx previu a inevitabilidade do ciclo econômico, Keynes propôs uma forma de regulá-lo. Na medida em que a crise cíclica resultasse de uma queda da demanda, uma injeção direta de recursos do Estado, na forma de investimento ou criação e aumento de renda, teria como efeito a recuperação da demanda, isso levaria à recuperação também do investimento, a recuperação do investimento geraria contratação de empregados, e o aumento do emprego a mais demanda, num círculo virtuoso que eliminasse a depressão.

Essas medidas focaram conhecidas como política keynesiana. Eliminavam temporariamente as contradições capitalistas que apareciam em ciclos de instabilidade em toda a história ocidental, exceto, para os países capitalistas avançados, no quarto de século que sucedeu à Segunda Guerra. Houve, nesse período, grande estabilidade social e contínuo crescimento econômico na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Ela se deveu basicamente a duas razões: no plano geopolítico, à Guerra Fria, que forçou os países ocidentais a contrapor ao comunismo políticas de bem-estar social; no plano econômico, à realização prática de políticas de pleno emprego pelas quais o desemprego era trazido à faixa mínima de desemprego friccional.

Reversão geopolítica

Com o fim da União Soviética, esteio de poder do chamado socialismo real, desapareceu a razão geopolítica para o confronto no plano ideológico e, extensivamente, no plano prático com o ocidente. Os países ocidentais ficaram de mãos livres para orientar suas economias e suas políticas sociais segundo os interesses econômicos das classes dominantes. Nos anos 70, no contexto da crise de estagflação desencadeada pela política norte-americana de ruptura com o padrão ouro, os países europeus ocidentais haviam enfrentado forte instabilidade inflacionária e cambial. Começou então um longo debate ideológico de contestação da política de bem-estar social na Europa, a partir sobretudo da Alemanha.

O conceito central manipulado nessa guerra de classe foi o da produtividade da força de trabalho, vinculado à idéia de eficiência econômica do trabalhador. Dizia-se que o retardo relativo das economias da Europa Ocidental em relação aos Estados Unidos devia-se a insuficiência de produtividade do trabalho e à carga de direitos trabalhistas. Milhares de páginas foram escritas a respeito, sobretudo por parte de institutos conservadores alemães, os quais apontavam o sistema de bem-estar social europeu ocidental como culpado pela situação. No início dos anos 80, caminhando para o auge da Guerra Fria, a Alemanha reformou o seu sistema social antecipando-se ao thatcherismo.

Com a derrocada soviética e a unificação alemã criou-se uma nova configuração geopolítica no mundo, logo aproveitada, em alguns países, para aprofundar reformas sociais regressivas. No plano econômico entraram em marcha as negociações para a unificação monetária entre seis economias da Europa Ocidental. A maioria dos países aceitou um modelo monetário contra seus próprios interesses e os interesses dos trabalhadores. Isso porque, estabelecido como uma média das seis moedas, o euro correspondia a uma desvalorização das moedas acima da média, e uma valorização automática das moedas de valor abaixo da média.

A Alemanha já era uma economia fortemente exportadora. Com o correspondente ao que seria uma desvalorização do marco transformado em euro, tornou-se ainda mais forte no comércio exterior. Os superávits comerciais sucessivos, 40% deles para dentro da zona do euro, realizados na moeda comum, correspondiam e correspondem a um influxo permanente de moeda em sua economia, na forma de uma política monetária extremamente expansiva -, ao lado do Banco Central Europeu fortemente contracionista para os outros países do euro. Como conseqüência, a Europa Ocidental tornou-se escrava da Alemanha, sem guerra, tornando-se importadora líquida, sacrificando empregos e dando uma ilusão temporária de satisfação com a moeda forte.

Outra terrível conseqüência do fim da Guerra Fria foi a expansão da financeirização das economias no rastro do que se chamou de globalização. Isso vinha acontecendo desde o início dos anos 70 com o fenômeno da reciclagem dos petrodólares como resultado da triplicação dos preços do petróleo em 1973. O processo inicial da reciclagem desses recursos por parte dos bancos ocidentais se deu na forma de empréstimos a juros relativamente modestos. Em 1980, porém, os Estados Unidos subiram abruptamente as taxas nominais de juros, contaminando, pelo processo dos juros flutuantes, a maioria dos empréstimos passados.

Então começou o calvário brasileiro que, se não fosse pela péssima performance dos formuladores de política econômica internos, poderia ter acabado já na primeira década dos anos 2000, com o pagamento da dívida externa contraída junto ao FMI e a regularização dos pagamentos aos bancos privados. Nos anos 80, porém, o Governo militar, tão valente em questões de política interna, orientado por Delfim Neto, não teve coragem de romper com os credores da dívida externa, que era literalmente impagável nos novos termos, preferindo um processo tortuoso de negociação sem destino até a capitulação completa nos anos 90, com um período intermediário de dignidade via moratória no Governo Sarney, logo revertido pelo ministro Maílson da Nóbrega que insistia em pagar a dívida impagável.

Em troca de descontos sobre uma dívida impagável, o Brasil, no governo Itamar, enganado por tecnocratas vendidos ao capital, aceitou a conversão de empréstimos em títulos, formando uma massa de papéis negociáveis no mercado secundário sem qualquer vinculação com ativos, senão o ativo representado pela própria soberania brasileira. O país entrou, dessa forma, plenamente, no processo de financeirização mundial que se apóia justamente em securitização de ativos financeiros. Na essência, isso representa o descolamento da órbita financeira da economia da órbita real. O potencial explosivo desse processo é infinito. Tivemos uma amostra disso em 2008. Outras certamente virão segundo os ciclos estudados pelo economista americano Hyman Minsk.

Note-se que, em honra dos militares progressistas, a maior parte da dívida externa acumulada no governo autoritário era de empréstimos vinculados a empreendimentos físicos reais. O risco de taxas flutuantes de juros existia, mas ninguém poderia supor racionalmente que chegassem à casa dos 20% em 1982. Há um legado físico inquestionável desse período na forma de hidrelétricas, ferrovias, portos, siderúrgicas e outros empreendimentos de infra-estrutura, entre os quais o abortado projeto nuclear, bombardeado pelos Estados Unidos. Trocamos tudo isso por papéis com garantia soberana, não dos ativos financiados. Para pagá-los, em razão de uma política monetária restritiva, afundamos a economia em superávits primários para pagar os juros da dívida externa convertidos em dívida mobiliária interna.

Com o poder militar supremo nas mãos e o controle geopolítico das finanças mundiais através de sua banca, os Estados Unidos submeteram política e economicamente a Europa a partir do centro do capital financeiro globalizado, Wall Street. O Brasil teve uma única oportunidade de romper esse círculo de ferro: com os enormes superávits comerciais acumulados com o aumento dos preços e das exportações para a China e outros países asiáticos, acumulou reservas suficientes para escapar do domínio absoluto dos bancos norte-americanos, da mesma forma como fez a China e outros países asiáticos, nesse último caso como prevenção a partir da crise de 1997.

O grande abalo recente desse sistema foi a crise financeira de 2008. Os Estados Unidos reagiram com políticas keynesianas clássicas, com déficits do Tesouro da ordem de 7,5 trilhões de dólares, em seis anos, e a irrigação do mercado financeiro com outros trilhões de dólares no chamado quantitative easing, ou facilidade quantitativa de empréstimos do FED a juros zero ao sistema financeiro. De qualquer modo, protegeram sua economia real e reverteram o desemprego, enquanto a Europa, amarrada à política comum do euro, só conseguiu a reversão da economia na Alemanha, pelas razões antes expostas – e, posteriormente Portugal, via uma política heterodoxa inteligente e bem sucedida, e talvez por isso ridicularizada pelos neoliberais. Mesmo a França não conseguiu fazer retomar consistentemente a economia e o emprego na medida em que seus líderes prometem investimento público mas não podem fazer déficits devido às amarras do euro.

Diga-se a propósito das elites políticas norte-americanas que elas estão longe de serem estúpidas. Elas sabem que, numa democracia, altas taxas de desemprego são intoleráveis. Na reunião do G20 em Washington que sucedeu à eclosão da crise de 2008 o recado da equipe norte-americana foi claro: vamos meter o pé no acelerador, a começar por déficits orçamentários da ordem trilhão de dólares (na verdade, ainda em 2009, foi de 1,5 trilhão!). Os europeus concordaram relutantemente, mas já em 2010 a Alemanha ortodoxa forçou Inglaterra e França a adotarem uma política restritiva, e os três juntos submeteram o resto da Europa aos cânones do neoliberalismo. Ainda hoje, oito anos depois, a Europa não se recuperou – exceto a Alemanha, que vampiriza os demais países europeus.

Pela primeira vez na história seguimos um bom conselho americano: em 2009 e 2010 o Tesouro repassou 200 bilhões de reais ao BNDES a fim de que ele suprisse de financiamentos o sistema produtivo brasileiro. Jamais se fez no país uma política fiscal-financeira mais bem sucedida. A economia cresceu nada menos que 7,5% em 2009. O desemprego começou a se recuperar fortemente. Contudo, a equipe econômica brasileira não estava convencida desse sucesso. Abandonou precipitadamente a política expansiva por pressão do chamado “mercado”, este preocupado em retomar o curso dos superávits primários para atender aos interesses da financeirização.

Depois disso, o país mergulhou fundo na integração com o mundo financeirizado, sofrendo todas as suas conseqüências disso na forma de imensas transferências de recursos reais para os países centrais, notadamente os Estados Unidos. Entretanto, foi aberta uma janela para sair dessa armadilha: o sistema financeiro chinês, articulado com Rússia, Índia e África do Sul, ou BRICS. Foi a maior cartada geopolítica da época de Lula. Essa janela continua aberta, não obstante o desejo de se manter o status quo por parte de serviçais da financeirização, dentro e fora do setor público.

Nossa adesão ao BRICS colocou o país em linha direta de confronto com os Estados Unidos tanto na fronteira financeira quanto na fronteira geopolítica. Como sabem todos os especialistas em Relações Internacionais, a política externa americana segue duas vertentes centrais. Uma diz respeito à manutenção e expansão do poderio militar do país; outra busca assegurar a penetração e expansão da indústria e dos ativos financeiros norte-americanos no mundo. Essas vertentes costumam equilibrar-se, mas em certas situações, sobretudo em guerras, uma delas prevalece sobre a outra.

A prevalência aparentemente absoluta do poderio militar norte-americano deu aos ideólogos geopolíticos do país, nos primeiros anos após a derrocada da União Soviética, a noção de que o mundo havia entrado na era do poder unipolar. Esqueceram de que a Rússia, herdeira da União Soviética, continuava sendo um poder nuclear de primeira linha. Após uma fase de reordenamento interno, sob Putin, o país rechaçou a tentativa de colonização norte-americana da Geórgia, impediu a completa sujeição da Ucrânia a um governo hostital, parcialmente comandado por nazistas reconhecidos, e anexou a Criméia mediante um plebiscito espetacular.

Isso pôs fim à expansão da OTAN para o Leste, assim como o desastre humano provocado pela política de Obama na África e no Oriente Médio, através da chamada Primavera Árabe, comandada diretamente pela Hilary Clinton então no Departamento de Estado. Como resultado dessa política que pretendia hostilizar países simpáticos à Rússia, a Líbia foi literalmente destruída como país, e a Síria só não teve destino igual por causa da ação militar direta da Rússia em seu território. O saldo final dessas intervenções norte-americanas, diretas ou por seus prepostos da OTAN na Europa, foi o maior drama humanitário desde a Segunda Guerra, o fluxo migratório interminável através do Mediterrâneo, sob a cumplicidade criminosa da mídia ocidental que omite as causas do desastre.

Não existe nenhuma razão política para a hostilidade norte-americana em relação à Rússia. O comunismo, eixo da rivalidade histórica entre os dois países, acabou e a Rússia se tornou um país capitalista como qualquer outro. Mas a questão se resume à disputa do poder geopolítico. Como os Estados Unidos não podem atacar diretamente a Rússia, que é uma potência nuclear de primeira linha, tentam derrotá-la economicamente limitando suas relações internacionais e atraindo-a, eventualmente, para uma guerra convencional em terceiro país. Isso poderia dar certo se não fosse contraposto à frieza política do maior estrategista deste século, Vladmir Putin.

O Brasil atraiu a hostilidade norte-americana em razão do BRICS, e principalmente do Novo Banco de Desenvolvimento criado pelo grupo. Esse banco é, potencialmente, uma espécie de ponta de lança para a ruptura do sistema de financeirização ocidental comandado por Wall Street. A China tem poder financeiro capaz de bancar um sistema de financiamento internacional que substitua largamente o Banco Mundial e o FMI, ambos guardiães dos códigos da financeirização. Caso venha a atuar plenamente no âmbito do BRICS e gozar de seus benefícios, o Brasil, conduzindo na mesma direção o resto da América Latina e parte da África, se tornará uma ameaça concreta à financeirização e à geopolítica dos Estados Unidos.

O governo Dilma não fez praticamente nada para consolidar a posição brasileira no Novo Banco de Desenvolvimento. A direção do Banco Central era hostil ao projeto. A resistência às potencialidades do BRICS se juntou à ganância norte-americana pelo petróleo do pré-sal para estimular oportunistas políticos brasileiros a pôr em prática o golpe parlamentar contra Dilma literalmente comprando seu impeachment. Entretanto, uma Grande Estratégia Nacional, do ponto de vista geopolítico, passa necessariamente pela reinserção profunda do Brasil no BRICS, assim como pela recuperação plena da soberania nacional sobre o pré-sal.

No mundo contemporâneo, não há mais lugar para a definição de estratégias sem consulta aos interesses do povo. A constituições americana e francesa, seminais da democracia moderna, eram cópias longínquas da democracia de Atenas, na qual predominava o interesse dos proprietários. Elas definem, de qualquer modo, os princípios de uma estratégia nacional. Atualmente, se fosse buscada uma nova constituição para o Brasil, ela deveria refletir mais os princípios norteadores da estratégia nacional, deixando os direitos para o campo da legislação ordinária. De fato, é o poder parlamentar, muitas vezes movido pelo poder real das classes dominantes, que comanda o processo constitucional, como se viu na era dos dois presidentes mencionados. Daí que, em certos momentos, é mais eficaz manter a Constituição do que fazê-la.

A Grande Estratégia para o Brasil eventualmente exigirá a feitura de uma nova Constituição que trate sobretudo do sistema político. Certas funções do Executivo devem ser divididas com o Parlamento, num sistema parlamentar misto. A realidade contemporânea trouxe funções novas aos governos as quais não podem cair em mãos demagógicas, como advertia Platão a respeito da fragilidade da democracia. As funções relativas aos temas da guerra e paz na era nuclear, do meio ambiente, da genética, da saúde e do desenvolvimento tecnológico, absolutamente vitais para o país e para a humanidade, devem ser preservadas, no limite do possível, de querelas político-partidárias, e ficar sob a guarda de um Presidente eleito pelo povo.

Essa funções deveriam caber ao presidente por longo prazo, tendo por limite de idade, por exemplo, a dos cardeais da Igreja Católica, a fim de assegurar a continuidade e a segurança pública das políticas. A parte do governo de tipo parlamentar cuidaria da economia e da administração pública, com eleições regulares possibilitando a alternância de poder de quatro em quatro anos. Esse sistema garantiria, até onde se pode esperar se ações humanas coletivas, o máximo de eficácia na proteção de interesses permanentes do povo, estabelecidos também em programas referendados pelo povo, e a flexibilidade do governo atinente ao cotidiano.

Prioridades estratégicas

A Grande Estratégia deve traduzir-se em programas e projetos concretos de governo voltados diretamente para o interesse popular. Sem isso, não terá credibilidade e será apenas um documento intelectual para consumo limitado de pessoas “cultas”. É fundamental que se indique a forma de financiamentos dos projetos e programas e, quando forem de natureza deficitária, deve-se mostrar a evidência econômica de que não serão inflacionários, conforme atesta a teoria de Finanças Funcionais, nem abalarão a credibilidade fiscal do país. Os seguintes projetos e programas constituem a pauta mínima para o soerguimento do país da crise e o estabelecimento de condições de pleno desenvolvimento econômico e social do Brasil. São eles:

1. Prioridade absoluta à promoção do pleno emprego como política pública. Ele é essencial para a estabilidade democrática no sentido de que se apresenta como contrapartida necessária ao direito de propriedade privada. Também é fundamento de um futuro grande Pacto Social que possa ser promovido com apoio da sociedade de forma a reconstituir a unidade nacional e o saneamento das instituições republicanas.

2. Para a promoção do pleno emprego é fundamental uma nova política fiscal-monetária que a coloque entre as prioridades do Banco Central (anexo A). Todo o processo de retomada do crescimento deve ser iniciado com um programa de pleno emprego clássico, de matriz keynesiana (Anexo B). Por outro , são necessárias políticas concretas de geração de emprego, indicadas no programa Cidade Cidadã (anexo C). Esse conjunto de propostas, projetos e programas garantirá a rápida recuperação da economia, com estabilidade no crescimento, e sobretudo retomada do emprego.

3. Retomada do controle soberano da Petrobrás como meio de assegurar as vantagens plenas para o país do desenvolvimento do pré-sal no curto, médio e longo prazos, favorecendo o desenvolvimento tecnológico e industrial brasileiro mediante políticas de garantia do conteúdo nacional nas encomendas do setor.

4. Utilização da ação especial retida pelo Governo na Vale do Rio Doce, a segunda maior empresa brasileira depois da Petrobrás, como forma de assegurar compromissos ambientais, desenvolvimento tecnológico na área de mineração e investimentos de resultados acima do percentual mínimo legal de distribuição de dividendos.

5. Estabelecimento de uma política tecnológica que use o financiamento de projetos nas universidades e institutos públicos de pesquisa prioritariamente no sentido de aproveitamento de seus resultados na área industrial, embora sem descuidar de pesquisa pura como base do desenvolvimento científico.

6. Redefinição das relações federativas a partir do reconhecimento da nulidade da dívida dos Estados junto à União, em especial da dívida consolidada em 1997, com restituição do que foi pago indevidamente desde aquele ano. Recuperação pelos Estados dos créditos oriundos da Lei Kandir e da retenção da DRU. Esses recursos deverão ser aplicados obrigatoriamente em investimentos de infra-estrutura e no saneamento financeiro dos setores de educação, saúde e segurança.

7. Suporte ao setor exportador industrial e agrário a fim de assegurar saldos comerciais relevantes no sentido da preservação e expansão das reservas internacionais como forma de precaver-se o país de crises cambiais, muito comuns no passado, sobretudo no contexto da crise da dívida externa.

8. Manutenção da pauta de políticas sociais assistencialistas de forma a erradicar completamente do país o fantasma da fome e da miséria extrema ainda presentes em algumas regiões.

Apêndice

Lições mal aprendidas da História

Até onde alcançam minhas informações de história, nada no mundo, exceto guerras, pode ser comparável à tragédia brasileira contemporânea. Não nos estão roubando apenas o presente. Querem reescrever a História para salvar, sem qualquer benefício prático, a reputação da ditadura. Estão nos roubando as perspectivas de vida decente no futuro com ajustes fiscais permanentes e a destruição do patrimônio público. As principais instituições juntaram-se num conluio macabro para soldar seus próprios privilégios e escravizar o povo.

O Executivo nada constrói. O próprio presidente sem apetite para governar disse que veio para destruir, não para construir. Os bancos públicos não financiam. E as empresas não tem estímulo para investir porque não há demanda. O governo afirma-se como vendilhão impune dos bens estratégicos nacionais, do petróleo à energia elétrica. O Judiciário finge que não vê evidências de ilegalidade e inconstitucionalidade de seus atos. O Legislativo aprova tudo que seja antinacional e anti-povo. Enquanto isso a Lava Jato é o poder absoluto da República, agora locupletando-se das próprias multas que tem aplicado.

Por trás disso tudo estão as Forças Armadas, guardiães da vitória de Jair Bolsonaro nas eleições, e virtuais donas do poder uma vez tendo sido eleito. Chegamos ao cúmulo de torcer para que assumam o poder abertamente na hipótese de impeachment ou de renúncia forçada do presidente boçal. Entretanto, há nisso também os piores riscos. O primeiro é o despreparo evidente dos militares para o exercício do poder supremo direto da República. Na ditadura, tiveram ajudas civis importantes de conservadores, como Roberto Campos, que acabou se tornando desenvolvimentista.

A grande incógnita do momento se chama Mourão, o vice. Observando os três primeiros meses do governo, ele pode concluir, como faz grande parte da população e como tem feito as revistas semanais, que o experimento Bolsonaro é um absoluto fracasso e uma irresponsabilidade cívica que devem ser encerrados. Mas será que o certo para eles é Paulo Guedes, o superministro de ineficácia infinita que vendeu a alma para o objetivo único de liquidar a Previdência pública e as estatais estratégicas? Será que acreditam que Paulo Guedes está certo, e o errado é o Congresso Nacional por ameaçar rejeitar seus planos macabros?

O destino a curto prazo da República está nesse ponto: se Mourão concluir que Guedes está errado, há esperança para alguma composição política acima das cinzas do neoliberalismo radical e dos interesses pornográficos do mercado. Se achar que está certo, vamos nos preparar para um período dramático de convulsões sociais que os militares no poder vão confundir com comunismo, socialismo, agora também fascismo, e o que mais podem sua ignorância ou ingenuidade alimentadas de preconceitos anacrônicos nas escolas de estado maior, que ainda ensinam o desmoralizado Hayek.

Na primeira hipótese considerada eu me colocarei ao lado dos que, ajudando Mourão a costurar um pacto social de emergência no país, procurarão regenerar a economia, retomar o desenvolvimento e restaurar a ordem trabalhista destroçada pelos agora réus Michel Temer e Moreira Franco. Há muito ressentimento justificado no ar, de forma que a costura desse pacto dependerá da existência ou não de militares desenvolvimentistas no Brasil.

Na segunda hipótese, apertem os cintos! Uma convulsão social não nasce do acaso, como mostrou num artigo apavorante o jornalista Mário Sérgio Ponti. Pensem numa grande marcha pacífica contra o desemprego aberto, perto dos 15%, na Av. Paulista ou na Rio Branco no Rio. Ou no subemprego de 40%. A revolta e a ira dos miseráveis estão no ar. Avançam imprudentemente sobre a polícia. A polícia atira. São 11 mortos. O governo culpa esquerdistas. Marca-se nova manifestação. Mais mortes. Outras capitais aderem. O Brasil entra em convulsão. Alguns militares ganham medalhas por matar gente do povo. Ainda não é revolução. Mas pode haver revolta de militares que se recusam a ser os novos capitães do mato, e a guerra civil explode.

Um governo desenvolvimentista, do tipo de uma determinada época da ditadura dos anos 70, conduziria o povo para uma negociação. O governo Geisel fez isso. Não sei por que cargas d´água Mourão critica Geisel economicamente, quando a economia foi um inequívoco acerto dele. Quanto ao pacto, não adianta apelos hipócritas, mas sinceros. Só há confiança caso seja apresentado um programa de pleno emprego confiável. Lideranças trabalhistas devem ser aceitas como interlocutores válidos. De empresários não se pode esperar nada: são a escória da nação cujo único objetivo é escravizar os trabalhadores e ampliar lucros, como a procissão deles que seguiu Bolsonaro para pressionar o Supremo contra medidas de isolamento sanitário.

No plano social, o interregno Bolsonaro nos remete às greves históricas de 1917 em São Paulo e outras cidades do país. Também nesse caso o empresariado resistia estupidamente a negociar. Teve que ceder, sob conselho do velho conde Mattarazo. Este aprendera na Itália a arte da negociação. Agora muito se precisaria dele, já que os empresários brasileiros, além de contra a nação, são contra os trabalhadores e a saúde pública. A burguesia nacional é a única burguesia do mundo, apoiada em assessores imbecis, que trata salário exclusivamente como custo, e não como receita potencial de consumo. É extremamente reacionária e incapaz de ver seus interesses, por exemplo, numa progressista política industrial.

Em tese, talvez tratar com os militares seja melhor que tratar com a burguesia. Covarde, ela aceita qualquer medida vinda de autoridade. Como observado acima, ela tem sido a primeira a ceder os interesses nacionais em favor dos seus interesses particulares. Lutou violentamente para destruir a política trabalhista, como vimos. Sua representação política é infame. Na indústria, muitos dirigentes – os donos da Fiesp, por exemplo – sequer são industriais. São burocratas com o comando de uma imensa estrutura corporativa, Sesi e Senai, bancada não por ele mas por impostos.

Mourão faz declarações importantes sobre política externa, mas foi muito mal informado, como disse, a respeito dos feitos positivos da ditadura de 64. Em lugar de reescreverem a história no aspecto político, os militares deveriam se concentrar nos aspectos econômicos positivos da era Geisel. Ninguém há de perdoar o regime pelos mortos, mas em economia uma política liberal teria sido muito pior para o povo, como agora. Foi uma época de desenvolvimento, financiado, sim, por recursos externos então abundantes na esfera internacional, os chamados petrodólares.

Os revisionistas neoliberais alegam que o endividamento prejudicou o país. Não é verdade. O endividamento está presente numa ampla infraestrutura energética e logística, desde Itaipu a Balbina e Tucuruí, grandes rodovias e a Ferrovia do Aço, na indústria petroquímica tripartite, na siderurgia, entre outras grandes obras. Claro, nem um neoliberal renitente poderia imaginar que o FED americano subisse os juros, referência para os créditos tomados, para mais de 20%. Estupidez foi o governo Figueiredo, com Delfim no comando da economia, não ter declarado a moratória em 1982!

Situações econômicas extremas levam a exasperação de parte a parte. Nos anos 60, depois do golpe, e passado o tremendo ajuste fiscal de Campos e Bulhões, o país chegou a 68 exasperado. A economia estava retomando mas não se sabia disso. A insatisfação tomou as ruas na forma de passeata dos 100 mil. Alguns jovens revoltados preparavam-se para a guerrilha urbana. Os militares não chegaram ao AI-5 por acaso, mas pelo movimento dialético inexorável da sociedade estressada por uma situação econômica de extrema restrição.

P.S. Se alguém está interessado numa avaliação da política econômica e da economia política da ditadura, veja “O Grande Salto para o Caos”, Zahar Editor, que escrevi em parceria com a professora Maria da Conceição Tavares, em 1985. Nossa crítica não foi ao fato de se financiar o desenvolvimento com dívida, na era Geisel, mas sim a estúpida política financeira de Mário Henrique Simonsen pela qual o Banco Central enxugava a contrapartida interna da entrada de recursos externos com títulos públicos, gerando duas dívidas, a externa e a interna, mantendo exageradamente baixa a liquidez da economia.

Leia também: Pandemia e retomada do emprego e da renda 


JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964. Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro. Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica.